Radiografia da rota migratória sérvia: como a Europa externaliza fronteiras

25 de junho 2023 - 12:22

As expulsões a quente e o tratamento degradante são prática corrente nas fronteiras dos países dos Balcãs e da Sérvia no quadro da cooperação transfronteiriça destinada a impedir a todo o custo o trânsito de pessoas. Por Jose Ángel Sánchez Rocamora e Alona Malakhaeva.

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Vala electrificada na fronteira entre a Sérvia e a Hungría. Foto de Jose Ángel Sánchez Rocamora/El Salto.
Vala electrificada na fronteira entre a Sérvia e a Hungría. Foto de Jose Ángel Sánchez Rocamora/El Salto.

A crise humanitária das pessoas em trânsito na rota dos Balcãs começou em 2015. Desde então, a UNICEF diz que mais de 1,5 milhões de pessoas passaram pela Sérvia, um país que tem três fronteiras com a UE (Bulgária, Roménia e Hungria) bem como fronteiras com a Bósnia, Macedónia do Norte e Kosovo. A grande maioria foge dos seus países de origem devido ao risco de vida ou por razões económicas e provém de países como Afeganistão, Síria, Índia, Paquistão, Marrocos, Tunísia, Bangladesh, Irão e Burundi. Segundo o ACNUR e os dados mais recentes do governo, há atualmente cerca de 5.000 a 6.000 migrantes ou refugiados em campos de acolhimento oficiais ou em acampamentos improvisados.

O Afeganistão e a Síria são países envolvidos com conflitos armados e para os quais não foram estabelecidas vias seguras de asilo. Esta situação tem sido constantemente denunciada, a nível internacional, e é descrita por um refugiado afegão anónimo de um campo de refugiados perto da Hungria: “...na Sérvia não há embaixada do meu país, a grande maioria de nós não tem documentos e não tem forma de aceder à Europa para pedir asilo, aqui dificilmente concedem asilo, por isso somos deixados a trabalhar ilegalmente e em condições sub-humanas…”.

No caso do Magrebe, a Tunísia tinha um regime de isenção de vistos que foi cancelado devido à pressão da UE, pelo que o número de migrantes de origem tunisina diminuiu. O encerramento da fronteira espanhola com Marrocos e a repressão que resultou na morte de mais de 23 migrantes às mãos da polícia fronteiriça de ambos os países levou a um aumento do número de cidadãos marroquinos que procuram outras rotas, tornando-os o segundo maior grupo de migrantes no país.

Os grupos mais pequenos provêm da Rússia, da Ucrânia e de Cuba. Para os exilados russos, a Sérvia tornou-se a rota mais segura: desde o início da guerra, o país dos Balcãs acolheu mais de 150.000 exilados, cuja situação de vulnerabilidade não é comparável à de outras nacionalidades, uma vez que veem a Sérvia como um destino final e não como um país de trânsito. A estes, há que acrescentar 13.000 ucranianos alojados em centros especiais. Por último, para os cubanos, a Sérvia estabeleceu-se como a porta de entrada para a UE, mas a partir de 14 de abril deste ano os regimes de isenção de vistos serão cancelados também, devido a pressões relacionadas com a adesão à UE.

Mas para aqueles que atravessam os Balcãs, o destino final é a Europa, uma vez que, devido ao desemprego, às más condições de trabalho, às violações dos direitos ou à falta de redes de apoio, não consideram a Sérvia como o destino final da sua rota.

De facto, os últimos dados fornecidos pelo ACNUR, no final de 2020, confirmam que apenas 2.800 pessoas tinham apresentado um pedido de asilo, das quais apenas 144 tinham iniciado o processo. Até ao final do ano, foi concedida proteção a 28 pessoas, um número muito baixo em comparação com outros países. De facto, o baixo número de concessões de asilo no país é uma das razões pelas quais muitas pessoas nem sequer tentam e porque os números continuam a diminuir.

Migrantes esperam tentar passar a fronteira entre a Sérvia e a Hungría perto do posto fronteiriço de Röszke. Foto de Jose Ángel Sánchez Rocamora/El Salto.

Atualmente, o país dispõe de 17 campos de acolhimento para refugiados ou pessoas em trânsito, geridos pelo Estado, onde, consoante a ocupação, as pessoas podem permanecer desde três dias a meses. A prioridade é dada às famílias, às mulheres e menores não acompanhados e sua gestão está as mãos da polícia. Apesar de grande parte da ajuda que recebiam ter sido agora destinada à crise humanitária gerada pela guerra ucraniana, recebem milhares de euros de instituições europeias.

