Dado o caráter plebiscitário que o ato eleitoral assumiu, podemos afirmar que os seus resultados são a confirmação de que, se o sentimento independentista não é maioritário, está profundamente implantado, tendo o apoio de quase metade da população do território.
E, ainda, que a maioria do eleitorado catalão defende, no mínimo, a autodeterminação, traduzida na realização de um referendo sobre a independência.
Grande condicionamento das liberdades para os defensores da independência
Ao contrário de todas as outras eleições realizadas após a restauração da autonomia catalã, no quadro da chamada “transição democrática espanhola”, estas decorreram num clima de grande condicionamento das liberdades para os defensores da independência. Desde logo, com a aplicação do artº 155 da Constituição do Estado Espanhol, as instituições autonómicas da Catalunha foram suspensas e a região ficou sob controlo direto do governo de Madrid. Por outro lado, a perseguição judicial aos dirigentes independentistas levou a que estes tivessem de fazer campanha a partir da prisão ou do exílio ou, por se encontrarem em liberdade sob caução, com os seus movimentos e a sua liberdade de expressão altamente condicionados. Assim, o líder e cabeça de lista da ERC (Esquerra Republicana de Catalunya), Oriol Junqueras, e os dirigentes das associações cívicas Omnium Cultural e Assembleia Nacional Catalã, respetivamente, Jordi Cuixart e Jordi Sanchez, este último candidato na lista do PDeCat (Partit Demòcrata Europeu Català), mais Joaquim Forn, que integrava o governo autonómico, encontram-se detidos em prisões situadas nos arredores da capital espanhola. Por sua vez, o presidente demitido da Generalitat e primeiro na lista do PDeCat, Carles Puigdemont, e mais quatro membros do seu executivo estão exilados em Bruxelas. Entretanto, sob caução, encontram-se outros candidatos daquelas duas forças políticas, figuras proeminentes do governo autonómico e da mesa do Parlamento, com destaque para a sua presidente e candidata da ERC, Carme Forcadell. Acresce, ainda, a forma parcial como a Junta Eleitoral Central geriu o processo eleitoral, proibindo, por exemplo, os laços amarelos, em apoio à libertação dos presos políticos, e procurando condicionar a cobertura informativa da campanha eleitoral por parte da TV 3, a estação de televisão autonómica. E, para finalizar, foi notória a parcialidade da generalidade da comunicação social espanhola, quase toda nas mãos da direita: por um lado, apoiando a decisão do executivo de Rajoy de aplicar o famigerado artº 155, brandindo com a legalidade constitucional; depois, responsabilizando exclusivamente os independentistas pela tensão política na Catalunha e chamando cobarde a Puigdemont por ter fugido para evitar ser preso; pelo meio, “puxando pelo lustro” das forças unionistas, em especial do partido dos Ciutadans (C’s), o mais bem colocado desse campo nas sondagens; por fim, anunciando as desgraças que se abateriam sobre a região se os defensores da independência voltassem a triunfar nas urnas, em especial a fuga das empresas, com o consequente declínio económico da Catalunha.
Independentistas voltaram a conseguir maioria relativa de votos e maioria absoluta de mandatos
Esse contexto levou a que estas eleições assumissem um caráter plebiscitário sobre a independência, secundarizando todos os restantes aspetos. Consequentemente, decorreram num clima de grande tensão emocional, que afetou, praticamente, toda a sociedade catalã. Daí a grande participação eleitoral, que bateu todos os recordes. Assim, se, há dois anos, também já com a questão do futuro político do território em cima da mesa, ela se cifrou em 77,4%, agora atingiu os 81,9%.
O maior recuo ocorreu no voto autonomista, ou seja, daqueles que não são partidários da independência, mas defendem o direito à autodeterminação
Apesar de todos os condicionalismos que referimos, as forças políticas independentistas voltaram, no seu conjunto, a conseguir uma maioria relativa de votos (47,5%) e uma maioria absoluta de mandatos (70 dos 135 deputados), o que significa um ligeiríssimo recuo face a 2015, quando obtiveram 47,8% dos sufrágios e 72 eleitos. Por sua vez, a totalidade dos partidos unionistas melhorou a sua prestação face às eleições anteriores, passando de 39,1 para 43,5% dos votos válidos e de 52 para 57 lugares parlamentares, mas a opção unionista pura e dura continua a ser minoritária. O maior recuo ocorreu no voto autonomista, ou seja, daqueles que não são partidários da independência, mas defendem o direito à autodeterminação, através da realização de um referendo pactuado para definir o futuro do território: de 11,4% e 11 deputados há dois anos quedaram-se agora pelos 7,5% e oito cadeiras no Parlamento.
