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Radiografia da crise haitiana

O Haiti vive um estado de rebelião popular, desintegração estatal e incerteza. Todos, até o presidente que resiste no cargo como pode, falam de uma "mudança radical", enquanto as elites políticas e económicas continuam a sangrar o país. Enquanto isso, o desacreditado Jovenel Moïse mantém-se no poder com o apoio dos Estados Unidos.
Em 1986, o ano do derrube da ditadura de 28 anos dos Duvalier, todos os democratas acreditaram que o país tinha virado a página e estava a caminhar para um novo sistema político e económico, e que o modelo predatório e a cleptocracia de um regime de opressão iam finalmente ser substituídos por um Estado de direito e de desenvolvimento.
Em 1986, o ano do derrube da ditadura de 28 anos dos Duvalier, todos os democratas acreditaram que o país tinha virado a página e estava a caminhar para um novo sistema político e económico
Uma nova Constituição, aprovada em referendo a 29 de março de 1987, pela grande maioria da população, cristalizou essas aspirações. No preâmbulo instituíram-se os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos e, além da democracia representativa, a nova Carta apontava a descentralização como um dos eixos do novo sistema político.
No entanto, nesse mesmo ano de 1987, as primeiras eleições realmente livres foram afogadas num banho de sangue incitado pelos militares do antigo regime e pelos falcões do Departamento de Estado dos EUA. Essas eleições teriam sido ganhas pelo fundador da primeira Liga de Defesa dos Direitos Humanos nos últimos anos da ditadura de Jean-Claude Duvalier, o professor e advogado Gérard Gourgue, candidato de um bloco que englobava as forças de esquerda e de centro-esquerda.
Finalmente, o que a Guerra Fria impediu de se concretizar foi alcançado em 1990 com o triunfo eleitoral do padre católico Jean-Bertrand Aristide, cujo discurso era muito mais radical. O muro de Berlim tinha caído um ano antes. A maioria da população viu em Aristide, como antes em Gourgue, a esperança de uma mudança real e a realização das aspirações contidas na Constituição de 1987. Mas não foi esse o caso. Os militares voltaram a tomar o poder poucos meses depois e, em outubro de 1994, quando Aristide voltou do exílio num avião militar norte-americano, ficou claro que, além das convulsões permanentes da situação política no Haiti, o sistema que os Duvaliers tinham deixado não mudava. Ao mesmo tempo, a situação de miséria do povo mantinha-se intacta enquanto um pequeno grupo enriquecia, tanto por meio de negócios privados como em cargos políticos (ou em ambos os lugares ao mesmo tempo). Paralelamente, a dependência do país em relação à ajuda externa acentuava-se dia a dia.
Depois do terremoto de janeiro de 2010, que destruiu grande parte do Haiti e pôs em evidência a sua grande precariedade, pensou-se mais uma vez que o país seria reconstruido sobre novas bases ecológicas, políticas e sociais. Trinta e três anos após a queda da ditadura e a nova Constituição de 1987 e dez anos após o terremoto, constatamos que apenas a liberdade de expressão e de associação sobrevive até agora como conquista. O país afundou-se numa crise multidimensional que apenas pode ser comparada com a que precedeu a ocupação militar dos EUA entre 1915 e 1934, e talvez com a crise de 1867-1869, que terminou com o fuzilamento do presidente Sylvain Salnave.
Os sucessivos governos depois de 1986 eliminaram as barreiras tarifárias, o que contribuiu para a destruição da produção local, principalmente o arroz
Os sucessivos governos depois de 1986 eliminaram as barreiras tarifárias, o que contribuiu para a destruição da produção local, principalmente o arroz. O presidente Bill Clinton confessaria que uma das suas principais falhas foi ter favorecido a importação desse cereal norte-americano para o Haiti, o que, como efeito da economia de escala e dos subsídios, destruiu a produção local e aumentou a dependência alimentar. Essa política neoliberal cega faz com que o Haiti hoje importe quatro vezes mais do que exporta, especialmente dos Estados Unidos e da República Dominicana, uma situação insustentável para qualquer economia nacional.
Segundo dados do Banco da República do Haiti (BRH), a taxa de crescimento para o exercício de 2018-2019 será negativa e ficará entre -0,6% e 0% devido à degradação do clima económico e à persistência dos conflitos sociopolíticos. O mesmo relatório destaca que não leva em consideração os acontecimentos que atingiram a economia a partir do mês de setembro, relacionados com a crise das atividades produtivas e a rotura dos circuitos de comercialização.