Muitos ativistas, como Andjelka Grozdanic, acreditam que os centros de refugiados funcionam como uma ferramenta de controlo da migração. “Ficam três dias, são registados os seus dados e, se regressam, a polícia sabe que tentaram atravessar, mas não conseguiram, e se não regressam é porque conseguiram”. O acesso dos meios de comunicação social e das ONG independentes é quase impossível. Além disso, a maioria das mulheres está alojada nos campos oficiais, o que invisibiliza a sua situação. Ainda assim, as más condições e a sobrelotação têm sido denunciadas por organizações de direitos humanos. Em 2022 até houve uma greve no campo de refugiados de Principovac.

Migrante ferido pela policía húngara depois de ter sofrido três expulsões a quente para a Sérvia. Foto de Jose Ángel Sánchez Rocamora/El Salto.

Pessoas em trânsito: Fluxos migratórios na rota da Sérvia para a Europa

O percurso começa na Turquia, em voo direto, ou depois de atravessar diferentes fronteiras por transporte terrestre, a pé ou pagando a mafiosos. Mais tarde, têm de atravessar a Grécia ou a Bulgária que, embora sejam países europeus, também não são o destino final. As pessoas tentam ir para a Alemanha, Áustria, Itália ou Suíça, onde têm mais oportunidades. Depois, ou vão diretamente para a Sérvia, se estiverem na Bulgária, ou, se estiverem na Grécia, atravessam a Macedónia do Norte. À chegada, deparam-se com um estrangulamento que só lhes permite continuar através de outros países dos Balcãs, como a Croácia ou a Eslovénia e daí para Itália, ou tentar passar diretamente pela dupla vedação instalada pela Hungria.

De acordo com Bárbara Bécares, coordenadora de imprensa da organização No Name Kitchen (NNK), as rotas mais movimentadas nos Balcãs, através da Sérvia, começam na Bulgária e continuam para norte até à cidade de Subotica através da fronteira húngara, embora seja a mais violenta e implique saltar a cerca dupla. Outra opção é passar pela fronteira da Bósnia, que é perigosa porque é preciso atravessar o rio Drina em barcos e depois tentar fazer o mesmo pela Croácia. Por último, diretamente da Sérvia para a Croácia, esperando em campos improvisados ou geridos pelo Estado na cidade de Sid. De acordo com os relatos dos ativistas, até ao momento, a rota através da Bósnia é a que mais pessoas estão a atravessar.

Por último, a rota menos percorrida, devido às violentas expulsões a quente, que em muitos casos os obriga a ir à Sérvia para seguir outras rotas, é a da Bulgária para a Roménia e depois para a Hungria.

Janela partida depois de um desalojamento da polícia perto da fronteira entre a Sérvia e a Hungría. Foto de Jose Ángel Sánchez Rocamora/El Salto.

Expulsões a quente sistemáticas, uma prática promovida e aprovada pela UE

Nos últimos dois anos, a polícia tem vindo a expulsar acampamentos em fábricas abandonadas perto da fronteira: queimando pertences, partindo janelas e partindo eletrodomésticos, para depois os deportar para o sul do país. Foi o que aconteceu, em novembro de 2022, ou em fevereiro e março deste ano, em Tavankut, na fronteira entre a Hungria e a Sérvia, coincidindo com a visita do Comissário da UE. Andjelka Grozdanic, uma voluntária sérvia, diz que “quase 500 pessoas do campo foram forçadas a entrar em autocarros e depois levadas para a fronteira com a Macedónia do Norte, no sul do país”. Isto está a tornar-se uma ocorrência regular e, desde a visita do Comissário Europeu, já não lhes é permitido entrar em autocarros ou táxis, pelo que têm de pagar aos contrabandistas um preço muito elevado para regressar ao norte, perdendo poder de compra e impedindo-os de atravessar as fronteiras com as consequências físicas e psicológicas que sofrem. Depois das últimas expulsões, atualmente quase não há pessoas nos acampamentos, não mais de 150…”. Este relato coincide com os últimos dados do ACNUR que referem mais de 30 expulsões a quente da Sérvia para a Macedónia do Norte em 2022, consolidando-se como uma nova forma de reter pessoas.

Tendas numa casa abandonada ocupada por migrantes perto da fronteira entre Sérvia e Húngria. Foto de Jose Ángel Sánchez Rocamora/El Salto.

Ahmed, um migrante marroquino, explica: “depois de caminhar cinco dias pelas montanhas da Bulgária, cheguei à Sérvia e depois à fronteira húngara, onde paguei a contrabandistas um preço de 300 euros por quatro escadas para poder saltar a vedação. Fui detido e enviado de volta para a Sérvia e, no posto fronteiriço de Horgoš, fui deportado para o sul do país.