A discrepância entre a percentagem de votos e os mandatos obtidos resulta do sistema eleitoral. Num paradoxo irónico, a Catalunha, apesar de ser uma das regiões de Espanha com maior grau de autonomia, não dispõe de uma lei eleitoral própria. Logo, por extensão, aplica-se às suas eleições autonómicas a legislação do Estado espanhol. Assim, cada província constitui um círculo eleitoral e tem direito, à cabeça, a dois lugares parlamentares, sendo os restantes atribuídos proporcionalmente à população de cada uma. Essa disposição favorece as províncias menos povoadas, onde são necessários menos votos para eleger um deputado que nas mais povoadas. No caso catalão, isso desfavorece Barcelona, em detrimento de Tarragona, Girona e Lleida. Acresce, ainda, que a atribuição de mandatos é a mesma que foi fixada para as primeiras eleições autonómicas, realizadas em 1980, de acordo com a população existente à época: 85 são atribuídos a Barcelona, 18 a Tarragona, 17 a Girona e 15 a Lleida. Se, mesmo com a distorção resultante dos dois deputados a que cada província tem direito, aquela atribuição refletisse as mudanças demográficas entretanto ocorridas, Barcelona teria direito a 95, Tarragona a 16, Girona a 15 e Lleida apenas a nove; caso a distribuição fosse totalmente proporcional, teríamos 99, 14, 14 e oito, respetivamente. Ora, se, a nível nacional, a lei favorece o PP, melhor implantado nas áreas rurais de baixa densidade do interior do país, com exceção da Andaluzia, na Catalunha beneficia as forças independentistas, mais fracas na capital, mas bastante fortes nas províncias setentrionais de Girona e de Lleida. Para finalizar, os deputados são eleitos através do método de Hondt, mas existe uma cláusula-barreira de 3% dos votos válidos (que, em Espanha, inclui os brancos) a nível provincial.
Analisando, agora, os resultados das várias formações concorrentes às eleições (que podem ser consultados no ficheiro anexo), verificamos que há uma força política claramente derrotada (o PP), mas não há nenhuma que possa cantar vitória a 100%.
Ciutadans/Ciudadanos, principal formação unionista catalã
Os Ciutadans/Ciudadanos (C’s), partido de centro-direita que, desde o último ato eleitoral, se tornou na principal formação unionista catalã, foram, agora, a força política mais votada (25,4%) e também a que obteve maior número de mandatos (37), uma subida significativa face a 2015, quando conseguiram 17,9% dos votos e 26 lugares. Um feito histórico, já que foi a primeira vez que uma lista não nacionalista se tornou, não apenas a mais votada, mas também a mais representada no Parlamento. Fundado na Catalunha, para combater a independência, acabou por tornar-se um partido nacional, que surgiu como uma alternativa para os setores da direita moderada descontentes com a governação do PP. Liderado por Albert Rivera, obteve, nas últimas eleições gerais, cerca de 14% dos votos e 40 lugares no Congresso dos Deputados. Atualmente, dá apoio parlamentar ao governo de Rajoy. O seu êxito nestas eleições autonómicas resulta da boa campanha realizada por Inés Arrimadas, a sua candidata à presidência da Generalitat. Tal como muitos catalães, é originária da Andaluzia, algo que leva a maioria da população proveniente dessa e de outras regiões de Espanha, na generalidade ferozmente anti-separatista, a identificar-se com ela. Por outro lado, o partido foi visto como o mais bem colocado para derrotar o bloco independentista, circunstância que lhe permitiu beneficiar do chamado “voto útil” dos opositores à independência (em especial, dos “populares”) e, consequentemente, polarizar o campo unionista. Relativamente às eleições anteriores, os C’s, para além de conservarem a quase totalidade do seu eleitorado de então, conquistaram perto de metade dos votantes no PP, quase 12% dos socialistas, à volta de 10% da extinta UDC (Unió Demócrata de Catalunya) - uma formação democrata-cristã, que integrou, durante