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Salários e impostos: +Liberdade, -Seriedade?

Ao contrário do que a direita tem dito, o problema dos salários baixos no país não se resolve baixando os impostos. O desenvolvimento do país e o crescimento sustentado dos salários dependem, isso sim, de um Estado mais interventivo na economia. Por Vicente Ferreira, no Ladrões de Bicicletas.
Foto de Paulete Matos.

O Instituto +Liberdade, próximo da Iniciativa Liberal, tem-se dedicado a popularizar os temas a que os liberais dão maior destaque. Uma das suas publicações mais divulgadas ultimamente é a da “carga fiscal sobre o trabalho” (gráfico em baixo), isto é, o montante que as empresas suportam por cada trabalhador, entre impostos e contribuições para a Segurança Social.

Há dois raciocínios implícitos nesta publicação. O primeiro é o de que o IRS é demasiado elevado em Portugal. Neste sentido, a redução das taxas traduzir-se-ia num aumento imediato do salário líquido das pessoas. O segundo é o de que a carga fiscal a que os empregadores estão sujeitos os impede de pagar melhor. De acordo com este raciocínio, se baixássemos estes custos, as empresas teriam mais capacidade para aumentar os salários. Uma vez que ambas as ideias parecem intuitivas, vale a pena desmontá-las.

O primeiro argumento já foi rebatido noutros debates: a proposta da "taxa plana" de IRS defendida pela IL e pelo CH é desenhada para benefício exclusivo dos mais ricos. Para a maioria das pessoas, os eventuais pequenos ganhos ao fim do mês não chegam para compensar a perda de receita fiscal e os cortes no financiamento dos serviços públicos de que todos beneficiamos. Na verdade, nas últimas décadas, os países que mais reduziram a progressividade dos impostos sobre os rendimentos do trabalho foram aqueles em que a riqueza acumulada pelo 1% do topo mais aumentou.

Os problemas do segundo argumento começam assim que se olha com atenção para o gráfico. Dos seis países onde as empresas suportam custos relativos mais elevados do que Portugal (Alemanha, Áustria, Bélgica, Finlândia, França, Itália e Suécia), todos pagam salários médios líquidos superiores a Portugal, depois de se ajustarem os valores ao custo de vida em cada país. Noutros países escolhidos, a carga fiscal sobre as empresas não se afasta substancialmente da portuguesa: os custos com impostos e contribuições representam 36% nos Países Baixos ou 38% no Luxemburgo, face aos 41% em Portugal. É difícil defender que são estas pequenas diferenças percentuais que explicam diferenças tão grandes nos salários médios. A verdade é que, se olharmos para o conjunto da União Europeia, Portugal encontra-se em linha com a média no que diz respeito aos custos para as empresas com impostos e contribuições.

Um possível contra-argumento é o de que Portugal não tem condições para manter o atual nível de fiscalidade e precisa de reduzir a carga fiscal para estimular a atividade económica e o crescimento salarial. Mas não existem dados que permitam sustentar essa hipótese. No ano passado, os economistas Sebastien Gechert e Philipp Heimberger publicaram um artigo em que demonstram que os vários estudos efetuados não permitem estabelecer uma relação entre reduções de impostos sobre as empresas e maior crescimento. Temos, aliás, exemplos recentes do contrário, como o dos EUA, em que a descida da taxa de imposto sobre as empresas (de 35% para 21%) não só não estimulou o investimento privado, como não trouxe aumentos salariais.

Como é que podemos, então, explicar o facto de os salários serem baixos em Portugal? Há dois fatores essenciais, sobre os quais escrevi aqui.

O primeiro é o padrão de especialização da economia portuguesa, que se encontra excessivamente dependente de setores de baixo valor acrescentado e baixos salários (como o turismo, a restauração, o imobiliário e a construção). Uma economia assente em setores de baixo potencial produtivo dificilmente conseguirá crescer de forma sustentada no contexto de liberalização comercial promovido pela integração europeia, como assinalou o Ricardo Paes Mamede aqui. A evolução dos salários tem sido prejudicada pela estagnação da economia portuguesa nos últimos vinte anos, mas isso não se explica pelo nível de fiscalidade.

O segundo diz respeito à desregulação laboral e à precarização do trabalho. Portugal é o segundo país da União Europeia com maior peso do trabalho temporário, de acordo com os dados do Eurostat. Um estudo da própria Comissão Europeia conclui que existe um diferencial salarial entre contratos precários e permanentes e que este é maior nos países com maior percentagem de precários, como Portugal. Ou seja, as medidas de facilitação dos despedimentos, enfraquecimento da contratação coletiva e promoção do recurso ao trabalho temporário têm ajudado a comprimir os salários.

A evidência empírica aponta para a existência de uma relação entre a desregulação laboral e a redução da wage share (a fração do rendimento produzido numa economia que é recebida pelo fator trabalho, ou seja, a fatia do bolo que cabe aos trabalhadores). Foi isso que foi identificado por três investigadores do FMI num estudo sobre 26 economias avançadas, entre as quais a portuguesa, onde a fração do rendimento recebido pelo trabalho tem vindo a cair desde a adesão ao Euro (com uma ligeira inversão durante o período da Geringonça).

Ao contrário do que a direita tem dito, o problema dos salários baixos no país não se resolve baixando os impostos. O desenvolvimento do país e o crescimento sustentado dos salários dependem, isso sim, de um Estado mais interventivo na economia: na regulação das relações laborais, na promoção das qualificações das pessoas e na alocação do investimento, apoiando setores de atividade de maior valor acrescentado.


Publicado por Vicente Ferreira no blogue Ladrões de Bicicletas.

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Economista
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