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Succession é o Rei Lear para a nossa era de grupos mediáticos vorazes

A série televisiva sobre um bilionário ao estilo de Rupert Murdoch e a sua família disfuncional terminou este fim-de-semana. Frank Rich, produtor executivo de Succession, conversa com David Sirota sobre a crítica que o programa faz aos media corporativos e o que tornou a série tão atraente.
Succession
Succession. Imagens HBO

O premiado drama da HBO, Succession - simultaneamente um drama familiar, uma sátira mordaz dos ultrarricos e uma representação realista dos media corporativos - chegou ao fim. Na semana passada, David Sirota, editor da Jacobin, falou com Frank Rich, colunista da revista New York e ex-colunista do New York Times, que é produtor executivo da série desde a primeira temporada. Os dois falaram sobre a criação de Succession e sobre os vários temas que a série tem explorado, desde a crítica aos meios de comunicação social tradicionais até à fragilidade da democracia americana. Esta transcrição foi editada para maior clareza.

David Sirota: Quero fazer uma pergunta sobre o significado do programa, no sentido em que é um programa sobre uma empresa de comunicação social, a sucessão dos filhos e um magnata da comunicação social. Este programa é sobre os ricos? É sobre a indústria dos media? É sobre mim? O que é que esta série tem de central, para além de ser apenas uma série sobre uma família rica?


Frank Rich, colunista e produtor televisivo.

Frank Rich: Eu responderia à pergunta mais ou menos ao contrário. Começamos com as personagens de uma história. Começamos com uma família - esqueçamos a profissão que têm, ou mesmo o seu escalão económico - uma família onde há um pai que não quer parar, que é um péssimo pai, que põe os filhos uns contra os outros para o suceder no negócio, e também pelo seu amor como pai - quem é que ele mais ama, se é que ama.

Os outros aspetos são temas que surgem, como acontece em todos os bons dramas, das próprias personagens e das suas relações. Por isso, muitas pessoas referiram - discutimo-lo na sala, etc. - semelhanças óbvias com o Rei Lear. Mas não é que tenhamos começado e dito: "Vamos fazer o Rei Lear".

Essa comparação é de certa forma reforçada pelo facto de Brian Cox, como ator de teatro, ter feito um dos grandes Reis Lear do passado, provavelmente da era pós-Segunda Guerra Mundial. Mas uma produção moderna poderia encenar o Rei Lear numa empresa de comunicação social e fazer a mesma peça, e diríamos: "Oh, é sobre uma empresa de comunicação social".

Queríamos contar a história de uma família. Queríamos fazê-la neste mundo, que tem tanto impacto na vida de toda a gente nesta era - esta era contínua de crescimento dos meios de comunicação social que, mesmo no decurso dos seis anos e meio ou sete anos em que trabalhámos na série, expandiu o seu alcance.

Mas acho que a série funciona também por causa das personagens, tanto na forma como são escritas como na forma como são representadas. Claro, tem coisas a dizer sobre os media, sobre política, sobre desigualdade, sobre classe. Mas, no fundo, é sobre três irmãos e uma mãe e um pai, um patriarca.

O teu passado é no New York Times, na revista New York; tens claramente muita experiência no mundo dos media políticos que esta série retrata. A equipa de redação recorre a ti quando discute enredos sobre o ramo das notícias ou sobre o funcionamento de uma redação? Por outras palavras, os diferentes argumentistas têm especialidades diferentes que trazem para a mesa quando escrevem algo deste género?

Não sou argumentista no programa; sou produtor. Se tenho ideias ou falas que, por vezes, acabam por lá entrar? Claro. Por isso, estou lá. Se houvesse um equivalente jornalístico, [o meu papel seria] quase como um editor, até certo ponto, a ler guiões, a falar sobre guiões.

As pessoas pedem os meus bitaites, mas, com franqueza, o nível de detalhe que os argumentistas querem - a começar por Jesse Armstrong, que criou a série - é tão intenso que não me posso considerar um especialista em particular. Desde o início, recorremos a consultores que foram mencionados nos créditos em várias áreas.

Por exemplo, tivemos uma consultora, Marissa Mayer, que durante muitos anos cobriu a área dos media, dos negócios nos media para o Wall Street Journal. Ela ajuda-nos com questões muito específicas sobre os meios de comunicação social e o lado empresarial dos meios de comunicação social de que eu não sei nada - ou sei como leitor de jornais ou de ouvir mexericos no Times quando lá estava, ou o que quer que seja.