muitos anos, a coligação nacionalista CiU, juntamente com a CDC (Convergència Demòcrata de Catalunya), antecessora do PDeCat, mas que a abandonou por discordar da deriva independentista daquela, apesar de defender a autodeterminação do território - a mesma percentagem de pequenos partidos mais votos brancos e ainda cerca de 5% de eleitores de esquerda opositores à independência. Mas, mais importante, terá sido a conquista de aproximadamente 9% do conjunto dos abstencionistas de há quatro anos e jovens votantes, valor do qual nenhuma das outras forças políticas concorrentes se aproximou, mostrando que o partido foi o mais beneficiado pelo aumento da afluência às urnas. Os C’s foram a formação mais votada nas províncias de Tarragona e de Barcelona, em especial nas duas cidades e nas áreas mais urbanizadas e industrializadas do litoral, onde vive a maioria da população oriunda de outras regiões do Estado espanhol. Em contrapartida, teve resultados menos positivos nas de Girona e de Lleida, principalmente nas zonas rurais do interior, à exceção do pequeno Vale d’Aran, no extremo noroeste do território catalão, onde se situa a minoria de língua occitana. Apesar de tudo, o triunfo dos C’s acaba por ser parcial, uma vez que o bloco independentista manteve a maioria parlamentar. Consequentemente, Arrimadas nunca conseguiria ser investida como presidente da Generalitat e, por isso, já declarou expressamente não se candidatar à investidura. Terá, pois, de contentar-se em ser a maior força da oposição no Parlamento.
Junts per Catalunya, um resultado extremamente satisfatório
Em segundo lugar, com 21,6% dos votos e 34 deputados, ficou a lista Junts per Catalunya (JxCat), independentista de centro-direita, que integrou o PDeCat do presidente demitido Carles Puigdemont e diversos independentes, na sua maioria provenientes da Assembleia Nacional Catalã, com destaque para o seu ex-presidente, Jordi Sànchez, atualmente preso. Um resultado extremamente satisfatório, não apenas pelo facto de o bloco independentista ter segurado a maioria parlamentar, mas também por, ao contrário do que previam todas as sondagens, ter sido a força mais votada do campo independentista. Para o efeito, terá contribuído o facto de Puigdemont ser considerado, pelos partidários da independência, como o presidente legítimo, ilegalmente destituído, o que lhe permitiu angariar algum capital de simpatia junto de setores do eleitorado que, em condições normais, não lhe concederiam o voto. Claro que, apesar de serem a candidatura com mais razões para celebrar, a verdade é que o primeiro lugar dos anti-independentistas C’s e o facto de estarem, agora, praticamente em pé de igualdade com a ERC são, apesar de tudo, “amargos de boca” que não permitem ao JxCat proclamar uma vitória em toda a linha. Esta obteve pouco mais de metade dos votos que couberam à lista Junts pel Sí (JXSí), a coligação que, em 2015, juntou PDeCat e ERC e venceu as eleições, obtendo 39,6% dos sufrágios e 62 deputados (29 dos quais do PDeCat), mais quase 2/3 provenientes do antigo eleitorado da UDC, perto de 4% de pequenos partidos e votos brancos e, ainda, cerca de 2,5% vindos da abstenção e novos eleitores. A distribuição territorial da sua votação é quase simétrica da dos Ciutadans: triunfou claramente nas províncias setentrionais de Girona (cidade de onde Puigdemont é natural e a cujo município presidiu) e de Lleida e nas áreas rurais do interior, onde a população é maioritariamente catalã de origem, enquanto em Tarragona e em Barcelona os seus resultados foram bastante mais fracos, em especial nos bairros operários que rodeiam a capital. Não estivéssemos em presença de uma situação atípica e Puigdemont teria, em princípio, garantida a sua investidura para um novo mandato. Mas, dada a situação de exílio em que se encontra e o mandato de captura de que é alvo no Estado espanhol, tudo está em aberto, como veremos mais adiante.
