Trabalho

"A semana de quatro dias não é para uma elite". Entrevista a Pedro Gomes

19 de setembro 2024 - 21:34

A proposta da semana de quatro dias tem criado debate sobre uma nova forma de organização da sociedade através do trabalho. Em entrevista exclusiva ao Esquerda, Pedro Gomes, que dirigiu o projeto-piloto sobre a proposta, fala sobre os obstáculos e as vantagens da sua implementação.

porDaniel Moura Borges

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Pedro Gomes
Pedro Gomes. Fotografia de João Azevedo

A semana de quatro dias tem-se tornado cada vez mais popular no debate da redução dos horários laborais e do aumento do tempo de lazer e descanso para os trabalhadores. A ideia de reorganizar a semana de trabalho nas unidades produtivas para garantir mais um dia de folga por semana é apetecível a largas camadas de trabalhadores, mas não está isenta de críticas. Há quem argumente que a proposta cria desigualdades ou não prevê certas realidades laborais.

A experimentação tem sido a principal forma de testar novas modalidades e formatos de adaptação para o modelo, mas essa experimentação não pode acontecer alienada das organizações sindicais e das comissões de trabalhadores. Para descobrir se a proposta é viável de forma generalizada, ou seja, se é possível que seja aplicada eficientemente à totalidade da sociedade portuguesa, ainda há muito trabalho a fazer, e é preciso ambição.

Quem o defende é Pedro Gomes. Economista e professor em Birkbeck na Universidade de Londres, dirigiu o projeto-piloto da semana de quatro dias. É também autor do livro Sexta-feira é o novo sábado: como uma semana de trabalho de quatro dias poderá salvar a economia e participou numa sessão do Fórum Socialismo 2024 sobre a semana de quatro dias, com o deputado José Soeiro. Esta quinta-feira foi ao parlamento a pedido do Bloco de Esquerda para participar num debate sobre a semana de quatro dias. 


Já frisaste no passado a importância de começar o debate da semana de quatro dias por explicar exatamente o que é. Porquê?

Porque o conceito não é propriamente claro. Não é tão objetivo como dizer 35 horas de trabalho [por semana]. É importante esclarecer que quando estamos a falar da semana de quatro dias, isso implica uma redução do tempo de trabalho da semana sem corte de salário. É uma mudança que não é individual. Não é de um trabalhador passar a trabalhar 4 dias, é uma mudança ao nível da organização da empresa. A empresa reduz as horas semanais, mas de uma forma muito particular, que é: coordenar essa redução em dias livres que são regulares. A semana de quatro dias condensa a redução em mais dias livres que são regulares, todas as semanas ou de 15 em 15 dias.

José Soeiro
José Soeiro

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Há também uma diferença entre falar da semana de quatro dias como uma luta laboral concreta ou como uma ideia para reorganizar a sociedade, aquela ideia de transformar a sexta-feira no novo sábado.

Sim, até porque no fim-de-semana há muitas empresas que trabalham, quer nas indústrias de lazer, quer nos serviços fundamentais. São duas coisas diferentes. Uma é poder-se organizar o trabalho numa empresa em quatro dias, mantendo o funcionamento a cinco, seis ou sete dias. Depois há uma pergunta que mais para a frente podemos fazer, que é se queremos coordenar esse dia livre como sociedade, alargar o fim-de-semana. É uma pergunta em aberto. Eu acho que sim, que no final vamos querer coordenar esse dia livre, mas essa questão não se põe agora. A questão que se põe agora é se queremos ter mais setores a experimentar e a aderir à semana de quatro dias.

A semana de quatro dias pressupõe uma articulação com uma semana de 36, 34 ou 32 horas. Como é que essas reduções se conjugam?

A ideal é a de 32 horas. Mas há empresas que dão passos intermédios, por exemplo, para 36 horas, alternando uma semana de quatro dias com uma de cinco dias. Dá mais um dia livre a cada duas semanas. Outras empresas reduzem para 34 e trabalham quatro dias, mas uma semana por mês trabalham cinco dias. A redução para estes modelos ajusta-se melhor à semana de quatro dias do que as 35 horas, porque a proposta das 35 é a de reduzir o dia de trabalho. 

E essas articulações no projeto-piloto estão a ser feitas pelas empresas. Tu vês um futuro em que haja uma participação dos sindicatos e comissões de trabalhadores para gerir essa adaptação?