Depois, nesta temporada, em que há uma forte orientação para a ATN, a rede de tv fictícia, trouxemos - e também usámos na temporada passada - Jon Klein, um antigo presidente da CBS News e da CNN; porque o enredo envolve uma eleição contestada, veio Ben Ginsberg, um advogado de George W. Bush no caso Bush vs. Gore; Eric Schultz, que é estratega e conselheiro para os media de Barack Obama e ainda está na pós-presidência - enfim, todo o tipo de pessoas.

Até trouxemos pessoas que sabem escrever oráculos, porque somos todos viciados em media no programa. Mas eu diria que o que mais distingue os argumentistas - o que distingue a minha paixão pelo programa, a do Jesse e a de todos os argumentistas - são as personagens.

Veja-se o caso de um argumentista que ajudei a recrutar e que trabalhou nas duas últimas temporadas, Will Arbery. Will Arbery é um jovem dramaturgo brilhante; foi segundo classificado para o Prémio Pulitzer mesmo antes da pandemia. Vem de uma família católica muito conservadora, intelectual e religiosa. A sua peça de estreia passa-se no mundo desse tipo de intelectual católico de direita. Portanto, ele sabe muito sobre isso. Mas a razão pela qual eu queria que ele se juntasse a nós - não é tanto essa experiência que é útil, mas porque ele escreve estes personagens comoventes, alguns dos quais têm políticas odiosas.

Lucy Prebble, que é uma brilhante dramaturga britânica que trabalha no programa como argumentista, escreveu a peça Enron que foi apresentada na Broadway. Mas também é uma viciada em media e escritora de comédia. Por isso, as pessoas são muito completas. O que não estamos a fazer é um docudrama. A propósito, se olharmos para os trabalhos anteriores de Jesse, muitos deles não têm nada a ver com política ou com os media, incluindo a sua série britânica de sucesso. Embora eu o tenha conhecido quando ele escreveu um episódio de Veep, o último episódio da primeira temporada. Foi aí que começámos a nossa relação criativa.

É importante que os factos sejam correctos, e queremos mesmo que o sejam, e dedicamos muito tempo a isso. Mas essa é a parte mais jornalística e menos criativa da montagem do programa. [É possível ter todos os factos correctos e ter um programa morto, se as personagens não tiverem paixões, corações e mentes que nos interessem independentemente do assunto que estão a discutir.

A série é realmente uma crítica incrível ao capitalismo, aos media corporativos e, obviamente, falando das personagens, às pessoas que gerem essas máquinas e essas instituições. Parece que uma das conclusões de Succession é que, para nadar nessas águas e chegar ao poder, tem de haver algo de intrinsecamente corrupto ou desumano na forma como se trabalha, na forma como se trata as outras pessoas.

Achas que há algum aspeto dos meios de comunicação tradicionais, dos meios de comunicação de elite, ou do que lhe quisermos chamar, na vida real, que esta série defenda? Ou é tudo uma gigantesca condenação?

Essa não é bem a forma como olhamos para a coisa; é uma visão muito sombria. E estamos a tentar deixar as personagens irem para onde forem. Não estamos a predeterminar como as pessoas vão agir.

Na verdade, um dos grandes exercícios na sala é ... a história está a acontecer com, digamos, Tom e Shiv e Greg ou quem quer que seja. E se o Greg se sentisse assim? E se o Roman se sentisse assim? E experimentamos isso, tentamos encontrar a verdade humana. Porque, na verdade, a parte mais fácil é: "Ah, eles fariam isto. Eles manipulariam o rumo de uma eleição."

Essa é a parte mais fácil. Mas a forma como cada um se comporta nesse momento é o que nos leva lá. Nunca está predeterminado. E uma das coisas mais interessantes do programa é que tudo está sempre em cima da mesa, em constante evolução. Parece um organismo vivo. Tem sido reforçado por um elenco que, no final de uma temporada, interiorizou tanto os papéis - e nós interiorizámo-los tanto - que, embora não estejam a escrever as suas próprias falas, no caso de alguém improvisar uma fala, isso também se torna parte deste organismo.

Por exemplo, a morte do Logan. Na verdade, falámos em matá-lo na primeira temporada, quando fizemos o episódio piloto, que termina com um AVC. Ainda não tínhamos decidido que ele continuaria vivo. Depois, quando a série foi escolhida pela HBO, tivemos um período de três ou quatro meses; criámos uma sala de guionistas e começámos a produzir guiões, e o assunto manteve-se vivo durante algum tempo.


O ator Brian Cox no papel do magnata Logan Roy.

 

Pensámos em matá-lo na anterior temporada e analisámos as várias possibilidades. E depois, se o matássemos, em que episódio? E talvez não... A ideia do Jesse foi sempre que não o fizéssemos no último episódio da temporada, com toda a gente reunida à volta do leito de morte. De qualquer forma, já tínhamos feito isso quando se pensou que ele ia morrer no segundo episódio da primeira temporada.