Esquerra Republicana de Catalunya, avanço significativo face a 2015
A terceira força política mais votada foi a ERC, da esquerda independentista, com 21,4% dos votos, que lhe valeram a conquista de 32 lugares, um avanço significativo face a 2015, quando elegeu 20 dos 62 parlamentares que então couberam à coligação JxSí. Apesar de ser o melhor resultado do partido após a chamada “transição democrática”, o certo é que traz consigo algum sabor a desilusão, já que praticamente todas as sondagens a davam como a principal força independentista e muitas lhe atribuíam o primeiro lugar, à frente dos C’s. A prisão do seu líder, Oriol Junqueras, prejudicou o partido, já que aquele não pôde participar na campanha, que foi conduzida pela secretária-geral e nº 2 da lista, Marta Rovira. Ao invés, Puigdemont teve sempre hipótese de intervir a partir do seu exílio de Bruxelas, o que lhe deu vantagem. Apesar de tudo, a ERC tem algumas razões para sorrir, pois não apenas as eleições confirmaram a maioria parlamentar independentista, mas também, apesar de não ter ultrapassado a coligação da direita JxCat, conseguiu um resultado praticamente idêntico ao daquela, algo que nunca tinha acontecido em eleições autonómicas realizadas após a restauração da autonomia catalã, em 1979. O partido ficou com aproximadamente 45% dos votos que, há quatro anos, foram obtidos pela coligação JxSí, foi buscar quase a mesma percentagem de eleitores da CUP (Candidatura de Unitat Popular), a que se somam mais de 10% da UDC e, residualmente, alguns votos provenientes da esquerda autonomista (Podemos e suas confluências catalãs, coligados na lista Catalunya Sí que es Pot) e de pequenos partidos e votos brancos, tendo conquistado, ainda, cerca de 3,5% de abstencionistas e, em especial, jovens. A sua implantação territorial é aproximada à da JxCat, mas, relativamente aquela, é mais forte nas áreas urbanas e menos nas áreas rurais. Daí que a distribuição do seu eleitorado no território seja menos assimétrica que a daquela. Assim, apesar de não ter ganho em nenhuma província, foi a segunda força mais votada em todas elas, tendo obtido os melhores resultados em Lleida (em especial, no interior) e em Tarragona (onde venceu nas comarcas do delta do Ebro) e os menos bons em Barcelona (nomeadamente, nas periferias mais próximas da capital) e em Girona (onde a lista do JxCat arrebatou a maior parte do voto independentista). Apesar de se ter tornado incontornável no campo pró-independência, a ERC resignou-se, para já, a apoiar a investidura de Puigdemont. Resta, agora, saber qual o seu destino e, também, se Junqueras continuará ou não preso e, ainda, se algum dos deputados recém-eleitos acabará detido ou condenado, em caso de escalada no conflito entre os independentistas e o governo de Madrid.
Partit dels Socialistes de Catalunya, resultados sabem a pouco
O quarto posto foi para o PSC (Partit dels Socialistes de Catalunya), ramo regional do PSOE, que obteve 13,9% dos votos e 17 mandatos. Apesar de ter registado alguma melhoria face a 2015, quando, com 12,7% dos sufrágios e apenas 16 lugares conquistados, registou o pior desempenho de sempre em eleições autonómicas na Catalunha, os resultados sabem a pouco, não apenas por a subida ter sido pequena, mas também por não ter conseguido evitar a repetição da maioria absoluta independentista. Embora sejam totalmente contrários à independência e tenham apoiado a aplicação do artº 155 por parte do governo de Rajoy, os socialistas catalães têm, apesar de tudo, uma posição um pouco menos intransigente que o PP e os C’s sobre o estatuto do território, pugnando por um aumento da autonomia da região, que, em último caso, possa, inclusive, conduzir à transformação de Espanha num Estado federal. Porém, numas eleições tão extremadas, essa postura mais moderada não os favoreceu, apesar de o seu líder, Miquel Iceta, ter tentado colocar-se como presidenciável em caso de vitória do campo unionista. No final, o partido segurou cerca de 86% do seu eleitorado de há quatro anos, tendo perdido acima de 10% para os C’s. Porém, compensou essas perdas, ao conquistar quase 20% de eleitores da esquerda autonomista (Catalunya Sí que es Pot), cerca de 10% da extinta UDC e aproximadamente o mesmo da soma de pequenos partidos e votos brancos, mais uma pequena franja de votantes no PP e perto de 4% de abstencionistas e jovens. Territorialmente, o padrão de distribuição da sua votação anda próximo do dos Ciutadans, sendo, porém, mais nítida a maior implantação na província de Barcelona, em especial na sua periferia industrial, onde reside a maioria do operariado proveniente de fora da Catalunha, seguido de Tarragona, cujo litoral setentrional apresenta características semelhantes. Ao invés, e com exceção do já referido Val d’Aran, onde teve uma forte votação, é fraco nas províncias de Lleida e de Girona e na maioria das áreas rurais. Com o campo independentista a manter a maioria no Parlamento, os socialistas continuarão a desempenhar um papel secundário na política catalã.