Dois tunisinos anónimos explicam como o primeiro foi vítima de seis expulsões a quente da Croácia: “A viagem mais perigosa é quando se passa para Zagreb, onde é mais fácil ser detido. Se conseguirmos chegar a Itália, estamos a salvo”. Também foi detido quando se encontrava em mau estado de saúde, a caminho da capital, e um agricultor ajudou-o. Mas quando acordou em casa, descobriu que tinha chamado a polícia e foi mandado de volta para a Sérvia. Em todos os casos, alegam ter sofrido maus tratos físicos e psicológicos com ferimentos visíveis e o roubo dos seus pertences e do seu telemóvel.

Sem dúvida que a violação dos direitos humanos mais comum praticada por todos os países são as expulsões. A Rede de Monitorização da Violência nas Fronteiras (BVMN), na sua investigação, aponta a Croácia como o país que mais sistematizou as expulsões, que, em quase 90% dos casos, incluem violência física e psicológica, maus-tratos ou tortura, e até deportações em massa para a Bósnia e obstrução do direito de asilo. Tudo sob instruções do governo e com a aprovação da UE.

A Croácia é o país com a mais longa fronteira com a Europa: a Frontex equipou-a com drones, dispositivos de termovisão, até mesmo um avião de vigilância e forças policiais com um dos maiores orçamentos investidos na vigilância das fronteiras.

Nas últimas duas semanas, têm chegado testemunhos de uma nova prática abusiva de desrespeito pelos direitos universais: a NNK informou que mais de 100 pessoas foram enviadas em autocarros da Croácia para campos de acolhimento na Bósnia. Depois de terem sido levadas à força e colocadas em centros de detenção, receberam um documento de expulsão que declara explicitamente que não podem entrar na UE durante um ano e um bilhete com as “despesas” que têm de pagar pela sua estadia nos centros de detenção croatas. Para além de lhes ser negado o acesso a um advogado, a tradução ou o direito de requerer asilo, as autoridades tentaram obrigá-los a pagar os “custos” da sua detenção ilegal e subsequente deportação.

Campo de acolhimento estatal para refugiados ou imigrantes ao lado do posto fronteiriço de Röszke na fonteira entre a Hungría e a Sérvia. Foto de Jose Ángel Sánchez Rocamora/El Salto.

Solidariedade e denúncia das violações dos direitos humanos

Na Sérvia, as organizações de extrema-direita, como a Narodna Patrola (“Patrulha do Povo”) e a STOP Naseljavanju migranata (“STOP Migrant Settlement”), assediam e exercem violência contra as pessoas que se deslocam, fazendo propaganda para denunciar as pessoas solidárias e organizando protestos na capital e no norte do país.

No entanto, a solidariedade difundiu-se através de uma rede de organizações sociais sérvias e internacionais, como a No Name Kitchen, que funciona como um guarda-chuva para outras organizações mais pequenas e que, na Sérvia, desenvolve o seu ativismo a partir das cidades fronteiriças de Sid e Subotica. Existem também redes de coordenação entre todas elas, como a BVMN, que está implantada em toda a região dos Balcãs. As suas ações visam uma ajuda humanitária de solidariedade e de natureza política, relatando, investigando e denunciando as violações dos direitos humanos em curso perante os tribunais dos direitos humanos, em Estrasburgo, na ONU e em outros organismos internacionais.

A NNK distribui alimentos e vestuário, ajuda com baterias para carregar telemóveis, fornece aconselhamento jurídico e de saúde e orientação sobre direitos, ao mesmo tempo que denuncia todos os casos de violência nos colonatos de Subotica e Sid e monitoriza a violência nas expulsões. Outra entidade de referência sérvia é o Info Park, em Belgrado, criado no início da crise. A sua sede fica perto da praça conhecida como o “parque dos afegãos”, onde centenas de pessoas estão acampadas para continuar a sua rota migratória e onde foi implantada uma grande rede de apoio solidário.

Armazém de roupa da organização social No Name Kitchen em Sid perto da fronteira entre a Sérvia e a Croácia. Foto de Jose Ángel Sánchez Rocamora/El Salto.

O pretexto da adesão à UE ou a forma de externalizar as fronteiras através da Sérvia

Os acordos de cooperação entre a Frontex, a UE e a Sérvia estão em vigor, desde 2017. Muitos deles são assinados no mais absoluto secretismo, como o de fevereiro de 2022, para a externalização das fronteiras nos Balcãs, conhecido como “Mecanismo de Retorno Regional”, promovido pela Plataforma de Coordenação Conjunta da Áustria e que se tornou conhecido graças a uma investigação independente promovida pela Fundação alemã Heinrich Böll.