Tudo está em aberto e não predeterminado. E há uma visão mais alargada, penso eu, que se torna clara, da meta imagem de onde a série acaba. Mas não é nada de que eu possa falar, porque se tornará claro para o público no final da série.

Devo dizer que todas estas personagens parecem humanas, no sentido em que muito poucas delas são bidimensionais. São capazes de nos surpreender, têm nuances.

Algumas das políticas das próprias personagens... Kendall, por exemplo, é apanhado entre o mundo empresarial e as políticas do pai, que são do género de Rupert Murdoch - mas também tem uma mulher afastada e uma família que é presumivelmente mais liberal. Ele compreende a política do pai, mas também tem a sua própria política, e anda para trás e para a frente.

Depois, Shiv é obviamente muito clara: é democrata. Vamos falar um pouco sobre essa escolha, porque é uma das escolhas mais importantes que a série fez. Shiv está dentro deste mundo de Rupert Murdoch, no qual é conhecida na imprensa, em público, como democrata, ao ponto de ter sido, a dada altura, consultora de um senador democrata proeminente.

Essa escolha não parece ter sido por acaso. Pergunto-me qual terá sido a matriz da escolha por detrás disso, se nos pode dar alguma informação sobre o assunto - por que razão era importante para ela ser uma democrata conhecida e assumida.

Penso que por razões do próprio enredo. Não creio que tenha havido uma grande ponderação sobre isso. Não se quer que todas as personagens sejam iguais, porque se sacrifica o drama se todos forem iguais. Uma pessoa assim poderia existir numa família muito conservadora, mesmo numa família conservadora dos media. E lembrem-se que ela não é a democrata mais leal; é uma espécie de centrista democrata oportunista, como a descrevo.


A atriz Sarah Snook no papel de Sihoban "Shiv" Roy, filha do magnata.

 

Quer seja a filha dos Murdoch que está a tentar ser liberal ou a sobrinha dos Disney que está a tentar ser liberal - todas estas famílias têm essa pessoa, e isso torna tudo mais interessante. E penso que caracterizou corretamente as outras políticas que mencionou.

Mas veja um personagem como Roman, que nesta temporada parece cada vez mais alinhado com Jeryd Mencken, uma espécie de candidato presidencial populista e quase fascista. É nisso que ele acredita realmente? Não sei se consigo responder-lhe.

Uma das coisas que se revela é que as suas políticas são transacionais ou, se não são transacionais, são apenas uma espécie de ... ela é democrata, ele é republicano ou está alinhado com os republicanos neste momento, porque é o que se adequa.

Não creio que sejam de todo ideológicos. No entanto - vamos explorar isso por instantes. Já vimos todas estas personagens que têm política, mas a política é o que os ajuda a navegar no mundo empresarial. Mas na noite das eleições, Shiv exprime de facto uma espécie de ideologia de fundo, no mínimo sobre a própria democracia. Pelo menos no caso dela, a ideia chegou mesmo a uma essência.

E depois, claro, Roman diz: "Nada importa realmente". Mas houve um pouco de admissão de que existe ali uma essência, o que, francamente, foi um pouco surpreendente. Porque, durante algum tempo, pensamos: "Não sei se estas pessoas têm uma essência." Eu não tenho a certeza. Não sei onde está esse núcleo.

Por outro lado, se Lukas Matsson estiver pronto para se aproximar de Mencken, ela pode perder a sua essência, por isso... é complicado. Acho que o importante que disseste é que é transacional. O Kendall vê-se a si próprio como tendo uma essência. Ele tem filhos de cor e não quer que eles tenham um presidente racista. Quando ele está a discutir com a ex-mulher, sentimos que ele acredita mesmo nisso. Mas depois surge algo transacional. Penso que essa é a verdadeira lição.


Os atores Alan Ruck e Kieran Culkin nos papéis dos irmãos Connor Roy e Roman Roy na noite eleitoral da estação televisiva.

 

Foi fascinante para mim o facto de o colunista muito conservador do New York Times, Ross Douthat, ter escrito este comentário, com o qual me deparei há alguns dias, em que diz muitas coisas boas sobre o programa: capta a direita louca, especialmente online; capta os Menckens deste mundo; capta o cinismo dos executivos do tipo Murdoch que, pelo menos, fingiam gostar do seu trabalho antes. Mas ele disse que o que fica de fora do programa são - ele usou a expressão "os republicanos normais", que não gostam da loucura, não gostam basicamente do MAGA, mas continuam a participar nos meios de comunicação conservadores porque continuam a ter mais medo da esquerda do que da direita louca.