Catalunya en Comú – Podem, um dos perdedores das eleições
Em quinto lugar, ficou a coligação da esquerda autonomista Catalunya en Comú – Podem (CatComú) coligação entre a Catalunya en Comú, uma plataforma que engloba várias organizações da esquerda catalã, cuja figura principal é a alcaldeza de Barcelona, Ada Colau, e o Podem, estrutura regional do Podemos. Com 7,5% dos votos e oito deputados eleitos, registou uma descida face aos 8,9% dos sufrágios e 11 lugares obtidos em 2015 pela lista Catalunya Sí que es Pot, o que a torna um dos perdedores das eleições. Num ato eleitoral dominado pelo tema da independência e onde tanto o campo unionista como o independentista pretendiam dos eleitores uma posição clara de “sim” ou “não”, a candidatura da esquerda autonomista, liderada por Xavier Domènech, tinha, à partida, uma tarefa muito difícil, já que não se encontrava alinhada com nenhuma das duas fações em disputa. Com efeito, embora não defenda a independência, preconizando, antes, uma solução federalista e republicana no quadro do Estado espanhol, é favorável à realização de um referendo sobre a independência, em nome do princípio da autodeterminação dos povos. Dentro da mesma linha, opôs-se tanto à declaração unilateral de independência como à aplicação do artº 155º e à prisão e perseguição de dirigentes independentistas, cuja libertação exige. Neste contexto, acabou por não agradar a nenhuma das partes. Assim, a coligação segurou pouco mais de 70% do seu eleitorado de 2015, perdendo quase 20% para os socialistas, cerca de 5% para os C’s e algumas franjas para a ERC. Em compensação, terá ido buscar cerca de 10% aos pequenos partidos ecologistas e votos brancos, alguns poucos votantes do JxSí e não mais de 1,5% à abstenção e aos novos eleitores. Relativamente à distribuição dos votos, a província de Barcelona, em especial a cidade e as áreas periféricas envolventes, é o seu grande bastião eleitoral. A sua implantação já é bastante menor em Tarragona (onde manteve o seu deputado, graças ao peso das áreas urbanas do seu litoral) e é mais baixa ainda em Girona e Lleida e na generalidade das áreas rurais. Outro fator de deceção para a esquerda autonomista foi a manutenção da maioria parlamentar independentista, que impede a coligação de arbitrar a disputa entre os dois blocos opostos e/ou de se tornar incontornável na procura de uma nova solução governativa e política para o território, da qual excluiria sempre os C’s e o PP. Há, ainda, que ter em conta as diferentes perspetivas das duas formações coligadas no que respeita ao processo independentista: a CatComú é mais aberta e, caso ocorra um referendo sobre a questão, dará liberdade de voto aos seus aderentes; já o Podem tem uma posição diferente, na linha do discurso cada vez mais contrário à independência do seu líder nacional, Pablo Iglesias. Para já, Domènech descartou um pacto governativo entre a coligação e as duas principais formações defensoras da independência, caso estas não renunciem à via unilateral para a sua obtenção.