De 1986 até a presente data, no Haiti, houve oito golpes de Estado, 34 mudanças de governo (por mudança de primeiro ministro), cinco eleições abortadas, três intervenções militares estrangeiras e cinco missões da Organização das Nações Unidas (ONU) para a estabilidade e a paz. Em relação ao Conselho Eleitoral Permanente, estipulado na Constituição de 1987, nunca se conseguiu constituir e, até agora, todas as eleições foram realizadas com 19 Conselhos Eleitorais Provisórios. Neste contexto, a participação eleitoral vem diminuindo. Jovenel Moïse, o atual presidente, conhecido como "rei das bananas", foi eleito com 55,6% dos votos, mas a participação foi de apenas 21%. Pertence ao Partido Haitiano Tèt Kale (Partido dos Carecas) do ex-Presidente Michel Martelly (a cabeça calva é uma espécie de auto-homenagem).
Os acontecimentos que levaram à atual crise
No início de junho de 2018, na fase final do Campeonato Mundial de Futebol, o governo tentou aumentar o preço da gasolina, o que provocou uma violenta onda de protestos à escala nacional que duraram três dias. As autoridades tiveram que voltar atrás, e o então primeiro-ministro Jacques Guy Lafontant renunciou para amenizar a situação. Mas o descontentamento generalizado, acumulado há muitos anos, desencadeou uma crise que dura até hoje e mantém o país à deriva.
Moïse nomeou um novo primeiro-ministro, Jean-Henry Céant, notário e ex-candidato à presidência, que foi aprovado pelo Parlamento em 17 de setembro de 2018. E foi o próprio Moïse quem contribuiu para demiti-lo a 21 de março de 2019 , apenas seis meses depois, por maioria no Parlamento. Desde então, o presidente não conseguiu, em duas ocasiões sucessivas, que o Parlamento aprovasse dois dos seus candidatos a primeiro-ministro. Na ausência de um governo que responda às normas constitucionais, Moïse decidiu nomear, de forma inédita, Jean-Michel Lapin, um dos candidatos não ratificados pelo Parlamento, como primeiro-ministro interino. No quadro de uma desintegração quase total dos poderes do Estado, incluindo o Parlamento, Moïse também não conseguiu que o orçamento nacional para 2019-2020 fosse aprovado. Muitas vezes, a oposição parlamentar apelou a formas pouco ortodoxas, como partir móveis, arrancar microfones ou cortar a eletricidade.
Acusado de estar implicado na delapidação dos fundos da Petrocaribe, Moïse viu agravar-se a sua situação após a divulgação de um relatório do Tribunal de Contas que o implica diretamente em atos de corrupção. Face a isso, Moïse desqualificou o documento, dizendo que se trata de um relatório político, e propôs que a Organização dos Estados Americanos (OEA) enviasse uma comissão especial de peritos para ajudar o Estado haitiano a realizar uma auditoria sobre o uso desses fundos.
Rebelião popular
Na sequência do relatório do Tribunal de Contas, os "Petrochallengers", um movimento de jovens que organizou a 2 de setembro de 2018, com grande sucesso, a primeira marcha multitudinária contra a apropriação indevida dos fundos multimilionários da Petrocaribe, juntou-se a outros grupos da oposição para exigir a renúncia do presidente.
Este foi o começo da última onda de manifestações que sacudiram o país desde então e que persistem até hoje. Até agora, não conseguiram a renúncia do presidente nem nenhuma saída negociada aceitável, tanto para o governo como para a oposição. Os "Petrochallengers" e o autodenominado "Nou Pap Dòmi" (“Não dormimos”) anunciaram um programa de reivindicações com quatro letras "R": rutura, retificação (fiscal), reorientação e rigor, num documento de seis páginas de diretrizes para organizar o país após a renúncia de Moïse. Esta transição devia romper com a política "antipopular", "antidemocrática" e "antirrepublicana". A característica desse movimento é que são principalmente jovens num país onde mais de metade da população tem menos de 20 anos de idade. Eles também têm uma linguagem muito diferente da dos velhos políticos.
No entanto, este movimento inicial de protesto foi superado por grupos com mais meios e com uma linguagem mais radical e até violenta.