No projeto-piloto temos 41 empresas. Em geral são de dez ou 20 trabalhadores. A maior empresa tem 60 e poucos. E o que aconteceu foi que a decisão do formato da semana de quatro dias e da reorganização do trabalho foi muito participada pelos trabalhadores. As soluções, nas empresas em que funcionou bem, foram apresentadas de baixo para cima. Houve uma participação muito grande, não formalmente, porque não tinham comissão de trabalhadores, mas os trabalhadores estiveram envolvidos. Para o futuro, é muito importante a participação dos sindicatos e de comissões de trabalhadores em testes para ver como pode funcionar.

Vês dificuldades na adaptação deste modelo a empresas maiores?

Sim. É mais complexo porque é mais fácil gerir a mudança com menos trabalhadores Mas do lado das grandes empresas há capacidade financeira para experimentar. Nós com as grandes empresas sempre dissemos que não é para mudar a empresa toda, é para começar a experimentar num departamento, numa área ou numa unidade. Se tivermos uma cadeia de hotéis, experimentar num dos hotéis. Mas a verdade é que tivemos muito pouca adesão das grandes empresas. Que não é surpresa porque noutros projetos-piloto tem acontecido a mesma coisa. Primeiro, porque é mais fácil experimentar com 20, 30, 60 ou mesmo 200 pessoas, do que uma empresa com 3.000 trabalhadores. E depois porque a unidade de decisão normalmente é uma pessoa. Ou seja, as grandes empresas têm acionistas. É mais complicado. Os gestores podem perceber mas os acionistas não. Então acho que nas grandes empresas é fundamental o papel das comissões de trabalhadores para tentar pôr isso em cima da mesa. 

Uma das apreensões com a semana de quatro dias tem a ver com a forma como é difícil, em alguns setores da economia, imaginar como é que poderia ser implementada. Achas que é uma ideia versátil o suficiente para ser introduzida em todos os setores? Quais é que são os mais complicados?

Eu acho que há setores onde a semana de quatro dias pode envolver uma contratação adicional. Por exemplo, na indústria, numa creche ou num lar. Nós tivemos uma creche no projeto-piloto que teve de contratar, mas só mais 5% de trabalhadores. No caso da creche, em que há muitos vírus e as pessoas faltam porque estão doentes, já era preciso redimensionar a força de trabalho e eles já tinham mais trabalhadores porque sabem que há absentismo. O que aconteceu com esta reorganização foi que as trabalhadoras começaram a trabalhar quatro dias, por turnos e a poder fazer trocas. E isso baixou o absentismo. Em Espanha, há restaurantes que com o melhor uso da tecnologia e com alteração do menu e do método de pagamento conseguiram implementar a semana de quatro dias sem terem de contratar mais pessoas. Em hotéis já se conseguiu implementar e a fábrica da Lamborghini está a testar a semana alternada para os trabalhadores de produção. Porque estes setores têm muitos problemas de absentismo, mas também de recrutamento e retenção. 

Mencionaste a questão da automação. Costuma ser um receio no movimento sindical porque implica redução de pessoal. Mas achas que neste contexto pode ser usado para reduzir horários e não trabalhadores?

Sim. A inteligência artificial vai aumentar a produtividade em setores já consolidados, por exemplo, na banca. Mas a produtividade só aumenta se conseguires vender mais. Quando adotas nova tecnologia tens aumentos de produtividade baseados em manter o serviço, reduzindo o número de trabalhadores. Isto não acontece em todos os setores. Se são setores em crescimento, como o mercado exportador, consegues utilizar esses aumentos de produtividade para vender mais e aí não há um efeito tão negativo do lado dos trabalhadores. Com a semana de quatro dias, os próprios trabalhadores podem encontra soluções para utilizar a tecnologia e aumentar a produtividade, não reduzindo o número de trabalhadores, mas para reduzir as horas de trabalho. E aí, o benefício dos ganhos de produtividade revertem para o trabalhador através do aumento de lazer.

Mas isso não é necessariamente verdade, sobretudo para as grandes empresas.

Com as grandes empresas, o que acontece é que esses ganhos de produtividade revertem para os lucros, porque os salários não aumentam de forma proporcional ao aumento da produtividade. Mas a semana de quatro dias inverte a lógica e potencia esse aumento de produtividade, mas que é recolhido pelo trabalhador sob uma forma muito atípica, que é mais tempo livre.