CUP, segurou pouco mais de metade dos seus eleitores de há quatro anos
A CUP, da esquerda radical independentista, ficou na sexta posição, com 4,5% dos votos e quatro eleitos, muito longe dos 8,2% e 10 deputados de há quatro anos. A única consolação para a candidatura foi o facto de continuar a ser essencial para tornar efetiva uma maioria parlamentar constituída unicamente por formações defensoras da independência. Apesar de ser a mais radical das forças independentistas, sendo acusada por vários setores unionistas de ter sido responsável pela aceleração do processo, a verdade é que, por não fazer parte do governo catalão demitido, mas apenas da maioria parlamentar que o sustentava, não viu os seus principais dirigentes presos ou exilados, embora alguns deles, incluindo vários autarcas, enfrentem, igualmente, acusações da justiça espanhola. Assim, ao contrário de Puigdemont e de Junqueras, o seu candidato à presidência, Carles Riera, pôde fazer campanha. Porém, os resultados foram negativos, tendo a lista segurado pouco mais de metade dos seus eleitores de há quatro anos e captado muito poucos abstencionistas. Em contrapartida, perdeu mais de 40% dos votos de 2015 para a ERC, em grande parte vítima do chamado “voto útil”, e algumas pequenas franjas para a abstenção, de eleitores que consideraram ilegítimas as eleições e se recusaram a participar nelas. Do ponto de vista territorial, apresenta melhores resultados nas regiões rurais e serranas do interior de Girona (onde manteve o seu eleito) e de Lleida; ao invés, afundou-se em Barcelona (onde a perda de votos foi bastante acentuada) e em Tarragona. Relativamente ao futuro, a formação já “marcou o território”, afirmando que apenas apoiará um governo PDeCat-ERC se este se comprometer com a continuação do processo independentista, mesmo que por via unilateral. Em todo o caso, não fechou a porta a uma abstenção, que seria suficiente para viabilizar uma eventual investidura de Puigdemont como presidente da Generalitat. Recorde-se, aliás, que aquele só chegou à presidência porque, em 2015, a CUP rejeitou o nome de Artur Más. Por isso, mesmo enfraquecida, continua a ser incontornável para a efetivação de uma maioria parlamentar independentista, podendo, assim, vir a ter uma palavra decisiva no desfecho da crise.
PP, o grande derrotado destas eleições
Mas o grande derrotado das eleições foi o direitista Partido Popular (PP), do primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, que se quedou pelos 4,2% dos votos e pela eleição de apenas três parlamentares, quando, há quatro anos, obtivera 8,5% dos sufrágios e 11 lugares. Para além desses resultados desastrosos, viu o bloco independentista conservar a maioria parlamentar e os C’s assumirem-se como a grande força do bloco unionista. O PP, liderado por Xavier García Albiol, um adepto da linha dura face aos defensores da independência, sofreu, assim, uma derrota em toda a linha. É certo que os “populares” nunca foram fortes na Catalunha. Sendo a formação política que mais abertamente representa os interesses das classes dominantes e do centralismo, não conquista a parte mais dinâmica da burguesia urbana catalã nem a pequena burguesia rural do interior, ambas maioritariamente independentistas, nem as classes trabalhadoras oriundas de outras regiões de Espanha, que se opõem à independência, mas que votam, maioritariamente, à esquerda. Daí que, face à polarização das eleições e à tradicional fraqueza eleitoral do PP, a maioria do eleitorado anti-independentista tenha optado pelo chamado “voto útil” nos Ciutadans, uma força política relativamente nova e em ascensão, além de menos conotada com o governo de Madrid, a quem dá apoio parlamentar, mas que não integra. Assim, o partido apenas conservou sensivelmente metade dos seus eleitores de 2015 e poucos mais conquistou, tendo perdido a grande maioria dos votos para os C’s e uma pequena franja para os socialistas. Do ponto de vista territorial, só sai da mediocridade em alguns pequenos municípios rurais do interior da província de Lieida, mais conservadores, onde as perdas foram um pouco menores; pelo contrário, quase desapareceu na província de Girona, onde a sua votação não chegou aos 3%. Com este desastre eleitoral, o PP tornou-se irrelevante na Catalunha, o que constitui mais uma “dor de cabeça” para Rajoy, que, para além de ter visto o campo independentista renovar a maioria no Parlamento, vê afundar-se o ramo catalão do seu partido. Além do mais, o forte crescimento dos C’s neste ato eleitoral pode constituir uma séria ameaça para a tradicional hegemonia dos “populares” no seio da direita espanhola, especialmente quando estes se vão atascando em numerosos escândalos de corrupção, tanto a nível nacional como regional e local.
Que conclusões podemos, então, tirar?
