Daqui a uns dias, haverá eleições legislativas europeias. Houve campanhas, propostas, promessas, confrontos. Discursos institucionais e outros mais agressivos. Narrativas inclusivas, narrativas excludentes.
E houve muito pouca discussão sobre a própria União Europeia (UE), tomando-a como um dado adquirido e cristalizado. É verdade que, nas eleições legislativas nacionais, a reflexão sobre a própria natureza do Estado-nação em causa costuma ser posta de lado – talvez com exceção dos Estados onde os movimentos independentistas assumem uma centralidade importante na vida política. Repensar os Estados-nação seria uma boa ideia: não apenas as narrativas que dão corpo a um coletivo (a história passada tem de ser sempre triunfante?), como também as potenciais alternativas a uma ideia de fronteira que define um dentro e um fora, um nós e um eles. No caso de um organismo como a UE, que define um conjunto de regras fundamentais para os nossos quotidianos, esta ausência de reflexão é ainda mais estranha, porque repensar as relações com os outros países deveria fazer parte de uma reflexão permanente da própria política nacional, em vez de tomada como um facto imutável. Este texto propõe cinco pontos de partida para refletir sobre a UE.
O primeiro ponto é sobre a forma como a UE é confundida com Europa e a Europa é encarada como o espaço óbvio e único de pertença internacional de um país como Portugal. Se a primeira confusão desconsidera uma parte essencial do continente e dos seus povos, a naturalização da segunda ideia tem ramificações ainda mais negativas. O mundo não começou na Europa, não se limita a ele e a Europa é só uma das possibilidades de alinhamento internacional.
Poderá ser argumentado que a distância física é determinante: mas Portugal não é mais próximo de Marrocos ou da Argélia do que da Finlândia ou da Grécia?
Poderá ser defendido que há uma maior proximidade cultural: mas a herança árabe na Península Ibérica, por exemplo, não é mais expressiva do que a relação com muitos dos povos que pertencem a estados-membros da UE? E, por outro lado, a cultura não é estática, as relações entre povos são reflexo de operações de aproximação e afastamento e não é particularmente honesto as lideranças políticas de um Estado promoverem a aproximação a determinados países e o afastamento de outros para depois justificarem com a proximidade e o afastamento promovidos por si próprias.
Parece fazer muito sentido um Estado como o português relacionar-se bem com os seus congéneres europeus. Mas parece fazer muito pouco sentido que o faça isolando-se do resto do mundo, como se esta pertença tivesse de ser feita em detrimento de outras.
O segundo ponto passa por colocar em causa ideias como as de “valores europeus” e de um “modo de vida europeu” – vale a pena relembrar que um dos Comissários europeus tem a pasta da “Promoção do Modo de Vida Europeu”. Aquilo que pode parecer simplesmente uma piroseira bacoca é bem mais perigoso do que isso: é uma afirmação de uma pretensa superioridade moral da UE face ao resto do mundo, que seria caraterizada pela liberdade de qualquer pessoa levar a vida que quisesse.
Se é evidente que os regimes repressivos – dos movimentos de trabalhadores, das mulheres, das pessoas LGBT+, de determinadas comunidades étnico-raciais – devem ser combatidos e não desculpados em nome de uma visão campista do mundo1, isso não nos pode levar a assumir que os “países ocidentais” sejam o farol da emancipação do mundo. O colonialismo persiste, hoje, sob a forma de relações económicas desfavoráveis ao Sul global2, ao mesmo tempo que o racismo se mantém como uma realidade incontornável das “vidas internas” nos países da UE, mesmo aqueles em que a extrema-direita não faz parte do governo.
Por outro lado, a repressão dos direitos do trabalho funciona como um mecanismo de destruição das possibilidades de vida de centenas de milhões de pessoas na UE: longe das ficções liberais, o liberalismo económico é um ataque concertado à liberdade coletiva e individual de construir uma vida com amplas possibilidades, uma vida livre. Será este ataque o reflexo dos tais “valores europeus”?
Importa, então, refletir sobre a forma como a UE liga diferentes comunidades nacionais. O terceiro ponto passa pela constatação de que a construção da UE se baseou na integração mercantil, fomentando o surgimento de um mercado único, acompanhado pela livre circulação de capitais. Nunca será demais recordar as sábias e honestas palavras do ex-Presidente francês Nicolas Sarkozy, que assumia que “Felizmente, a Europa estava lá para os impedir [aos ministros comunistas e aos dirigentes socialistas no governo de França] de levar a sua ideologia e a sua lógica avante. É também para isso que serve a Europa!”3.
Em vez de uma construção baseada no avanço combinado dos direitos políticos e sociais dos povos, a UE avançou como um espaço privilegiado de troca mercantil a que os direitos, nomeadamente os trabalhistas, deviam estar sujeitos, podendo ser retirados na medida em que contrariassem os interesses de acumulação do capital. A forma como a UE geriu a crise da Zona Euro é representativo desta essência: os interesses dos grupos financeiros do centro da Europa sobrepuseram-se aos direitos dos povos do Sul, alvos de uma austeridade que, para lá de destrutiva economicamente, gerou um tsunami social. Se em Portugal nos lembramos bem nos anos da troika, na Grécia foi tudo ainda pior.