O principal e mais ativo foi o Movimento Democrático e Popular (MPD), dirigido pelo advogado André Michel e pelo senador Youry Latortue, os principais acusadores de Moïse no caso Petrocaribe. A 7 de fevereiro deste ano, o MPD lançou um movimento que bloqueou as atividades em todo o país, ao que eles chamaram de "paga o lok" (país bloqueado). Estes protestos tornaram-se uma insurreição popular com barricadas, incêndios, saques e cortes de estradas nacionais e das principais artérias da capital e das cidades da província.
Após dez semanas de bloqueio, a economia nacional começou a desintegrar-se: fecho de hotéis, restaurantes, lojas, fábricas, meios de transporte etc., que provocaram uma onda de despedimentos. Os hospitais não trabalham e nem sequer os serviços públicos funcionam porque os funcionários não recebem e também não coneguem chegar ao trabalho devido às barricadas e às manifestações. As escolas também não conseguiram abrir mais do que alguns dias, com risco para alunos e pais.
... mas Moïse não renuncia
A pergunta é: sem um verdadeiro exército que o apoie, como se mantém o presidente no poder? Apenas pela repressão? Neste contexto, houve massacres e operações de grupos de bandidos com armas de guerra. Segundo a própria Comissão de Desarmamento do Estado, existem 76 grupos a operar. Estes grupos são armados por parlamentares, pelo próprio governo e até por empresários para fins de intimidação e autodefesa. Mas a miúdo eles também costumam agir por conta própria, em função dos seus próprios interesses.
Um dos acontecimentos mais graves foi o massacre em La Saline, um bairro popular perto do porto, com 71 mortos, entre os quais mulheres e crianças e 400 casas incendiadas, em que terão estado implicados altos funcionários do poder. Mas esta matança em novembro de 2018 não foi a única.
Além disso, em várias ocasiões, foi revelada a presença de estrangeiros armados nas ruas durante manifestações. O caso mais relevante ocorreu durante a gestão do primeiro ministro Céant. No domingo 17 de fevereiro de 2019, a Polícia prendeu, quase por acaso e em pleno coração da capital haitiana, um grupo de oito homens: cinco ex-fuzileiros navais dos EUA, dois sérvios residentes nos Estados Unidos e um haitiano fortemente armado e numa atitude suspeita. Este grupo circulava num veículo, próximo do Banco da República do Haiti. Tendo entrado no aeroporto de Toussaint Louverture em Porto Príncipe com todo o arsenal que traziam, o governo nunca esclareceu as razões da sua chegada ao país, ainda mais quando eles, depois de interrogados por um tribunal, foram libertados e retirados do Haiti pela Embaixada dos EUA.
No entanto, a repressão não basta para explicar que Moïse se mantenha no poder. A explicação deve ser procurada nas relações entre Washington e Caracas. Depois de umas questionadas eleições presidenciais em que Nicolás Maduro foi reeleito na Venezuela, Moïse foi pessoalmente felicitá-lo pela sua vitória. Mais tarde, diante da maré crescente de protestos contra ele no Haiti, a 22 de março de 2019, Moïse participa de um breve e surpreendente encontro com Donald Trump na Florida. No seu regresso, ele decide reconhecer Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela, apoiado pelos Estados Unidos e por outros países da América Latina e da Europa, e rompe com Maduro, mudando o voto do Haiti na OEA. É a sua última cartada. Faz um acordo com Trump, que se torna o seu último apoio e o seu salva-vidas.
Ao mesmo tempo, no Haiti, o “Core Group”, formado por diplomatas de Estados Unidos, França, Alemanha, Brasil, Espanha e Canadá, pede a negociação da oposição com o presidente. Mas as vozes pedindo a renúncia de Moïse aumentam. A eles juntam-se grupos do setor empresarial, que foram vítimas dos motins de 6 de junho de 2018, e as igrejas. Pedem também a renúncia do presidente e uma mudança no sistema corrupto e de exclusão social que impera no país desde o assassinato do pai da Pátria, Jean-Jacques Dessalines, em 1806.
