“Recusamos a 'nova normalidade' de condenar os filhos a viver pior que os seus pais”

26 de agosto 2018 - 17:16

A coordenadora do Bloco de Esquerda interveio este domingo em Marselha, na universidade de verão do partido França Insubmissa, liderado por Jean-Luc Mélenchon. Catarina Martins falou da situação em Portugal e na Europa, acusando a União Europeia de alimentar os 'monstros' dos nacionalismos e da xenofobia.

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Catarina Martins e Jean-Luc Mélenchon no encerramento da universidade de verão da França Insubmissa - Foto esquerda.net
Catarina Martins e Jean-Luc Mélenchon no encerramento da universidade de verão da França Insubmissa - Foto esquerda.net

Na sua intervenção, que pode ler na íntegra abaixo, a coordenadora do Bloco de Esquerda criticou 'a nova normalidade' de “condenar os filhos a viver pior que os seus pais, os netos sonharem menos que os seus avós” e reclamou o “direito à felicidade e a construí-la”, “a liberdade de criar futuros melhores e de sermos cidadãos por inteiro do mundo e em cada lugar”, “a viver sem medo”.

Catarina Martins falou também da situação em Portugal, dos passos positivos, mas apontou também que “são cada vez mais os que sentem que não bastam pequenos passos”.

Sobre a União Europeia, Catarina Martins acusou: “Barbárie é já uma Europa que transforma o Mediterrâneo em cemitério. Nacionalismos e xenofobia são os monstros que esta União Europeia alimenta, na Hungria, na Itália ou na Áustria, aqui mesmo, em todos os países onde a extrema-direita cavalga o ódio no desespero dos povos. O branqueamento da extrema-direita, alimentada pelo poder económico e pelo consenso europeu, essa normalização do ódio e da xenofobia, é o maior perigo de todos”.

Intervenção de Catarina Martins, em Marselha, na iniciativa “Les AMFis” da França Insubmissa

Encerramento da iniciativa “Les AMFis” da França Insubmissa, em Marselha, a 26 de agosto de 2018, com a presença de Catarina Martins e Jean-Luc Mélenchon – Foto esquerda.net
Encerramento da iniciativa “Les AMFis” da França Insubmissa, em Marselha, a 26 de agosto de 2018, com a presença de Catarina Martins e Jean-Luc Mélenchon – Foto esquerda.net

É um prazer estar aqui convosco. Estar neste espaço em que tantos e tão interessantes conversas e debates decorreram é entusiasmante. Não falta alternativa na Europa, não falta quem dê o seu melhor na construção de novas soluções para os problemas de sempre e novas soluções para os novos problemas. Obrigada.

Agradeço o convite da França Insubmissa e do Jean Luc Melenchon. Temos feito um caminho de debate, construção, juntar forças, para um novo projeto na Europa. Um projeto de justiça, para recuperar a soberania dos povos e combater a ditadura dos mercados financeiros; um projeto para uma nova estratégia económica, que recusa a predação dos recursos naturais e inova no respeito pelo planeta que partilhamos; um projeto de emancipação, feminista, anti-racista, inclusivo; um projeto de paz, que recusa a militarização e o ódio e sabe o valor da cooperação e do diálogo europeus e internacionais. Um projeto que responde pelo povo, para o povo.

É este o nosso caminho comum. Agora, o povo.

Tempos difíceis e de desesperança

Temos vivido tempos difíceis e de desesperança. Nas últimas décadas os povos da Europa têm perdido voz e capacidade de decisão e o capital financeiro tem hoje mais poder do que nunca. Esta captura da democracia tem custos muito altos: na região mais rica, a Europa, tanta desigualdade, injustiça, pobreza.

Desde a crise financeira de 2007/2008 que a situação na Europa se agrava e que é apresentado como “novo normal” que se viva pior, que as vidas sejam sempre mais precárias, que o futuro seja um lugar a temer.

Há poucos dias, foi anunciado o fim do programa da troika na Grécia. O presidente do Eurogrupo declarou que a Grécia tinha regressado à normalidade e que terá agora de agir com responsabilidade.

O que significa o pedido de “responsabilidade” à Grécia?

Temos de pensar no que quer isto dizer. Pelo povo grego, com quem somos solidários, e por todos nós. O que é esta normalidade europeia?

Na Grécia, a remuneração do trabalho - salários e pensões - sofreu cortes brutais e o desemprego e a precariedade são regra. Quase tudo foi privatizado e a dívida pública cresceu desmesuradamente para pagar os buracos da grande finança internacional. É esta a normalidade europeia? Trabalhadores cada vez mais pobres? Povos sem qualquer controlo sobre os setores estratégicos da economia? Países destruídos, sangrados, para pagar os desvarios dos mercados financeiros?

E o que significa o pedido de “responsabilidade” à Grécia? Duas coisas, igualmente graves. Em primeiro lugar que a União Europeia continua a culpar os povos do sul pela crise do sistema financeiro internacional (e que, portanto, não aprendeu nada com a enorme destruição a que assistimos nos últimos anos). Em segundo lugar, que continuará a exigir à Grécia a política da destruição: liberalização, desregulação, cortes e pagamentos impossíveis de uma dívida ilegítima.

Se nesta União Europeia o “novo normal” é viver pior e aquilo a que chamam responsabilidade não é mais do que chantagem, temos de agir. De juntar forças contra a chantagem e em nome da esperança. Agora, o povo.