Há anos que andamos a falar sobre: E se houvesse um Trump que fosse realmente sedutor e não um rufia de merda, um parvalhão em público? Estas são as minhas palavras, não as do programa. Mencken é a versão típica de alguém assim, que é inteligente, espirituoso e duro. É um vilão muito mais interessante, e não é um cretino.

Os republicanos normais neste programa, na minha opinião, são Kendall, Karl, Hugo, Gerri. Eles estão lá, e são apresentados como completos colaboracionistas com esta coisa horrível que está a acontecer na sua própria empresa.

Achei isto fascinante. Esse tipo de pessoa - Peggy Noonan ou quem quer que seja - está no programa. Não estamos a basear-nos literalmente nela ou em qualquer membro do conselho editorial do Wall Street Journal. Mas esse é exactamente o tipo de republicano normal que ajuda e é cúmplice da ascensão de um Trump e ajuda e é cúmplice da ascensão de um Jeryd Mencken. Por isso, talvez se sinta muito bem com o posicionamento político do programa, porque ele realmente irritou alguém que não via que o seu próprio grupo estava representado mesmo à frente dos seus olhos por meia dúzia de personagens.

Agora quero falar de Mencken, porque não o considero uma personagem tão odiosa como é referida no programa. Não me considero alinhado com a política de Jeryd Mencken, mas tenho estado mortinho por te fazer esta pergunta: não vês Jeryd Mencken como um horrível fascista de direita, pois não?

Ele é referido como um fascista de direita, como se fosse uma pessoa horrível. E há uma série de suposições. Há algumas partes em que está a falar com Roman e está a fazer uma espécie de jogo de bastidores, mas em público apresenta-se como um tipo com princípios, ideológico, "Pode não concordar comigo, mas estou aqui para dizer a verdade", o que contrasta com as outras personagens do programa, que são pessoas do tipo "não tenho uma verdadeira orientação", transacionais.

Quase se consegue perceber o apelo de um político como este num mundo em que as pessoas consideram que as elites não têm qualquer sentido moral. Por outras palavras, "vou votar em alguém que tem princípios, mesmo que não concorde com eles", para basicamente fazer explodir uma bomba numa bolha corporativa completamente corrupta.

Há alturas em que é evidente que ele é de direita, especialmente na última temporada - aquela conversa na casa de banho do hotel entre ele e o Roman. Mas o que eu gosto, e isto aplica-se a várias outras personagens da série, é que temos um ator de enorme inteligência e charme, neste caso Justin Kirk, um grande ator que eu sigo desde que ele era um jovem ator de teatro.


O ator Justin Kirk no papel de Jeryd Mencken, o candidato dos Republicanos à presidência dos EUA.

 

Há anos que andamos a falar sobre: E se houvesse um Trump que fosse realmente sedutor e não um rufia de merda, um parvalhão em público? Estas são as minhas palavras, não as do programa. Mencken é a versão típica de alguém assim, que é inteligente, espirituoso e duro. É um vilão muito mais interessante, e não é um cretino. Ele não é Roger Ailes; ele não é Trump. Ele nem sequer é Josh Hawley.

Por isso, acho que tens razão em pensar assim. Mas é a mesma coisa com outras personagens da série, incluindo por vezes Kendall, por vezes Logan - que às vezes é o mais inteligente da sala, não se deixa enganar de bom grado e tem algum tipo de auto-consciência. Mais uma vez, acho que a decisão é não fazer de Mencken o cliché, o cuspidor de fogo... não fazer dele um Brett Kavanaugh e não fazer dele um Trump, não fazer dele um desses brutamontes.

Não diria que se trata de uma vaidade liberal do programa, mas penso que há algo que é... Disse isto ao Adam McKay, que esteve envolvido na criação do programa: o que me assusta no Jeryd Mencken é que o programa retrata as eleições como renhidas, mas se o Partido Republicano nomeou um Jeryd Mencken, há um mundo em que essa eleição não é renhida, em que essa eleição é de quatrocentos votos eleitorais...

Agora, talvez não por causa do mapa vermelho-azul, mas onde quero chegar é... muitas pessoas no episódio das eleições lembraram-se da noite das eleições, Donald Trump 2016. Já agora, isso afetou-me bastante, porque eu estava a conviver com alguns elementos do elenco nessa noite, eles estavam em Nova Iorque para a uma leitura em casa do Adam.

Sim, fizemos a leitura nessa manhã. A razão pela qual eu estava nessa festa é que tinha de escrever sobre as eleições para a revista New York, com prazo de entrega nessa noite.

Vi o Jeremy Strong na estreia do Don't Look Up e não sabia se ele se ia lembrar de mim. Ele veio ter comigo e disse: "Meu, ainda penso naquelas conversas que tivemos em 2016. Tu e o McKay assustaram-me - disseste que parecia que o Trump ia ganhar. Eu não queria acreditar em vocês. E de facto aconteceu".