A oposição, perante as críticas que lhe fazem tanto o governo e como a comunidade internacional por estar dividida e não ter um programa, decide unificar os seus esforços. Um grupo chamado La Passerelle (a ponte) conseguiu realizar, a 8 e 9 de novembro, uma reunião onde participaram a Alternativa Consensual por la Refundación de Haiti, o MPD, a oposição chamada “institucional”, constituída por um grupo de parlamentares, o grupo Mache Kontre (Rumo ao encontro), que reúne os partidos social-democratas, Fanmi Lavalas (família La Avalancha) do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, o Fórum Patriótico de Papaya e o Bloco Democrático pela Recuperação Nacional. Cada um desses blocos é composto por várias organizações que, em conjunto, assinaram, a 10 de novembro e contra a opinião de Fanmi Lavalas, um documento intitulado “Entendimento Político Nacional”.
A 10 de novembro de 2019, um conjunto de blocos políticos decidiu adotar uma fórmula comum para a transição pós-Moïse, assim como um plano de transição
Nesse documento, os signatários decidiram adotar uma fórmula comum para a transição pós-Moïse, assim como um plano de transição: no momento da renúncia do presidente, se isso acontecer, o presidente provisório será, conforme estipulado na Constituição de 1987, um membro do juiz do Tribunal de Cassação. No momento da redação deste artigo, eles ainda estão a discutir uma proposta de programa que prevê sete objetivos para a transição de três anos e um organograma com os objetivos da transição: acabar com a instabilidade política, reativar a economia, restabelecer a segurança, concretizar e levar a cabo os processos do caso Petrocaribe e de outros crimes económicos e um segundo processo contra os responsáveis pelos massacres de La Saline, Carrefour-Feuilles e outros, organizar uma Conferência Nacional para estabelecer as bases das reformas económicas, políticas, sociais e culturais necessárias e negociar com a comunidade internacional para pôr fim à tutela estrangeira.
O presidente também luta pela mudança de sistema
Enquanto isso, Moïse defende-se dizendo que o querem tirar do poder, porque foi precisamente ele quem deu conta dos casos de corrupção sistémica e tentou revertê-los combatendo os "oligarcas" corruptos, por acaso seus aliados até então. O seu cavalo de batalha passou a ser a "mudança de sistema" e os ataques a um desses três grupos privados, Sogener, que vende eletricidade ao estado haitiano. Desta maneira, Moïse quer atribuir a si próprio, nesta fase em que já quase perdeu tudo, esta luta para assim tirar um argumento aos que pedem a "mudança do sistema corrupto", o que é usado pelos seus oponentes. Foi assim que todo este ano o Haiti foi abalado por protestos, frequentemente muito violentos, que segundo a ONU provocaram, pelo menos, 42 mortos e 89 feridos desde meados de setembro.
É evidente que Moïse não cumpre nenhum dos requisitos de um presidente em exercício e que ele e o seu grupo não dirigem nada, a tal ponto que o presidente não pode sequer deslocar-se livremente dentro do território nacional. No entanto, ele apega-se ao poder e não aceita renunciar, como é pedido pela imensa maioria da população. Neste contexto, Trump enviou ao Haiti, em 20 de novembro de 2019, Kelly Craft, sua amiga pessoal e embaixadora dos EUA na ONU e no Conselho de Segurança. Kelly Craft reuniu com Moïse e com representantes da sociedade civil e dos movimentos de oposição e apelou a um diálogo entre estes setores para formar um governo de consenso, enquanto assinalou que Moïse deve terminar o seu mandato.
Entretanto, a 16 de outubro, a Missão das Nações Unidas para a Justiça no Haiti (MINUJUSTH) foi substituída pelo Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti (BINUH). Os setores de oposição temem uma nova missão militar da ONU e rejeitaram a posição do Conselho de Segurança, que também pede a formação de um novo governo sem a renúncia de Moïse.
No meio de todo este conflito, as eleições parlamentares que deveriam renovar a Câmara de Deputados e dois terços do Senado não foram realizadas em outubro. Assim, a partir de 7 de fevereiro já não haverá Parlamento no Haiti. Muitos pensam que é exatamente isso que o presidente pretende para governar por decreto e preparar as eleições legislativas de maneira a assegurar a vitória de uma aliança com o ex-presidente Martelly e o filho de Jean-Claude Duvalier, Nicolas Duvalier, que poderia ser um futuro candidato presidencial.
Artigo de Arnold Antonin*, publicado em Nueva Sociedad, tradução para português de Carlos Santos para esquerda.net
* Arnold Antonin é um economista e cineasta haitiano, professor da Universidade do Estado do Haití, é fundador e diretor do Centro Petión-Bolívar do Haiti.
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