As raízes vermelhas de Hayao Miyazaki

14 de setembro 2024 - 14:05

O Studio Ghibli, conhecido nomeadamente pelas obras de Hayao Miyazaki, não é a Disney japonesa, é mais uma anti-Disney. Concebidos por animadores saídos do movimento comunista japonês, os seus filmes celebram o trabalho criativo e a solidariedade humana contra o capitalismo e a guerra.

por

Owen Hatherley

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Hayao Miyazaki numa greve
Hayao Miyazaki numa greve

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As raízes de um dos estúdios de animação mais prósperos das últimas décadas podem ser encontradas em Toei Doga, o departamento de animação de uma das maiores sociedades cinematográficas do Japão. Em meados dos anos 1960, as condições de trabalho no setor eram brutais, as equipas de animadores produziam centenas de desenhos por dia para desenhos animados de televisão como Astro Boy.

Os prazos de produção eram apertados e a qualidade não tinha qualquer importância; pelo menos um animador morreu no trabalho. Os jovens animadores Hayao Miyazaki (1941-) e Isao Takahata (1935-2018) encontravam-se entre os mais proeminentes delegados sindicais do estúdio Toei. Há uma fotografia que mostra o jovem Miyazaki, de megafone na mão, a liderar uma greve. Vinte anos mais tarde, Miyazaki e Takahata fundariam juntos o seu próprio estúdio, o Studio Ghibli.

Ghibli deveria ser tudo o que os estúdios existentes não eram, mesmo que continuasse a dedicar-se ao entretenimento popular. As suas animações fluidas e ricas retratam abertamente os perigos da destruição ambiental, da guerra e do capitalismo, mas de alguma forma flutuam – tal como o seu herói, o “porco vermelho”, Porco Rosso – sob o radar político.

Miyazaki não resistiu a declarar: “Devo dizer que odeio as obras da Disney”, na própria altura em que a Ghibli assinou um acordo de distribuição no estrangeiro com o conglomerado multinacional em 1996. Os filmes da Ghibli nunca são propagandísticos, mas, na sua descontração, deram origem a uma forma muito particular de ecossocialismo. Miyazaki e Takahata estão entre os poucos cineastas marxistas que o socialista militante William Morris (1834-1896) teria reconhecido como almas gémeas.

Ao mesmo tempo, a orientação política da Ghibli nunca foi um segredo. Em 1995, o realizador de Patlabor e Ghost in the Shell, Mamoru Oshii (1951), membro da Nova Esquerda libertária, descreveu Takahata como um “estalinista”, Miyazaki como “um pouco trotskista” e o Studio Ghibli como um “Kremlin”. O Studio Toei, como muitos estúdios na década de 1960, era em grande medida controlado pelo Partido Comunista Japonês e, embora Miyazaki afirmasse nunca ter sido um militante que pagasse quotas, não há dúvida de que ele e Takahata eram companheiros de viagem.

Há algumas referências maliciosas a este facto nos seus filmes. O ás da aviação de Porco Rosso (1992), por exemplo, recusa-se a alistar-se na força aérea de Benito Mussolini – declarando “antes um porco do que um fascista” – e numa cena a sua amante Gina canta o hino da Comuna de Paris “Le Temps des Cerises”. Mas a visão política de Ghibli manifesta-se sobretudo nas suas obras sobre o campo, no Japão e noutros locais, que parece ser simultaneamente um sonho e um pesadelo.

O Ghibli está sediado em Tóquio, a maior metrópole do mundo, e é talvez a ausência de um “campo” próximo que faz com que seja um foco tão importante para o trabalho do estúdio. Em O Meu Vizinho Totoro (1988), as criaturas de uma floresta fantasiada e transfigurada ajudam a consolar duas crianças da cidade cuja mãe está a ser tratada de uma doença crónica.

Mas um dos mundos de sonho mais politicamente reveladores da Ghibli aparece no anterior O Castelo no Céu (1986), em que um rapaz de uma aldeia mineira dá por si a explorar a cidadela flutuante destruída de uma sociedade de alta tecnologia tornada obsoleta, disputada por aristocratas malévolos. As paisagens do filme são diretamente inspiradas pela visita de Miyazaki e Takahata ao Sul do País de Gales em 1985.

