Ucrânia

Sobreviver em comum: como as condições extremas mudaram a vida dos ucranianos

01 de setembro 2024 - 14:10

Em várias aldeias perto da linha da frente, alvo dos bombardeamentos e sem eletricidade há mais de um ano, os habitantes organizam-se como podem para responderem às necessidades coletivas.

por

Oleksandr Kitral

PARTILHAR
vultos na escuridão
Imagem de Kateryna Hrytseva publicada em Commons

Há mais de dois meses que a população ucraniana sofre graves cortes de eletricidade devido aos ataques de rockets. E é provável que a situação se agrave consideravelmente neste inverno. No entanto, a vida mostra que é possível melhorar a vida quotidiana, mesmo perante cortes de energia que duram meses, se as pessoas se apoiarem mutuamente e se as autoridades locais fizerem o seu trabalho de forma desinteressada. É nesta perspetiva que se abordam as dificuldades descritas neste artigo.

Nas zonas da linha da frente da Ucrânia, muitas aldeias estão sem eletricidade há um ano ou mais. A situação complica-se ainda mais pela impossibilidade de proceder a trabalhos de reparação, uma vez que a zona circundante é regularmente bombardeada. No entanto, as e os habitantes conseguiram organizar condições de vida aceitáveis. Ajudam-se mutuamente de forma desinteressada, equipando-se, partilhando geradores, reparando as infraestruturas de transporte queimadas, distribuindo lenha nas zonas mais fustigadas e organizando um orçamento popular para cobrir as necessidades mais urgentes. Publicamos histórias sobre a vida dos habitantes de quatro aldeias nas regiões de Carcóvia (Kharkiv), Sume (Sumy) e Micolaíve (Mykolaiv).

“Toda a gente está numa situação semelhante”

A maior parte dos ucranianos sabe por experiência própria que os cortes prolongados de eletricidade conduzem à deterioração das condições de vida, incluindo problemas com a água, o aquecimento e as comunicações. No caso das regiões da linha da frente, que estão sujeitas a bombardeamentos regulares, é também difícil deslocar-se e transportar medicamentos e alimentos. No entanto, muitas pessoas optam por viver perto da linha da frente, mesmo em condições extremas: apesar do perigo, preferem ficar em casa. Viktoriia Kolodochka, chefe do distrito de Tokarivsky da autoridade local de Derhachi no oblast de Carcóvia, disse à Commons que quatro aldeias do seu distrito estão sem eletricidade há dois anos: Kochubeivka, Shopyne, Tokarivka e Hoptivka. Antes da guerra, viviam nestas aldeias 1.000 pessoas. Atualmente são 69, 50 das quais em Hoptivka.

Victoria Kolodochka
Victoria Kolodochka. Foto: arquivo pessoal

Com o tempo, as pessoas adaptaram-se à falta de eletricidade. Os frigoríficos não funcionam, pelo que os alimentos têm de ser preparados para uma única refeição. Os alimentos perecíveis (manteiga, sopas) são guardados em bacias com água, que é frequentemente renovada, para que os alimentos possam ser conservados até dois dias. A roupa é lavada à mão. A água é aquecida ao lume, mas a maior parte das vezes é utilizado gás de botija porque há problemas com a lenha na região. Não existem meios de comunicação nas aldeias. O sistema gratuito de satélite Starlink é ligado duas vezes por semana para que os habitantes das aldeias possam comunicar com as suas famílias.

Graças à participação ativa da starosta [NdT: cargo administrativo para representar os intereses de todos os residentes], da administração local autónoma e de voluntários, a população da região resolve o problema da falta de eletricidade com a ajuda de geradores. Muitas pessoas possuem também baterias. Mas o problema mais grave continua a ser o aquecimento. O Estado fornece lenha gratuitamente nas aldeias das zonas fronteiriças, mas há problemas de abastecimento. De acordo com Viktoriia Kolodochka, a lenha tem de ser transportada para a aldeia em carros com reboques, porque os camiões são alvejados. No entanto, não é possível transportar muita lenha de carro, pelo que, para terem tempo de a distribuir, têm de começar a armazená-la no final do verão.

É de salientar que as condições de vida extremamente difíceis não dividiram os habitantes da linha da frente. De acordo com Viktoriia Kolodochka, os residentes ajudam as pessoas que se encontram sozinhas e os deficientes: trazem água, limpam a casa e cobrem as janelas com película plástica. Os homens das aldeias vizinhas ajudam a entregar lenha, que trazem gratuitamente para Hoptivka nos seus próprios carros.