O que estou a querer dizer é que muitas pessoas parecem retirar: "Oh, eu lembro-me. É a noite de 2016, como é assustadora, e foi tudo renhido, e quem é que vai decidir?" Parte do que retirei desse episódio foi que estão a ser simpáticos comigo ao dizerem que esta teria sido uma eleição renhida.

Mas eu vejo em Jeryd Mencken, se o Partido Republicano alguma vez se apercebesse e conseguisse criar um processo de nomeação em que conseguisse arranjar um Jeryd Mencken, que à superfície parece simpático, carismático, com princípios, etc... Esse é um cenário de pesadelo para o país.

E eu sempre disse isso e escrevi sobre isso. Se temos de ter um Trump, graças a Deus que é o Trump, que é pouco atraente e incompetente na sua maioria. Dito isto, não se pode fazer uma tradução literal para o nosso mundo ficcional, porque não sabemos nada sobre Daniel Jimenez, o seu adversário. Tanto quanto o público sabe, Jimenez é Jack Kennedy vezes três, o seu carisma e assim por diante. Ele quase não é visto no programa. Por isso, percebo a sua tese, mas acho que é uma espécie de maçãs e laranjas compará-la com um mundo fictício como o nosso.

Já agora, só para questionar um pouco a premissa, pode ser que as duas coisas não andem realmente juntas. Pode ser que - sabe, Hitler era um lunático cómico. Não estou a fazer uma comparação superficial de Hitler com Mencken ou Trump, mas... Joe McCarthy era uma pessoa maluca e aparecia assim na televisão.

É tudo muito especulativo. Mas o facto é que também olhamos para o Partido Republicano e sentimos que não têm essa pessoa. Ron DeSantis não é. Ron DeSantis, penso eu, acha que é essa pessoa. Mas, na realidade, parece uma criança.

O McKay e eu estávamos a debater isto há uns anos. Eu disse: "Se os republicanos conseguirem chegar a um ou dois níveis mais normais do que Trump, uma espécie de autoritário inteligente, isso seria perigoso". McKay respondeu-me: "Não creio que o processo de nomeação do Partido Republicano possa produzir isso. Acho que vão produzir, tipo, a Marjorie Taylor Greene, ou alguém ainda mais circense e ainda mais louco, porque é esse o tipo de corrida ao armamento do lado deles."

O Adam pode ter razão ou não. Veja-se o que se está a passar agora com o aborto nos subúrbios [a deslocação do eleitorado feminino suburbano dos Republicanos para os Democratas]. Eles não sabem o que raio estão a escolher.

Mas eu voltaria à sua premissa inicial. Se alguém como um Mencken, interpretado por alguém como Justin Kirk, com esse tipo de mistura de seriedade cristã e política conservadora estivesse a concorrer contra um democrata genérico - digamos, Joe Biden - talvez não estivesse perto. Mas ele está a concorrer contra Jimenez, e ele não existe no Partido Republicano e, tanto quanto sabemos, Jimenez sobrevive a uma tentativa de assassinato ou algo do género.

Deixa-me fazer-te uma pergunta sobre a reação dos meios de comunicação social ao programa. Este programa tem um público particularmente grande e muito online e muito entusiasmado por ser fã do programa entre os media, o que não é surpreendente. Há a velha frase da Broadcast News: "Nunca te esqueças que a verdadeira história somos nós, não eles", que é uma das grandes frases de toda a história do cinema, na minha opinião.

A questão que por vezes se coloca é: será que os meios de comunicação social de elite, essa espécie de bolha, não compreendem que existe uma crítica profundamente cortante e uma raiva latente contra esta bolha mediática em que se encontram?

Sabes a resposta a essa pergunta, e suspeito que depende da pessoa com quem falares. Porque também há, como sabes enquanto jornalista, um certo tipo de masoquismo em ser jornalista. Talvez se queira isso.

Mas acho que é difícil generalizar. Não imagino que alguém pense que é encantador, a não ser que trabalhe para a Fox News. Gostaria de saber o que é que as pessoas que trabalham para a Fox News ou para a Newsmax ou o que quer que seja pensam disto.

 O ator Jeremy Strong no papel de Kendall Roy.

 

Se não estou em erro, não há uma única personagem nesta série que seja um intrépido jornalista, certo?

Certo.

Há uma diferença entre media e jornalismo, não é? Isto são os media.

Tens razão. Não temos um jornalista intrépido. Temos os media, temos os pivôs. Temos uma espécie de Tucker Carlson, um opinador. Não é um programa sobre jornalismo, na verdade. É sobre um império que controla o jornalismo, ou tenta controlar.

