Foi publicamente noticiada a realização de reuniões da CIP com ministros e com a UGT para apresentação e discussão de um “Pacto Social” proposto por aquela confederação patronal que pretenderia celebrar entre patrões e organizações sindicais. É um texto que vale a pena conhecer, analisar e responder criticamente.
O que o texto propõe, nas medidas concretas, é um efectivo assalto patronal às finanças públicas, com uma maior transferência da riqueza criada para o capital, redução dos impostos para as empresas, aumento dos benefícios fiscais e redução da TSU como modo de financiar aumentos salariais, consequente redução das receitas do Estado e da Segurança Social (e portanto justificando mais adiante os conhecidos discursos sobre rigor e controlo da despesa pública, leia-se cortes na despesa social), abertura de portas para a entrada em força do sistema financeiro no sistema de pensões através da imposição de regimes complementares privados.
Tudo isto é bem embrulhado em generalidades sobre ética e dignidade das pessoas, valorização do trabalho “árduo”, do conhecimento, da inovação, de partilha mais equitativa da riqueza e de criação de mais valor, mais emprego e melhores condições de trabalho, para justificar as propostas apresentadas em três eixos: crescimento, rendimento e simplificação administrativa.
Algumas notas apenas decorrentes de uma primeira leitura:
A própria introdução refere que o documento já “tem incorporado o resultado de um diálogo estruturado e regular desenvolvido ao longo dos últimos meses com a UGT”, como se contribuições desta central já tivessem sido consideradas na proposta, o que não foi desmentido pela UGT, sendo estranho, para quem pretende um pacto negociado entre movimento sindical e empregadores, que a CIP não dê sinal de qualquer diálogo, ou tentativa de diálogo, havido também com a CGTP-IN.
Os dados apresentados para justificar as medidas reconhecem o baixo esforço de investimento público (em 2022 ficou aquém do orçamentado em 1417 milhões de euros, no que é já uma péssima e habitual prática da governação); que a maior parte do crescimento do PIB em 2022 se deve sobretudo ao turismo (o que mostra o atraso da nossa estrutura produtiva, assente em baixos salários e que empurra os jovens para fora); e que, mesmo que sejam realizados os 2% de aumento anual da produtividade previstos no Acordo de Rendimentos celebrado na Concertação Social até 2026, não acreditam que seja possível atingir o objectivo proclamado de o PIB per capita português alcançar a média da União Europeia (ou seja, ao ritmo actual não vamos lá quanto às metas de elevação da parte dos trabalhadores na riqueza criada).
É nas medidas propostas que o diabo está escondido, e não nos dados de análise que as pretendem justificar. Os números, como se sabe, bem torcidos, dão para quase tudo. Destacamos algumas:
- Um substancial crédito fiscal para as empresas, dito “crédito fiscal para a competitividade e o emprego”, que seria constituído pelos aumentos salariais e pelos dividendos pagos aos trabalhadores (nestes casos, ainda com uma majoração adicional de 40%!), pelos resultados incorporados no capital e pelo investimento nos activos da empresa, cuja soma seria deduzida à matéria colectável apurada para efeitos de pagamento de IRC
- Uma taxa única de IRC reduzida para 17%
- Pagamento voluntário pelas empresas de um 15º mês com “neutralidade fiscal”, ou seja, com total isenção de IRS e de TSU
- Aumento salarial aparente de 14,75%, financiado com a redução da TSU, como “medida extraordinária de liquidez para as famílias”, a testar nos anos de 2024 e 2025, e que seria assim aplicado: só 4,75 iria aumentar o salário líquido e os outros 10% seriam incluídos em “planos individuais de reforma”, leia-se obrigatórios e privados
- Criação de planos privados complementares de reforma nas empresas, isentos de IRS e de TSU
- Redução em 50% da incidência de IRS e TSU sobre o trabalho extraordinário e subsídios de turno
- Para “promover a retenção do talento”, isentar de IRS os primeiros 100 mil euros auferidos por um jovem até aos 35 anos
O mundo do trabalho precisa na verdade de debater se aceita este “canto de sereia” que é um assalto de facto à sustentabilidade financeira da Segurança Social e às finanças públicas, convenientemente disfarçado na exploração das dificuldades e necessidades materiais dos trabalhadores como cobertura e justificação de mais fartos proventos para o capital, de que sobrariam algumas migalhas para o trabalho no presente à custa do seu maior prejuízo futuro. Ora a necessária redução do IRS (embora aflorada no texto) e o aumento da sua progressividade, reclamada pelos sindicatos, é outra coisa bem diferente e deveria inscrever-se, não na redução das receitas fiscais, mas numa mais justa repartição dos encargos com os serviços públicos e o bem comum, aumentando por exemplo a tributação efectiva das empresas lucrativas e dos movimentos financeiros e especulativos. E é imperativo um aumento efectivo e geral dos salários reais, não o proposto financiamento do Estado (por via fiscal e da redução da TSU) às empresas de magros aumentos, se queremos uma mais justa repartição da riqueza e aproximar a remuneração do trabalho em Portugal da média europeia, objectivo proclamado pelo primeiro-ministro e no Acordo de Rendimentos. Mas este é outro caminho que não interessa à CIP, que vem assim, com esta proposta e o disfarce deste discurso, tentar explorar em seu benefício as dificuldades de todos e do país.