Cada um deles já passou por uma situação semelhante, pelo que tentam ajudar. Gostaria de acrescentar que o pessoal da starosta também se tornou muito mais amigável. Podemos mesmo dizer que criámos uma relação familiar. Estamos sempre em contacto, ajudamo-nos uns aos outros tanto quanto possível e partilhamos as nossas experiências, diz Viktoriia Kolodochka.

Atualmente, esta mulher, que vive na cidade vizinha de Dubivka, tem de trabalhar como assistente social, enfermeira e psicóloga, para além de ser starosta. Além disso, tem de visitar todos os habitantes das aldeias sem eletricidade, uma vez que a falta de comunicações não lhe permite chegar às pessoas de outra forma.

Criámos uma “estrada da vida”

Outro exemplo é a aldeia de Ryzhivka, na comunidade de Bilopilska, oblast de Sume, que se situa perto da aldeia russa de Tyotkino, no oblast de Kursk, e é alvo de bombardeamentos regulares. No outono de 2022, a aldeia ficou pela primeira vez sem eletricidade quando um projétil danificou uma linha eléctrica a 500 metros da fronteira. Mas graças à iniciativa de um residente local, o guarda florestal Sergei Anikin, a eletricidade foi restabelecida. Ele conseguiu convencer uma equipa de eletricistas a deslocar-se ao local do acidente, mas com o veículo de Anikin, uma vez que os veículos não locais estavam sob fogo. Os danos foram reparados, mas alguns meses mais tarde, a linha foi novamente bombardeada. Desta vez, os eletricistas recusaram-se terminantemente a lá ir por razões de segurança. Os habitantes da aldeia não conseguiram reparar a linha elétrica sozinhos, apesar de terem alguma experiência e as ferramentas necessárias fornecidas pelos eletricistas.

Sergei Anikin
Sergei Anikin

Ryzhivka está sem eletricidade desde a primavera passada. Os moradores escolheram Sergei Anikin para dirigir a aldeia porque ele estava ativamente envolvido no fornecimento de alimentos e na ajuda humanitária. Anikin diz que o seu trabalho como starosta prejudicou muito a sua saúde e quase lhe custou a vida. Foi atacado em várias ocasiões. Numa delas, chegou mesmo a ficar preso num fio elétrico, mas felizmente a mina não explodiu e Sergei e a mulher que ia atrás dele sobreviveram. Em várias ocasiões, o starosta limpou à mão secções da estrada repletas de minas. Diz que, no início, teve medo, mas depois habituou-se. Segundo Anikin, os habitantes de Ryzhivka habituaram-se rapidamente à ausência total de eletricidade e fizeram o seu melhor para se adaptarem.

Dois anos de guerra na Ucrânia

24 de fevereiro 2024

Foi difícil viver sem eletricidade durante os primeiros três dias. Depois começámos a adaptar-nos. Criámos um local para as pessoas, onde instalámos um gerador, e as pessoas podiam vir e carregar os seus telemóveis de manhã e à noite. Também utilizámos o gerador para fornecer água, porque a nossa aldeia tem um sistema centralizado de abastecimento de água, explicou.

De acordo com o starosta, os voluntários e as autoridades locais ajudaram parcialmente a população fornecendo geradores domésticos. Os residentes cooperaram frequentemente com os seus vizinhos e compraram um gerador para várias famílias. Tornou-se prática comum telefonarem-se uns aos outros e convidarem-se a recarregar telefones e baterias. O princípio é que se eu ajudar hoje, amanhã eles podem ajudar-me. Devido às estradas destruídas e minadas e aos bombardeamentos constantes, a aldeia está praticamente isolada. Os serviços governamentais e os voluntários não conseguem lá chegar. Um dia, as pessoas aperceberam-se de que a água tinha arrasado as estradas que podiam utilizar para sair da aldeia. A única solução era construir uma ponte sobre o ribeiro. Mas era perigoso, pois havia sempre o risco de bombardeamentos.

Um edifício em ruínas na aldeia de Ryzhivka
Um edifício em ruínas na aldeia de Ryzhivka.

Nessa altura, só restavam dez homens em condições de trabalhar. Propus construir uma ponte e eles apoiaram-me, ninguém teve de ser convencido. Todos compreenderam que estavam a construir para si próprios. Naquele momento, apercebi-me de que tinha apoio há muito tempo, que os rapazes me ajudariam sempre, explica Sergey Anikin.