- 1. Apesar de toda a repressão exercida pelas instituições do Estado espanhol, o bloco independentista voltou a conquistar a maioria relativa dos votos e manteve a maioria absoluta dos mandatos, tendo apenas registado perdas muito ligeiras. Porém, com apenas 47,5% dos votos válidos, não logrou, nas urnas, a legitimidade suficiente para sustentar uma declaração unilateral de independência. Em contrapartida, conseguiu a legitimidade mais que suficiente para ser tido em consideração pelo governo de Madrid, que não pode continuar a ignorar e a hostilizar quase metade da sociedade catalã. Terá, pois, que deixar de considerar o processo catalão como um problema legal, devendo, antes, encará-lo como aquilo que ele é: uma questão eminentemente política.
- 2. O campo unionista registou uma subida, fruto de uma mobilização sem precedentes do seu potencial eleitorado, mas continua a ser minoritário no conjunto do território, tanto em votos como em mandatos. Por isso, e apesar de ter algumas razões de queixa do sistema eleitoral, nunca teria vencido as eleições. Logo, não tem legitimidade política para pôr em causa qualquer governo formado pelos independentistas nem a realização de uma consulta popular sobre o futuro do território, apoiada, no mínimo, por 55% do eleitorado catalão. Tal como o governo central, terão de perceber que a solução para o impasse é política e não jurídica.
- 3. Os autonomistas, defensores da autodeterminação, mas não da independência (em 2015, o Podemos e suas confluências catalãs, à esquerda, e a entretanto extinta UDC, à direita; agora, apenas os primeiros) viram a sua votação reduzir-se, “entalados” pela polarização eleitoral entre adeptos e opositores da independência. Num clima muito bipolarizado, ficar “a meio da ponte” não colhe grandes apoios. Apesar disso, a esquerda autonomista sobreviveu e possui a melhor solução política para resolver a crise, ou seja, um diálogo que termine num referendo pactuado entre os independentistas e o governo de Madrid. Contudo, a nível do Estado espanhol, o Unidos Podemos (coligação entre a IU e este último) tem sido prejudicado pelo conflito na Catalunha, como mostram os inquéritos de opinião, já que alguns setores mais espanholistas da esquerda consideram a posição do partido demasiado branda. É isso que explica os ataques crescentes de Iglesias ao nacionalismo catalão.
- 4. Entre os unionistas, os C’s foram os claros vencedores, assumindo-se como o polo principal desse campo, em detrimento do PSC/PSOE (que pouco cresce) e do PP (que se afunda). Este facto tende a criar tensões entre as duas principais forças da direita unionista, já que, como referimos, os “populares” temem perder votos para os “cidadãos” em futuras eleições gerais, receio que é sustentado pelas mais recentes sondagens. Também os socialistas tenderão a demarcar-se das outras duas formações, com o intuito de surgirem mais claramente como alternativa a um Rajoy que “foi buscar lã e saiu tosquiado”. Contudo, nenhuma parece interessada em desbloquear a questão, pois PP e C’s quererão mostrar quem é mais duro face ao desafio catalão e os socialistas sabem que tudo o que pareça uma cedência ao independentismo será aproveitado por aqueles, temendo, assim, perder apoios no resto de Espanha.
- 5. No seio dos independentistas, o PDeCat manteve-se como a força mais votada e com mais deputados, mas a ERC está agora praticamente a par da direita, enquanto a mais radical CUP sofreu fortes perdas. Esta competição entre as duas mais importantes fações do nacionalismo catalão, a que acresce a intransigência da última, tenderá, a prazo, a enfraquecer o campo pró-independência. Na verdade, apenas a defesa de uma Catalunha independente mantem unidas a direita e a esquerda catalanistas, já que, como é natural, as divergências ideológicas entre elas são grandes. Algo que também ocorre entre a ERC e a CUP, em especial na posição relativamente à UE. Daí o seu interesse em continuar a alimentar o processo independentista, como forma de manter a unidade desse bloco e, no caso do PDeCat, de fazer esquecer anos de má governação e alguns escândalos de corrupção.
- 6. A forte participação eleitoral mostra que a questão da independência da Catalunha é um fator de mobilização da sua sociedade. Mas também é o resultado do enquistamento da sua divisão quase a meio, numa fratura que é ilustrada pela análise das transferências eleitorais no ficheiro anexo: como podemos verificar, são residuais os eleitores que transitam de um campo para o outro. Apesar de toda a tensão acumulada, a população do território tem mantido uma atitude de serenidade, condizente com a denominada seny (senso) catalã. Com efeito, salvo a repressão exercida pelas forças policiais enviadas pelo governo de Madrid no dia 1 de outubro sobre os que pretendiam exercer o seu direito de voto na consulta popular organizada pela Generalitat e declarada ilegal pelas instituições do Estado espanhol, não se registaram, até ao momento, grandes atos de violência. Mas o prosseguimento do impasse e, em especial, a perseguição judicial aos dirigentes independentistas poderá levar a uma escalada do conflito.