Há alguma consternação, ou ... querem que os media gostem das vossas coisas? Toda a gente gosta de aprovação. Mas há alguma coisa do género: "Espera aí, não quero que gostem disto, porque tem a ver com ..."

Não, não queremos. Há pessoas que não gostam. Na primeira temporada, recebemos críticas muito más, tanto no Times como no Washington Post. Não é assim que eu penso sobre isso. Talvez outras pessoas pensem assim.

Além disso, não se pode generalizar. Tenho muitos amigos nos meios de comunicação social que são fãs do programa, e penso que são espectadores sofisticados e que gostam do programa mesmo que este os ataque, e não estão a dizer: "Gosto do programa porque enaltece o nosso negócio". Penso que exprime algumas das suas próprias queixas sobre o negócio, e não apenas sobre pessoas como os Murdochs ou outros parecidos.

 Personagens principais da família Roy.

Pelo menos entre estas personagens específicas - mas, obviamente, estas personagens são, de certa forma, referências a forças maiores -, voltando à questão da amoralidade, a sua ideologia transacional: esta visão dos media corporativos é uma visão das pessoas que tomam estas decisões... Têm princípios bastante fluidos; têm filiações políticas bastante fluidas, ideologias bastante fluidas que mudam em diferentes circunstâncias.

Se é essa a visão, é uma visão bastante sombria, como já dissemos. É essa a realidade, na sua opinião, tendo trabalhado nos media durante tanto tempo? É essa a realidade que vai ser imutável ou existe uma versão diferente, num futuro alternativo ou num país diferente, numa sociedade diferente, em que os meios de comunicação social têm um aspeto diferente deste, em que não é tão sombrio?

Não posso dizer que sei a resposta. Os media estão a mudar e a evoluir tão rapidamente que é difícil saber. Vejamos o caso do Times, por exemplo. É uma das últimas destas grandes empresas que ainda é propriedade da família original, que por vezes pode violar os seus princípios, mas fundamentalmente é bastante íntegra. Embora tenhamos uma família que é um pouco ao estilo de Sulzberger, a família Pierce, em Succession, Nan Pierce, pela quantia certa de dinheiro, é como a família Bancroft que vendeu o Journal a Murdoch.

Ao pensar na série, nem tudo está pré-determinado. A política, os temas, os julgamentos morais. Uma das coisas mais interessantes para mim, ao ver esta série e ao estar criativamente no processo há quase sete anos, é que é um organismo vivo; evolui realmente. Há uma série de atores que foram escalados para papéis secundários e terciários que são tão bons e dão tanta vida à série que acabamos por construir os papéis para eles.

Veja-se o caso do Times, que felizmente está a atravessar um período de grande sucesso comercial. Teve verdadeiros sobressaltos durante a transição para o digital, mas é um sucesso, sobretudo com os jogos e as receitas a financiarem grande parte da cobertura noticiosa, o que é ótimo. Não há nada de imprudente nisso; é uma forma de sobreviver. Mas para mim é uma indicação de como as coisas estão a mudar.

Esta é a última empresa familiar próspera, e o que é que se segue? Quem sabe? Quem poderia imaginar o que aconteceu à Time Inc., à Tribune Company, à CBS News, à CNN? Todas elas foram terrivelmente comprometidas. Na sua maioria, estão muito longe da sua missão original.

O Washington Post também tinha uma dessas grandes famílias, a família Graham. Obviamente, agora é Jeff Bezos. Está a correr bem e não foi comprometido. Mas não sabemos quanto tempo é que isso vai durar se esse bilionário perder o interesse na empresa ou decidir que, a seguir, está nas mãos de Elon Musk ou de [o agora falecido] Sam Zell ou de quem quer que seja.

E com todas as regras a mudar tão rapidamente, será diferente. Algumas delas podem muito bem ser honradas. Há muitas coisas boas a acontecer no jornalismo, se soubermos onde procurar. E há muitas pessoas com princípios que estão nisto pelas razões certas, não necessariamente os proprietários, mas ocasionalmente um ou dois proprietários.

Mas será que as pessoas vão mesmo querer aquilo a que chamamos os meios de comunicação social, daqui a dez anos? Ou será que preferem, na versão estúpida do cliché, receber as notícias do TikTok e extrapolar os factos a partir da cultura? Simplesmente não sei. Nunca poderia ter previsto metade das coisas que aconteceram.

Já agora, a personagem de Matsson vai um pouco ao encontro desta ideia. Ele é uma espécie de esquisito; não tem verdadeira experiência nos media, tanto quanto se pode ver pelo que faz a empresa dele. Isto é apenas uma jogada de negócios para ele.