Um dos principais argumentos usados contra a semana de quatro dias é o de que vai criar uma desigualdade entre trabalhadores. Como é que se responde a isso?

Responde-se com dados do projeto-piloto. Perguntámos aos trabalhadores quanto é que valorizam a semana de quatro dias em percentagem do seu trabalho para uma redução de 12% das horas trabalhadas. Os trabalhadores valorizaram 28%, em média. Mas os trabalhadores que valorizaram mais foram os que ganhavam menos de €1.100, e os trabalhadores com qualificações mais baixas valorizavam mais do que trabalhadores com licenciatura ou mestrado ou doutoramento. Porquê? Porque trabalhadores que ganham mais podem utilizar o rendimento para comprar tempo livre. É isso que fazem quando têm empregada doméstica, contabilista, quando usam Uber. Isso são tudo formas de comprar tempo livre e pessoas que ganham menos não têm essa possibilidade. E portanto sentem tanto a pressão do tempo como os outros, mas depois têm de chegar a casa, cozinhar, ir às compras e não têm esse outsourcing. Portanto, eu acho que a semana de quatro dias não é para uma elite.

Outro dos dados que saiu do projeto-piloto indica que as mulheres valorizaram mais a semana de quatro dias. Consegues tecer hipóteses sobre porquê?

Vimos logo à partida que houve muito mais interesse por parte das mulheres. Em mais de 50% das empresas, a pessoa de contacto, fosse administradora ou diretora de recursos humanos, era mulher. E no tecido empresarial português só 27% dos cargos de chefia é que são de mulheres. Nós sentimos uma maior abertura das mulheres e depois vimos que a valorização da semana quatro dias é maior do lado das mulheres. Porque elas sentem mais a pressão do tempo. Eu acho que a valorização da semana de quatro dias vem de quem sente mais a pressão do tempo. E as mulheres sentem mais por causa do trabalho de cuidado doméstico.

Como é que o projeto-piloto prevê formas de trabalho atípicas em relação com a semana de quatro dias?

A resposta é difícil. Porque neste universo, estas empresas são especiais à partida, por terem participado no projeto. Empresas com más relações laborais vieram uma ou duas, mas rapidamente saíram. Porque é preciso este envolvimento dos trabalhadores. Quando a cultura dentro da empresa é má, os trabalhadores têm uma desconfiança muito grande.

Como é que uma semana de quatro dias se articula com instituições que funcionam com um serviço de cinco dias, como as escolas ou as creches? Como é que se pode encaixar uma nova forma de organização do trabalho com naturalidade nesse regime?

Essas soluções têm de ser procuradas. Não vem ninguém de fora dizer como é que se vai fazer, tem de ser pensado por dentro. E aí, a participação dos trabalhadores é vital. Porque são eles que sabem como é que as coisas funcionam. Nós pensamos sempre na sexta-feira, mas a verdade é que numa semana de cinco dias, já organizamos o trabalho de forma diferente. O trabalho de um jornalista é diferente de um médico ou de alguém na restauração. Estamos organizados de forma diferente numa semana. Numa semana de quatro dias, porque é que iríamos estar organizados todos da mesma forma? A questão é que temos de encontrar as soluções para cada setor e para cada população. Na creche, passou a ser por turnos. Outras empresas fazem equipas espelho: num departamento, metade tira segunda-feira, metade tira sexta-feira. Estão todos na empresa durante 3 dias e meio. O valor da experimentação é que já temos agora vários exemplos práticos de como organizar as empresas.

O projeto-piloto acabou. Para onde é que cresce o movimento por uma semana de quatro dias?

O que eu disse ao secretário de Estado é que agora o papel mais importante é das associações empresariais e sindicatos. Porque se nenhum destes atores vê interesse na ideia, o que é que o Governo pode fazer mais? Fazer outro projeto-piloto com mais 40 empresas não vai mudar nada. Acho que tem de partir daí, e é preciso mais experimentação. Há empresas que já começaram fora do projeto-piloto. Eu acho que seria importante continuar a experimentar em vários setores, aí com o apoio dos sindicatos. Pessoalmente, acho que uma boa experiência seria um hospital ou uma unidade local de saúde. Porque acho que a semana de quatro dias pode resolver problemas. Problemas concretos e operacionais, é isto que o projeto-piloto mostra. E onde é que há problemas operacionais de absentismo, de recrutamento, de retenção, de burnout? É precisamente na saúde.  

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.