Durante quinze dias, as pessoas trabalhavam por duas horas, porque nessa altura começavam os tiros de morteiro. No entanto, a ponte foi construída e, felizmente, ninguém ficou ferido. A aldeia sofreu um dia negro em março deste ano, quando quase 70% da aldeia foi destruída num bombardeamento pesado que durou cinco dias. Atualmente, apenas seis pessoas vivem em Ryzhivka, as restantes abandonaram a região.

Homens constroem uma ponte sobre um ribeiro na aldeia de Ryzhivka
Homens constroem uma ponte sobre um ribeiro na aldeia de Ryzhivka

Responsabilidade para com os outros

Outra aldeia da comunidade de Bilopilska, Oboda, está sem eletricidade há mais de um ano, restando apenas 65 dos seus 600 habitantes. A linha elétrica danificada que abastece a aldeia está localizada a algumas centenas de metros da fronteira e precisa de ser substituída ao longo de quatro quilómetros. As autoridades locais tinham planeado instalar um cabo subterrâneo a partir da aldeia vizinha de Katerynivka, mas problemas de licenciamento impediram a sua instalação.

O abastecimento de água é agora o maior problema da aldeia. Devido ao calor abrasador de julho, a água das lagoas e dos poços quase secou. No entanto, graças ao sistema centralizado de abastecimento de água da aldeia e a geradores potentes, os habitantes e os animais não passam sede, embora a água seja fornecida de hora a hora e as pessoas tenham de se abastecer por precaução. Muitas pessoas compraram geradores. De acordo com a chefe da aldeia, Olena Minakova, o plano era equipar várias casas com um gerador potente, mas devido à distância entre elas, abandonaram a ideia. Assim, as autoridades e os voluntários da comunidade ajudaram os moradores a comprar alguns geradores, enquanto os outros foram comprados pelos moradores a expensas próprias: algumas pessoas retiraram dinheiro das suas pensões, outras foram ajudadas pelos filhos. Quem quiser pode carregar os seus telemóveis no gabinete de starosta. Atualmente, não existe qualquer sistema de comunicação na aldeia, uma vez que a antena repetidora da aldeia vizinha foi danificada pelos obuses. Para contactar os seus entes queridos, os habitantes de Oboda têm de percorrer cinco quilómetros ao longo de uma estrada bombardeada, frequentemente ameaçada por drones FPV.

Olena Minakova
Olena Minakova

A ajuda humanitária, os medicamentos, o combustível e os alimentos são entregues na aldeia principalmente por Olena Minakova e pelo seu marido, que é motorista e desempenha também muitas outras tarefas. Antes da guerra, ela era responsável pelos assuntos sociais, mas depois de o anterior chefe da aldeia ter sido demitido por motivos de saúde, aceitou a oferta para se tornar starosta. Já podia ter partido há muito tempo, mas decidiu ficar com os seus companheiros porque se sentia responsável. O trabalho de Olena é difícil. Tem de tratar de muitos assuntos importantes, arriscando a vida nesse processo. Uma ou duas vezes por semana, Olena e o marido têm de sair da aldeia para satisfazer as necessidades das pessoas. Ao mesmo tempo, aviões, helicópteros e drones sobrevoam frequentemente a aldeia e ocorrem regularmente bombardeamentos.

Há minas ao longo das estradas e nos campos, e as estradas estão em tão mau estado que temos de conduzir a baixa velocidade. Não é assustador, mas fazemos a entrega e vamos logo embora”, explica Olena Minakova.

O casal tem um carro da empresa, um Lada. Um veículo que consome muito combustível, que é essencial para fazer funcionar os geradores da aldeia, e o município não pode fornecer mais. Por isso, Olena e o marido utilizam sobretudo o seu carro particular, que muitas vezes têm de abastecer a expensas próprias.

Apesar destas condições difíceis, Olena Minakova diz não ter notado qualquer depressão entre a população. As pessoas tentam manter a aldeia em boas condições, mantendo as estradas limpas e removendo as ervas daninhas das valas. Tentam ter uma aparência cuidada e vestir-se adequadamente. De acordo com a starosta, isto alivia as pessoas psicologicamente. Além disso, a comunidade esforça-se por resolver os problemas em conjunto.