Com a intenção de realizar um filme sobre a Revolução Industrial, embarcaram numa viagem de investigação nos Vales de Gales do Sul, uma região de estranhas paisagens rurais e industriais onde as casas ajardinadas se intercalam com montanhas, minas e siderurgias. Para quem conhece os Vales, o filme é mais inquietante, mas o sul do País de Gales foi apenas uma fonte de inspiração visual. Por acaso, o filme foi realizado no rescaldo da greve dos mineiros de 1984-85. No ano seguinte, Miyazaki expressou a sua admiração pelo “verdadeiro sentido de solidariedade” que encontrou nas aldeias mineiras, e o filme é claramente inspirado por isso.

Tal como o seu filme precedente, a fábula ecológica pós-apocalíptica Nausicaä do Vale do Vento (1984), O Castelo no Céu é a afirmação de uma visão particular da natureza e de uma visão particular do trabalho. Apesar do grotesco de alguns dos seus filmes, Ghibli nunca procurou o que estava na moda ou era odioso. Falando em 1982 sobre a sua rejeição da vaga de banda desenhada niilista gekiga pós-1968, Miyazaki explicou que tinha decidido que era “preferível expressar de forma honesta que o que é bom é bom, o que é bonito é bonito e o que é belo é belo”. O trabalho manual é uma das coisas que Miyazaki e Takahata apresentavam constantemente como belas.

Desde as fundições de O Castelo no Céu até às operárias que montam os aviões em Porco Rosso, os filmes da Ghibli estão repletos de imagens de pessoas a fabricar objetos. Os filmes podem facilmente ser caricaturados como anti-tecnológicos, dada a quantidade de destruição ecológica que retratam, especialmente em filmes mais recentes como Ponyo à beira-mar (2008), que tratam explicitamente as alterações climáticas.

Mas o Studio Ghibli adere mais a uma distinção inspirada em William Morris entre “trabalho útil” e “trabalho inútil”, este último ilustrado de forma memorável no trabalho interminável, purgatorial e despoticamente organizado de A viagem de Chihiro (2001). Em 1979, Miyazaki criticou as séries de robôs mecha pelas quais o Japão se estava a tornar conhecido no estrangeiro, devido à abordagem inevitavelmente juvenil e alienada da tecnologia no género. Preferia que “o protagonista se esforçasse por construir a sua própria máquina, a reparasse quando esta se avaria e tivesse de a operar ele mesmo”.

“Fazê-la funcionar ele mesmo”. É exatamente isso que as pessoas nos filmes do Ghibli fazem, expressando-se através do trabalho que fazem com as suas mãos. Os filmes de Miyazaki podem testemunhar tanto a admiração pelos feitos do trabalho humano como o horror pelas suas consequências, como em As Asas do Vento (2013), um filme de época passado na década de 1930 que retrata com amor o desenvolvimento e a construção do avião Mitsubishi A6M e mostra como foi utilizado pelo imperialismo japonês.

Takahata permaneceu marxista até à sua morte em 2018, enquanto Miyazaki perdeu a sua fé nos anos 90, enquanto completava a versão manga de Nausicaä do Vale do Vento. Nas palavras de Miyazaki, ele “experimentou o que alguns podem considerar uma capitulação política”, ou seja, decidiu “que o marxismo era um erro”. O autor sublinha que esta decisão não tem nada a ver com acontecimentos políticos ou pessoais, mas sim com uma rejeição filosófica do romantismo obreirista – “as massas são capazes de fazer um número infinito de coisas estúpidas”, diz – e uma rejeição do “materialismo marxista” e da filosofia do progresso material.

O próprio Miyazaki resumiu o seu percurso político dizendo que “voltou a ser um verdadeiro pobre de espírito”. Talvez o facto de ser coproprietário de uma empresa de sucesso apoiada pela Disney tenha algo a ver com isso. Embora as condições de trabalho na Ghibli tenham a reputação de serem muito melhores do que na maioria dos estúdios de animação japoneses, não deixa de ser uma empresa capitalista, que ganha milhões com os produtos derivados.