De tudo isto, resulta que a única solução para o conflito é o diálogo entre o governo de Madrid e os independentistas.
Para ele ter lugar, seria necessário, em primeiro lugar, que o executivo espanhol retirasse todas as acusações aos dirigentes catalães, garantindo a libertação de todos os que se encontram detidos. Em troca, os independentistas renunciariam à via unilateral para conseguir a independência. Isso permitiria a investidura da nova Generalitat, muito provavelmente com Puigdemont à frente do executivo, terminando, assim, o estado de exceção no território. A partir daí, partir-se-ia para uma negociação sem tabus. Para as conversações terem êxito seria necessário que as instituições do Estado espanhol concordassem com uma revisão constitucional, mais ou menos ampla. Uma primeira solução seria recuperar o Estatuto autonómico, aprovado pelo povo catalão em 2006 e que foi, quatro anos depois, esvaziado das suas disposições mais avançadas pelo Tribunal Constitucional espanhol, após um recurso apresentado pelo PP de Rajoy. Nesse caso, apenas seria necessária uma revisão minimalista, destinada a acomodar aquelas disposições. Mas, dada a evolução ocorrida desde então, tal solução não satisfaria os independentistas. Outra hipótese seria considerar que o modelo do Estado das autonomias, consagrado na Constituição espanhola de 1978, se encontra esgotado, pelo que seria necessária uma revisão mais ampla, que levasse à transformação de Espanha num Estado federal altamente descentralizado. Esta solução poderia ser aceite por aqueles, embora tivesse de envolver todas as restantes Comunidades Autónomas. Mas, independentemente do modelo, deveria haver um acordo para a realização, num prazo razoável, de um referendo sobre a independência, a exemplo do que sucedeu na Escócia.
O problema é que tudo isto é muito bonito, mas não se vê da parte do governo de Rajoy e da maioria dos setores unionistas qualquer vontade de resolver a questão. Pelo contrário, parecem mesmo interessados em persistir no impasse, insistindo em transformar o processo catalão numa mera questão jurídico-legal, que justifique a aplicação do artº 155 e a repressão sobre os independentistas. Ou seja, sem uma mudança de governo em Espanha, que levasse ao poder uma “geringonça” entre PSOE e Unidos Podemos, com o apoio dos nacionalistas bascos e catalães, e aceitasse negociar de boa fé, dificilmente haverá uma solução política para o problema.
No imediato, resta saber o que fará Puigdemont. Este propôs a Rajoy um diálogo sem condições prévias, num país estrangeiro, proposta que o primeiro-ministro espanhol rejeitou. Se continuar no exílio, em Bruxelas, não poderá tomar posse como deputado nem ser investido como presidente; se voltar à Catalunha, será preso pelas autoridades espanholas. Se se mantiver a intransigência de Madrid, dificilmente poderá voltar à presidência, qualquer que seja a sua decisão, o que obrigará o bloco independentista a apresentar um nome alternativo. Há, ainda, a possibilidade de, entretanto, Junqueras sair em liberdade condicional já no próximo dia 4 de janeiro, quando o Supremo Tribunal apreciar o seu recurso contra a prisão preventiva. Se for libertado, o líder da ERC poderia surgir como o próximo presidente, mesmo que aceite a contragosto pelo PDeCat. Mas, aí, seria determinante a posição da CUP, que, apesar de reduzida a quatro deputados, mantem, na prática, direito de veto na escolha de quem vai liderar a próxima Generalitat. Mas, seja qual for a escolha, a sua tarefa será sempre muito complicada: por um lado, terá de gerir as tensões internas entre as forças pró-independência; por outro, terá sempre Rajoy, o seu governo e o essencial do aparelho do Estado espanhol “à perna”, prontos a voltar a aplicar o artº 155 na primeira oportunidade. Estaremos atentos aos desenvolvimentos futuros!
Artigo de Jorge Martins, para esquerda.net