O que se passa na Grécia tem para nós, em Portugal, particular significado. Não só porque também conhecemos boa parte da receita da Troika, mas também porque o presidente do Eurogrupo é o Ministro das Finanças português. E parece recusar aprender com as lições da Grécia como com as de Portugal.

Um acordo inédito

Em Portugal, a direita foi afastada do governo em 2015. O crescimento dos partidos de esquerda permitiu um acordo inédito, com um governo minoritário do Partido Socialista que está obrigado a negociar com a esquerda. E assim fizemos, ao longo destes 3 anos, um caminho de reversão de algumas medidas da troika. Acabaram os cortes nos salários e pensões, o salário mínimo nacional cresceu 5% ao ano, repuseram-se apoios sociais, travaram-se privatizações.

Cada uma das medidas de recuperação do país foi atacada pelas instituições europeias. Diziam que o crescimento do salário mínimo traria desemprego, que o aumento das pensões traria o colapso da segurança social, que travar as privatizações afastaria o investimento. Aconteceu o oposto. Há mais emprego, as contas da segurança social ficaram mais sólidas, a economia voltou a crescer.

Gostava de vos dizer que são tudo boas notícias. Não é assim. Provámos que ficamos melhor quando temos a coragem da insubmissão. Mas o caminho é tímido demais e as injustiças enormes.

Portugal mantém-se dependente da política do banco central Europeu e com uma dívida grande demais. A política de salvar bancos privados com dinheiro público não se alterou nem o euro deixou de servir para a Alemanha ter excedentes recorde às custas das economias periféricas. Os setores estratégicos são ainda controlados por capital financeiro internacional ou por outros países. Os salários continuam dos mais baixos da Europa e os direitos do trabalho não foram reconstruidos.

São cada vez mais os que sentem que não bastam pequenos passos

No país são cada vez mais os que sentem que não bastam pequenos passos. Precisamos da coragem de ir mais longe. Mas o Partido Socialista em Portugal, como no resto da Europa, mantém-se alinhado com a ortodoxia neoliberal europeia e vai repetindo: a Europa não permite, os tratados europeus não permitem.

Já conhecemos todos as más desculpas de quem não quer mudar nada. Em Portugal, como em França, em Espanha ou em qualquer outro país da Europa, sempre que alguma voz se levanta para denunciar a injustiça, a concentração da riqueza, os paraísos fiscais, aqueles que dominam as instituições europeias, dizem: nada a fazer. É a globalização, a modernidade. Teremos de nos adaptar porque qualquer alternativa é um perigoso regresso ao passado.

Mas na verdade o regresso ao passado está já aqui. É a exploração de sempre no trabalho mal pago e sem direitos. É o velho colonialismo na imposição externa e no saque da riqueza aos povos. Isso é o passado.

Um mundo em que uma pequena elite circula livremente e a esmagadora maioria está aprisionado nas fronteiras de um lugar sem futuro ou do seu baixo salário, da discriminação ou do medo, não é moderno nem cosmopolita. É injusto de séculos e é contra a injustiça que nos levantamos.

A escolha é hoje outra Europa ou a barbárie

Muitas vezes ouvimos que teremos de defender esta Europa, com o seu “novo” normal, ou só nos restará a barbárie. Que a escolha é entre esta União Europeia ou a desagregação e o regresso dos nacionalismos. Não é assim. Barbárie é já uma Europa que transforma o Mediterrâneo em cemitério. Nacionalismos e xenofobia são os monstros que esta União Europeia alimenta, na Hungria, na Itália ou na Áustria, aqui mesmo, em todos os países onde a extrema-direita cavalga o ódio no desespero dos povos. O branqueamento da extrema-direita, alimentada pelo poder económico e pelo consenso europeu, essa normalização do ódio e da xenofobia, é o maior perigo de todos.

A escolha afinal é hoje outra Europa ou a barbárie. Outra Europa ou a desagregação. Uma Europa dos povos ou nenhuma Europa.

Lembremos como se constrói paz, como se semeia solidariedade. De que é feita a riqueza e o desenvolvimento. Sabemo-lo pela nossa história comum. Não foram os mercados financeiros que reconstruiram a Europa depois da guerra ou a democracia depois do fascismo. Foram os povos e sua luta.

O período de maior desenvolvimento e paz na Europa foi o que se construiu na luta de quem trabalha

O período de maior desenvolvimento e paz na Europa foi o que se construiu na luta de quem trabalha. Na luta pelo horário de trabalho e pelos direitos de quem trabalha. No investimento público e no controlo público dos setores estratégicos da economia. Na construção da escola pública, dos hospitais públicos, dos sistemas de segurança social públicos. Na luta feita solidariedade, feita democracia.

É essa luta, essa força, que reclamamos hoje. Agora, o povo.

É com leis do trabalho que dignificam quem trabalha e promovem o pleno emprego que garantimos a distribuição da riqueza. É com o acesso à saúde e à educação que garantimos instrumentos de igualdade. É com serviços públicos, com o controlo público dos setores estratégicos da economia, com escolhas políticas e económicas ecológicas que garantimos o nosso futuro comum. E se os tratados europeus nos impedem essas escolhas, façamos novos tratados.

Recusamos a “nova normalidade” de condenar os filhos a viver pior que os seus pais, os netos sonharem menos que os seus avós. Reclamamos o direito à felicidade e a construí-la. Reclamamos a liberdade de criar futuros melhores e de sermos cidadãos por inteiro do mundo e em casa lugar. A viver sem medo.

Agora, o povo.

(Títulos e subtítulos do esquerda.net)