No entanto, Miyazaki e o Studio Ghibli mantiveram uma aversão à guerra – talvez não haja maior filme anti-guerra do que O túmulo dos Pirilampos (1988) de Takahata – e ao imperialismo. A representação do fascismo japonês e alemão em As Asas do Vento (2013) enfureceu os nacionalistas japoneses, enquanto o feroz O Castelo Andante (2004), a última verdadeira obra-prima de Miyazaki, canalizou a “raiva” do realizador face à guerra do Iraque, durante a qual se recusou a viajar para os Estados Unidos. O castelo deste filme, uma máquina orgânica, mutante e reativa, é uma das imagens mais poderosas de Miyazaki de uma tecnologia não alienada. Da mesma forma, Miyazaki nunca se reconciliou, pelo menos filosoficamente, com o capitalismo: A Viagem de Chihiro está repleto de imagens horríveis de exploração industrial e dominação de classe sob a aparência de uma fantasia infantil.

As subtilezas da visão da Ghibli sobre o desenvolvimento podem ser melhor observadas em alguns dos seus filmes mais calmos. Dois filmes da década de 1990 têm como cenário a Cidade Nova de Tama, um projeto de desenvolvimento estatal que arrasou vastas áreas rurais nos arredores de Tóquio na década de 1970: Pompoko e O Sussurro do Coração. Pompoko, lançado em 1994, é uma eco-crítica ao estilo da Ghibli em que os tanuki, os cães-guaxinim considerados no folclore japonês como tendo uma vida dupla, ao mesmo tempo animais comuns e dotados de poderes mágicos como a metamorfose, conspiram para impedir a construção da nova cidade.

É uma farsa maravilhosa e uma descrição mais otimista dos revolucionários não-humanos do que qualquer coisa que George Orwell tenha escrito. Mas Tama, uma vez fora da terra, é o cenário para o romance adolescente aparentemente vulgar de O Sussurro do Coração, lançado em 1995. Uma jovem rapariga que vive num bairro de danchi – a habitação social construída em grande número em Tama – tem um fraquinho por um rapaz que vive a montante, numa zona mais velha e mais abastada da cidade.

O antagonismo de classes e a atração entre os dois, ajudados por um gato fantasma antropomórfico, são descritos sem amargura, e a paisagem urbana é desenhada com amor e precisão: uma imagem da própria modernidade japonesa como algo doce e humano. Isto pode refletir a rejeição de Miyazaki da luta de classes, mas também faz parte da sua reação ao niilismo em todas as suas formas. Também aqui, na paisagem moderna, o que é belo é belo.

O filme mais dialético e subtilmente marxiano do Studio Ghibli é Memórias de Ontem (1991), de Isao Takahata. Neste filme, Taeko, uma mulher perto dos trinta anos e insatisfeita com a sua vida em Tóquio, vai para uma aldeia ajudar nas colheitas. Um jovem trabalhador agrícola guia-a através da paisagem, com os seus rios, campos, pântanos e florestas, tudo carinhosamente animado com pormenores luxuriantes e meticulosos. Ela contempla-a com admiração, expressando a sua admiração pela “natureza”. Um filme da Disney ficaria por aí, mas não um da Ghibli. O agricultor, sorridente mas algo desdenhoso, insiste que tudo o que ela vê é resultado do trabalho humano.

Parecendo parafrasear The Country and the City, do marxista galês do sul Raymond Williams (1912-1988), diz-lhe que “os citadinos veem árvores e rios e estão gratos à ‘natureza’”. Mas “cada pedaço de terra tem a sua história, não apenas os campos e os arrozais. O trisavô de alguém plantou-a ou desbravou-a”. No final do filme, Taeko decide ficar na aldeia, precisamente porque a sua experiência foi a de trabalhar numa comunidade e não a de espetadora e contempladora.

Os mundos imaginários do Studio Ghibli são paisagens de produção e espaços de solidariedade, e aqui, no seu filme mais realista, está uma pequena imagem de uma verdadeira utopia.


Owen Hatherley é editor de cultura da Jacobin e autor vários livros incluindo Red Metropolis: Socialism and the Government of London.

Texto originalmente publicado na Jacobin. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.