Estes acordos têm um caráter administrativo e não requerem a aprovação do Parlamento Europeu, são feitos com países terceiros como Marrocos, Níger ou Bósnia, que utilizam como exemplo de cooperação transfronteiriça e neles se podem ler citações como: “o mais importante é o aumento do financiamento para as expulsões…” ou “prioridade ao estabelecimento de parcerias flexíveis de regresso entre parceiros dos Balcãs Ocidentais e da UE, permitindo ações de regresso em países terceiros…”. Para além disso, prevê-se que sejam financiadas com um fundo de 355 milhões de euros.

O orçamento para a cooperação transfronteiriça com a Sérvia e a Bósnia, no período entre 2022 e 2027, é de 14 milhões de euros financiados pelo fundo de pré-adesão da Comunidade Europeia (IPA). O acordo permite que os membros da Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira atuem com imunidade em países não signatários da UE e proponham ações ao Estado de acolhimento. Se a Sérvia o autorizar, podem mesmo atuar em seu nome. O acordo afirma claramente: “neste âmbito efetua-se o regresso forçado ou voluntário para a República da Sérvia em conformidade com o acordo de readmissão CE-Sérvia”.

A Frontex dispõe de um mecanismo de queixas e reclamações que está a ser analisado pelo Provedor de Justiça por ser quase inacessível. De facto, durante a visita do “El Salto” a campos em Subotica, observámos os Carabinieri italianos da Frontex a patrulhar o território sérvio perto da Hungria, onde, em 2015, o primeiro-ministro húngaro de extrema-direita, Viktor Orbán, construiu uma vedação dupla de mais de 175 km e enviou o exército que permaneceu até ao início da guerra na Ucrânia.

Dois sacos preparados para a passagem da dupla vedação fronteiriça entre a Sérvia e a Hungría. Foto de Jose Ángel Sánchez Rocamora/El Salto.

Em novembro de 2022, a Áustria, a Sérvia, a Hungria e a República Checa reuniram-se para cooperar contra a migração para fora da UE, criticando duramente o sistema europeu de asilo e outros países como a França e a Itália. Deixaram claro que não permitiriam a entrada de mais migrantes e que o seu objetivo final era fechar a rota dos Balcãs. Por fim, a 16 de março deste ano, a Comissária Europeia, Ylva Johansson, visitou a fronteira sérvio-húngara para renovar o mandato da Frontex e reafirmar os compromissos da Sérvia na gestão das fronteiras, felicitando o presidente pelo cancelamento dos vistos gratuitos para países como Tunísia, Burundi, Índia e Guiné-Bissau, como a Comissão Europeia tinha exigido para travar a migração. Esta última reunião foi acompanhada pelas maiores expulsões de acampamentos de trânsito jamais vistas no país. Todos eles perto da fronteira com a Hungria e que foram também acompanhados de deportações para o sul do país, nas proximidades da fronteira com a Macedónia do Norte.

A suposta cooperação transfronteiriça da UE com os países dos Balcãs e a Sérvia é, neste caso, camuflada sob o pretexto da adesão à comunidade europeia. Como se tratasse de uma portagem que tem de ser paga antes da entrada e que se traduz na externalização da fronteira, a fim de criar um estrangulamento para impedir a entrada de pessoas que tentam chegar à Europa. As organizações sociais e as ONG testemunharam que estas políticas migratórias violam sistematicamente os direitos humanos das pessoas em trânsito. Exemplos de investigação como "The black book of pushbacks", editado pela BVMN documentam mais de 12.000 casos, cometidos por guardas de fronteira na rota dos Balcãs, incluindo tortura, expulsões a quente, obstrução do direito de asilo, tratamento humilhante e uma longa lista de outras violações do direito internacional.

O trânsito através dos Balcãs tornou-se um círculo vicioso em que os migrantes não são desejados, nem pelos países europeus, nem pelo governo sérvio e onde, através da repressão e de constantes violações dos direitos humanos, se tenta mantê-los num limbo fronteiriço, alterando as rotas migratórias e deteriorando as suas condições de vida através de enormes investimentos nas forças de segurança, numa tentativa de os fazer regressar ou desistir de continuar a sua rota; até que talvez a UE necessite de mais mão de obra barata e os deixe entrar.


Publicado originalmente no El Salto. Traduzido por António José André para Esquerda.net