A um certo nível, é um bocado ridículo. Vais ser dono de uma empresa de comunicação gigante de Rupert Murdoch, ou de personagens semelhantes a Rupert Murdoch. Digam o que disserem dele, Logan é um profissional dos media, um construtor de media, um perito em media. Matsson aparece como um novato e parece ridículo. Mas ele também parece ser o futuro, não é?

Esta é outra personagem da série de que me orgulho muito, porque aquele tipo não é um cliché de Silicon Valley. Não é o Elon Musk. É um pouco como Mencken - não necessariamente em termos da sua política, na medida em que a tem, mas tem muito charme e inteligência. E Alexander Skarsgård é um ator fantástico.


Shiv contracena com Lukas Matsson, o magnata das novas tecnologias interpretado pelo ator Alexander Skarsgård.

 

Ao pensar na série, nem tudo está pré-determinado. A política, os temas, os julgamentos morais. Uma das coisas mais interessantes para mim, ao ver esta série e ao estar criativamente no processo há quase sete anos, é que é um organismo vivo; evolui realmente. Há uma série de atores que foram escalados para papéis secundários e terciários que são tão bons e dão tanta vida à série que acabamos por construir os papéis para eles.

Por exemplo, o exemplo clássico é J. Smith-Cameron, que interpreta Gerri. Essa personagem foi originalmente concebida como um homem: era Jerry, J-E-R-R-Y. Depois pensámos que seria bom misturar as coisas, ter uma mulher executiva nesta corporação conservadora e rígida. Temos uma atriz brilhante que foi uma grande atriz de teatro durante anos em Nova Iorque e que se torna muito interessante na sua relação no ecrã com Kieran [Culkin]; eles são amigos. O marido de Smith-Cameron, Kenny Lonergan, é um grande dramaturgo e argumentista, e ambos atuaram juntos em filmes de Kenny.


A atriz J. Smith-Cameron no papel de Gerri Kellman, conselheira da empresa. 

Um exemplo mais recente: há uma atriz chamada Zoe Winters, que interpreta Kerry, a última amante de Logan. Ela era invisível para a maioria do público porque estava na série, talvez no final da segunda temporada, mas apenas como uma assistente sem nome e sem rosto de Logan, normalmente a carregar um telefone atrás dele. Vimo-la numa peça do já mencionado Will Arbery, na Broadway, e estávamos a pensar em dar a Logan uma amante mais jovem que adensasse o caldo do Succession, e dissemos: "Merda, vamos fazer a amante esta personagem, porque esta atriz consegue fazê-lo."

Alexander Skarsgård seria sempre uma pessoa de destaque na série, mas penso que Jesse Armstrong, tal como todos nós, ficou tão impressionado com a versão fresca e sem clichés da sua personagem que o construímos. E, em certa medida, isso pode ser dito sobre o Justin no papel de Mencken.

Há outros exemplos também, e o que isso diz sobre o programa, para mim, é que não é ideológico, e não se trata de encaixar as pessoas numa mensagem. Trata-se de pessoas que têm vida própria, e a mensagem evolui a partir da apresentação mais verdadeira que podemos fazer destas personagens vivas, tanto na forma como são escritas como na forma como são representadas.

Conheço-te através da tua escrita durante os anos Bush e Obama. Não estou a dizer isto só porque estás aqui: eras uma das poucas pessoas que eu lia e pensava: "Graças a Deus que alguém percebe". Era para pessoas que pensavam e que não queriam apenas coisas vermelhas e azuis, que queriam uma análise mais profunda e honesta. Senti que eras como um farol de luz numa época muito negra, tanto nos anos Bush como nos anos Obama, com a crise financeira.

Então, estavas a fazer isto e depois passaste para este tipo de trabalho em que estás a ajudar a criar estes programas, que são retratos - em Veep, do mundo político, em Succession, do mundo dos grandes grupos de media.

Como é que foi essa transição, de participar todas as semanas muito publicamente no mundo político, e depois passar para o mundo em que está agora? Sentes falta de intervir? Esta é uma forma diferente de intervir? Gostava de saber se estás satisfeito com o teu trabalho e como encaras essa transição.

Vou tentar dar a resposta curta. Antes de mais, cresci em Washington, DC, rodeado de políticos. A minha família não estava ligada à política, mas eu sempre fui um viciado em notícias e política. Mas também era um maluquinho do teatro, era obcecado por teatro e ainda sou. De facto, antes de ser colunista de opinião no Times, fui o principal crítico de teatro durante treze anos. E num período da era Reagan, muitas das grandes peças que critiquei - por exemplo, Angels in America e peças de August Wilson - tratavam de política.