Tenho notado que as pessoas se tornaram mais amigáveis. Vê-se isso nas pequenas coisas. Os vizinhos informam sempre os outros sobre a disponibilidade de ajuda humanitária. Se alguém vem ao gabinete da starosta, traz os aparelhos eletrónicos que as pessoas lhe deram para carregar. Na primavera, há um trabalho comunitário de plantação nas hortas. Utilizam tudo o que têm: um trator, um arado, um cavalo. Estão constantemente interessados na vida dos outros. Se alguém não sai, preocupam-se com ele e visitam-no, explica Olena Minakova.

Salienta que, apesar das dificuldades, os habitantes da aldeia continuam a acreditar que os tempos difíceis vão acabar em breve.

Criar os seus próprios recursos

Oksana Hnedko
Oksana Hnedko

A experiência dos habitantes da aldeia de Zelenyi Hai, na comunidade de Shevchenkivska, na região de Micolaíve, é interessante: após nove meses sem eletricidade e sob bombardeamentos, os seus habitantes criaram um fundo de autoajuda que lhes permite responder rapidamente aos problemas sociais locais. Zelenyi Hai ficou sem eletricidade em março de 2022. Um dos ataques à escola matou várias pessoas, incluindo o ancião da aldeia. Posteriormente, o chefe da comunidade de Shevchenkivska, Oleh Pylypenko, foi feito prisioneiro. Esta situação deixou a aldeia praticamente sem governo. Oksana Hnedko, residente em Zelenyi Hai e responsável pelos assuntos sociais da aldeia na altura, declarou que começou a ajudar ativamente os seus compatriotas a resolver dificuldades relacionadas com a prestação de ajuda humanitária. Ao mesmo tempo, estava constantemente a cuidar do marido no hospital: ele era diretor de uma escola e um dos que tinham sofrido com o bombardeamento da escola. No entanto, os médicos não conseguiram salvar a vida do marido.

As organizações humanitárias estavam dispostas a fornecer-nos ajuda, mas foi-nos pedido que fôssemos nós próprios a levá-la para a aldeia, devido à intensidade dos bombardeamentos. Assim, um dos nossos agricultores locais encarregou-se de transportar a ajuda humanitária para a aldeia. Também ligou os seus próprios geradores à torre de água, que ele próprio forneceu. Foi assim que as pessoas de Zelenyi Hai tiveram água apesar da falta de eletricidade, diz Oksana Gnedko, que é agora a starosta da aldeia.

As hostilidades em torno da aldeia terminaram em novembro de 2022. Nessa altura, muitas instituições de caridade vieram para a aldeia e não só ajudaram na reconstrução, como também instalaram potentes painéis solares para alimentar o abastecimento de água. As pessoas decidiram criar um fundo de autoajuda para poderem utilizar os seus próprios recursos para resolver rapidamente vários problemas da aldeia. Por exemplo, paisagismo, apoio, etc.

Compreendemos que algumas aldeias precisam de mais dinheiro do que nós para se reconstruírem. Por isso, decidimos utilizar os nossos próprios recursos para as apoiar. Realizámos uma reunião em que elegemos um tesoureiro que presta contas das nossas finanças. Financiamos o nosso fundo através de contribuições: 50 UAH por mês por pessoa, foi a decisão que as próprias pessoas tomaram. Parece pouco dinheiro, mas ao fim de algum tempo torna-se numa quantia considerável. Também decidimos todos os assuntos relacionados com as despesas na Assembleia Geral. Discutimo-las num grupo fechado no Viber, explica Oksana Gnedko.

A população já utilizou o fundo para fazer melhorias no cemitério e pavimentar a estrada de entrada, facto de que muito se orgulha. A starosta sublinha o interesse das pessoas em resolver os problemas em conjunto. “Para mim, esta aldeia é única porque as pessoas já eram unidas antes, mas durante a guerra tornaram-se ainda mais amigas”, conclui.

A experiência das pessoas das comunidades da linha da frente com quem falámos mostra que, embora seja extremamente difícil viver sem eletricidade, em situações extremas em que a ajuda do Estado é limitada, as pessoas são obrigadas a organizar-se. Nesta interação, a riqueza e o ganho pessoal cedem frequentemente o lugar a objetivos colectivos, de modo que as pessoas unem forças, ajudam ativamente aqueles que não podem cuidar de si próprios e abordam desinteressadamente os problemas sociais. Quanto mais os membros da sociedade participarem neste processo de construção de laços horizontais de solidariedade, mais as pessoas serão capazes de enfrentar os desafios de uma época em que confiar nas autoridades é inútil.


Oleksandr Kitral é jornalista. Reportagem publicada a 20 de agosto de 2024 em Commons e republicado em castelhano no Viento Sur. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.