Entre os povos e o capital, a escolha das instituições europeias foi clara, pelo segundo. Rejeitando a soberania dos países para assegurarem o bem-estar dos seus cidadãos e delinearem as respostas macroeconómicas desejadas, a chantagem europeia ofereceu a escolha entre a austeridade ou uma promessa de boicote massivo perante cenários de rutura com o euro ou a UE. Para lá de destrutivas, muitas destas decisões foram tomadas por tecnocratas não eleitos: a Comissão Europeia consegue replicar tantos dos clichés atribuídos (justamente, em grande medida) à burocracia soviética que, se não fosse trágico, seria cómico.
O quarto ponto remete para outro dos efeitos excludentes desta forma de construção. Se é verdade que foi facilitada a circulação de cidadãos europeus entre países, tanto da UE como alguns extracomunitários pertencentes ao Espaço Schengen, esta ampliação da liberdade de circulação para uns representou o agravamento do controlo fronteiriço para outros. Sendo “o entendimento da CEE/UE (…) mais rígido [do que o de Portugal e de Espanha] sobre a entrada e permanência de imigrantes irregulares nos Estados-membros”4, a adesão à UE significou um maior fechamento à entrada de cidadãos vindos de outras geografias.
O Pacto migratório europeu, aprovado em abril, agrava ainda mais a construção da Europa como uma fortaleza fechada ao exterior, aprofundando o caráter criminoso da política europeia face às migrações e o estatuto do Mediterrâneo como um cemitério de migrantes5. Haverá alguma surpresa em o antigo diretor-executivo do Frontex (Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira) ser um dos candidatos da extrema-direita francesa às eleições europeias6?
A UE constrói-se, assim, como um ator repressor dos movimentos transfronteiriços, comportando-se como um bloco geopolítico excludente. Este comportamento é, evidentemente, indissociável da hegemonia profunda de uma narrativa que opõe um nós a um eles, atiçando o racismo e a supremacia branca.
O último ponto passa por pensar como pode ser construído um internacionalismo emancipatório. Como é que o divórcio estrutural entre direitos do povo e a construção de um espaço comum é visto como uma inevitabilidade, mesmo junto de alguma “esquerda”, a bem da “modernidade”? Como é que aceitamos que burocratas não eleitos tomem decisões que se sobrepõem às necessidades e desejos de povos inteiros? Como deixámos que se consolidasse um eurocentrismo mercantil em vez de uma verdadeira comunidade entre os povos?
O recuo político ao longo das últimas décadas, marcado por derrotas sucessivas dos movimentos de trabalhadores e da esquerda, contribui para aprofundar a traição a um internacionalismo popular, para reprimir a soberania dos países, para manter as regras de um euro que beneficia as elites do centro da Europa em detrimento dos povos do Sul, para aprofundar o jugo antidemocrático da decisão europeia. Parece-me que a inexistência de um horizonte de superação do capitalismo rumo a sociedades de pessoas verdadeiramente livres terá contribuído para estes desenvolvimentos, alimentando sentimentos de aceitação, de impotência, de desmobilização.
A tarefa da esquerda socialista passa, assim, por criar novos imaginários de uma emancipação total que supere o capitalismo, que sirva de referencial para a luta.
No plano internacional, a paz e a emancipação mundial significam também respeitar as diferenças culturais, a diversidade linguística e a multiplicidade de desejos e de “modos de vida”. Em vez de construir um “modo de vida europeu”, é preciso respeitar diferentes modos de vida, assegurando que em todos eles há uma real liberdade material e de escolha. O socialismo será tão mais livre quão mais formas diferentes de estar souber reconhecer e abarcar.
Este projeto de emancipação coletiva mundial necessita de construir a confiança entre povos de todo o mundo. E, se falamos de Europa, também entre povos europeus, rompendo linhas de pensamento preconceituosas e de desconfiança entre trabalhadores de diferentes lugares (o que Ventura disse recentemente no parlamento, sobre a Turquia, outros consideram ser verdade sobre os povos do sul da Europa pertencentes à UE7). Implica, também, a proliferação de lutas globais. No domínio sindical, por exemplo, como conseguiremos organizar greves globais que parem uma empresa multinacional ou um setor de atividade em todo o mundo?
Esta construção internacional, se envolve um plano de diálogo e cooperação popular, implica igualmente a disponibilidade e a preparação para o confronto com instituições vigentes e com outras classes. Assim, a crítica a várias das políticas da EU, da política de migrações ao funcionamento do euro, deve ser acompanhada de uma postura dual: a luta pela sua transformação profunda e a preparação política e técnica para uma eventual rutura, num contexto em que esta se torne uma necessidade política para responder aos anseios populares. Parece-me que colocar a questão nestes termos é mais profícuo e honesto politicamente do que colocar a permanência ou saída da UE e do euro como fins em si mesmo. Serão os combates políticos concretos que definirão a forma desse internacionalismo por vir.
Samuel Cardoso é economista e militante do Bloco de Esquerda.
Notas:
1 O campismo não é uma boa bússola - Esquerda Online
2 Imperialist appropriation in the world economy: Drain from the global South through unequal exchange, 1990–2015 - ScienceDirect
3 L'Europe Sociale N'Aura Pas Lieu (2009), de Antoine Schwartz e Francois Denord, editado pela Raisons d’Agir