Como colunista durante os anos Bush, tive opiniões fortes sobre isso, como disseste. Também sobre Obama, mesmo quando ele era menos bem sucedido do que se poderia desejar. Mas, na altura, alguém me perguntou se eu queria juntar-me a um grupo de vários jornalistas que trabalham na HBO - era um trabalho paralelo quando eu ainda era colunista no Times - para falar sobre programação numa altura em que estavam a passar por uma grande transição. Não pensei que fosse necessariamente dar em alguma coisa.

Devo dizer que me apaixonei pelo trabalho e estava entediado a escrever uma coluna. Há catorze anos que me dedico a estas coisas. Nunca sinto falta da crítica teatral. Não tenho saudades de ser colunista. A propósito, continuei a escrever artigos de opinião sérios e, espero, ainda mais profundos para o Times e a revista New York quando comecei esta carreira.

Mas, por fim, o trabalho, sobretudo em Succession, que se juntou ao do Veep, tornou-se tão grande que tive de o reduzir. Comecei a escrever um artigo por mês para a revista New York. Depois, passou a ser um artigo de três em três meses. Ainda faço parte da equipa e talvez volte a escrever. Mas isto combina apenas os meus interesses idiossincráticos, o amor pelo teatro e pelo panorama americano e o comentário sobre o panorama americano.

Uma outra coisa relacionada com o jornalismo. Uma das coisas de que senti falta no jornalismo nos últimos anos foi a sala de redação. Tenho a certeza de que sentiste o mesmo. Eu gosto de entrar na sala. Gosto da camaradagem, do ambiente de primeira página. Quando a digitalização aconteceu, isso desapareceu. Não havia razão para um espaço de redação. Ninguém tinha de entrar para entregar a sua cópia. Quando comecei a trabalhar no Times, era literalmente preciso entregá-lo fisicamente ou fazê-lo num processador de texto específico na sala de redação.

Quando se vai para um cenário de um programa, há 150 pessoas. São pessoas brilhantes, há artistas, há operadores de câmara que são artistas, há maquilhadores, há ajudantes de palco ou atores. Há pessoas que são malandras ou pessoas que são divas e tudo isso, e senti-me como se estivesse numa redação. Mas a melhor coisa é que se pode inventar tudo!

Por isso, tem sido um espetáculo. Penso que, para muitas pessoas da Succession, tem sido uma aventura tão boa - é difícil deixá-la ir. Mas acho que estamos a deixar ir da maneira certa e a sair do palco antes de nos começarmos a repetir demasiado.

Um dos melhores comentários que vi nas redes sociais foi sobre se a série está a terminar tornando as personagens tão horríveis que o espectador não se importa com o seu fim. É como se, pá, eu não aguento mais o Kendall ou...

Não, acho que não. Acho que o Jesse sempre teve uma ideia de onde a série iria acabar, e não estou a falar de pormenores da história. Estou a falar de temas, de qual era o seu veredicto final sobre estas pessoas e esta empresa. Isso vai tornar-se muito evidente no final.

Sempre soubemos o destino. A questão foi sempre a de lá chegar: quantas vezes se pode ter uma conversa sobre quem vai suceder a Logan? A certa altura, isso pode esgotar-se.


Os atores Matthew Macfadyen e Nicholas Braun nos papéis de Tom Wambsgans, o marido de Shiv, e Greg, o primo dos candidatos à sucessão.

Tanto as pessoas que trabalham na televisão ou no cinema como outras pessoas que conheço - quando anunciámos que esta era a última temporada, as pessoas disseram: "Oh, tiveram de mudar o final." E eu disse: "Não, sempre soubemos qual era o final." Não vamos matar toda a gente num terramoto. Percebem o que quero dizer? Não é esse tipo de programa.

Por isso, a questão era: qual era a melhor forma de lá chegar para sermos fiéis às personagens? Acho que nunca discutimos: "Oh, estas personagens são tão odiosas que as pessoas vão ficar fartas delas", porque as pessoas adoram-nas. Não sei, mas as pessoas adoram o Roman, adoram o primo Greg, adoram o Logan. Por isso, não, acho que as pessoas têm pena de se despedir deles porque são muito humanos, humanos com defeitos, muito antipáticos em muitos aspetos. Mas seguimo-los porque, a um certo nível, eles são humanos.


David Sirota é editor-geral da Jacobin. Edita o portal Lever e foi conselheiro e redator de discursos na campanha presidencial de Bernie Sanders em 2020. Escreveu com Adam McKay o argumento da sátira Don't Look Up, filme estreado em 2021 e nomeado para quatro Óscares. Frank Rich é produtor executivo da série Succession e colunista da revista New York. Anteriormente, foi produtor executivo da série televisiva Veep e escreveu para o New York Times. Entrevista publicada na revista Jacobin. Traduzida por Luís Branco para o Esquerda.net.

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