A política agrícola e alimentar por que lutamos

15 de outubro 2018 - 17:29

Hoje, debater a política agrícola e alimentar, tem muito que ver com a forma como as regiões e os países podem construir um futuro mais sustentável. Por Ricardo Vicente.

porRicardo Vicente

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A força da terra – Foto de Américo Meira/flickr
A força da terra – Foto de Américo Meira/flickr

1. A questão alimentar mudou

Depois de um período de abundância durante mais de meio século, o aumento do preço dos alimentos em 2008 e a crise financeira internacional transformaram o debate da política alimentar a nível mundial, nos países ricos como nos pobres. Hoje a segurança alimentar, a preservação ambiental e a soberania são cada vez mais reconhecidas como questões indissociáveis para uma urgente transformação da política agrícola e alimentar. A necessidade de resposta ao fenómeno de alterações climáticas e suas consequências – que está a impor novos limites à produtividade agrícola ao mesmo tempo que destrói recursos básicos fundamentais (ex: solo e água) – assim como a resposta ao crescimento populacional e consequente aumento da procura de alimentos, reforçam esta ideia.

O relatório de 2014 do programa do Banco Mundial (Global Agriculture and Food Security Program) aponta para uma necessidade de aumentar a produção de alimentos em 50% até 2050, e alerta para previsões de redução até 30% das produções globais das culturas agrícolas. Por outro lado, sabe-se hoje, que muitas culturas aproximam-se do seu limite máximo de produção a nível mundial, é o caso do milho, trigo, arroz, leite e a carne de frango, que viram o crescimento da sua produção abrandar significativamente nas últimas duas décadas.

A obesidade e muitos problemas nutricionais têm aumentado a sua importância a nível internacional, independentemente do nível de desenvolvimento de cada país, enquanto que em algumas regiões, como na África Subsaariana, uma parte considerável da população se mantém em situação de sub-nutrição. Na Europa, 60% dos adultos e 20% das crianças têm excesso de peso ou são obesas (IOTF, 2010, em Marsden e Morley et al, 2014). Tudo isto acontece em simultâneo com uma perspetiva de mudança, a nível mundial, de uma situação com produção de alimentos em excesso para uma situação com elevado risco de escassez. Este cenário pode agravar-se em diversas condições, como as de crise financeira ou de transformação dos mercados energéticos que levem ao crescimento da aposta na biomassa como fonte de energia e consequente contração das áreas de produção de alimentos e subida do preço de bens alimentares. Nos anos 2007 e 2008 assistimos ao conjugar destes diversos fatores, tendo-se traduzido numa subida substancial de preços dos bens alimentares contrariando a descida de preços das duas décadas anteriores.

Preço dos alimentos – Indíce – FAO

2. PAC: mais de meio século a criar desigualdades

Após a segunda Guerra Mundial (1939 a 1945), deu-se um grande movimento de subsidiação para intensificação da produção de alimentos, com clara distinção de funções entre os espaços rurais e urbanos. Um período produtivista ideologicamente suportado pela necessidade de aumento da produção de alimentos a nível mundial. Na segunda metade do século XX rebentou a globalização de mercados alimentares a nível internacional e criaram-se medidas protecionistas para estabilização de preços e rendimentos dos agricultores na europa. A Política Agrícola Comum surgiu em 1962 e Portugal entrou na Comunidade Económica Europeia em 1985.

Apesar de um dos objetivos iniciais da PAC ter sido a proteção dos produtores das incertezas do mercado, esta contribuiu para a redução do número de agricultores europeus. Cerca de 10 milhões de agricultores abandonaram atividade na europa nas últimas 4 décadas do século XX. Um dos motivos pelo qual isto aconteceu foi a atribuição de muitos subsídios a agentes da cadeia alimentar que não eram produtores. Os fornecedores de fatores de produção, por exemplo, beneficiaram mais dos apoios atribuídos do que os produtores (Marsden e Morley et al, 2014).

Desde meados dos anos 80 muitas das medidas protecionistas europeias do sistema produtivista foram progressivamente desmanteladas e entrámos no chamado período pós-produtivista, com algumas mudanças na política agrícola e regulatória com preocupações claramente ambientais, de segurança alimentar e de saúde pública, apesar de fracas. No entanto, paralelamente, o poder corporativista do retalho como força regulatória, contrariou e continua ainda hoje a contrariar este caminho, impulsionando uma cultura consumista que refunda a lógica produtivista, levando à deslocalização da produção, com transferência do território europeu para outros lugares onde há maior desregulação ambiental e socioeconómica (Lee em Marsden e Morley et al, 2014). A política agrícola não pode ser desvinculada da política alimentar e a sua sustentabilidade não se constrói com base na exportação dos riscos de poluição e destruição ambiental para qualquer outro país ou continente.

Em todo o mundo coabitam sistemas de produção agrícolas muito distintos, em especial no que à sua produtividade e à relação com o mercado diz respeito. Durante o século XX o diferencial de produtividade do trabalho entre a agricultura menos produtiva e mais produtiva passou de 1:10 para 1:500, sistemas agrícolas ainda hoje existentes e que partilham por vezes os mesmos territórios e mercados (Mazoyer and Roudart 2009).

A dispersão dos sistemas agrícolas e a resiliência das agriculturas familiares sempre representaram dificuldades à penetração do capitalismo nos sistemas agrários. A forma de contornar estes obstáculos foi a criação de um enorme complexo agroindustrial em torno das agriculturas familiares que criou dependências e destruiu recursos, por um lado, e a submissão dos produtores por via da combinação entre os progressos tecnológicos e a redução de margens entre custos de produção e os preços de venda. É notável como esta estratégia ainda se mantém nos dias de hoje, apesar dos vários ciclos tecnológicos e regulatórios dos últimos dois séculos.

3. PAC: um sistema rentista para o latifúndio português

A PAC tem um historial desfavorável às agriculturas do sul da Europa. Foi e continua a ser estruturada para os modelos de produção agrícola e societais do centro e norte da Europa, não considerando as especificidades do sul, onde as culturas, os modos de produção, a profissionalização dos produtores e as dinâmicas das atividades agrícolas são muito distintas. No entanto, apesar desta desadequação crónica existe margem de manobra para os países do sul concretizarem algumas adaptações e minimizarem as consequências negativas, mas até hoje os Governos que implementaram a PAC em Portugal nunca demonstraram tal interesse.

Nos últimos quadros comunitários cerca de 50% dos apoios foram aplicados em forma de Pagamentos Diretos, e na sua maioria distribuídos pelos agricultores de forma desvinculada da produção e do emprego, com base em históricos de atividade muito distantes da realidade no momento dos pagamentos e em atividades agrícolas típicas do centro e norte da Europa, mas menos importantes no panorama português. Assim, o principal fator que determina a atribuição e a distribuição de uma grande fatia dos apoios comunitários em Portugal é a posse da terra, quanto maior o proprietário maior o apoio atribuído. Os grandes proprietários nacionais cresceram e especializaram-se na captação de subsídios, ganharam hegemonia sobre uma vasta área do território e impedem a instalação e o desenvolvimento de outras atividades.

A segunda metade dos apoios é destinada ao Programa de Desenvolvimento Rural, que em boa verdade significa apoio direto ao investimento agrícola. Assume-se que desenvolvimento rural corresponde a desenvolvimento agrícola. Assim, dificulta-se o desenvolvimento rural, na sua multiplicidade de atividades socioeconómicas, mas dificulta-se também o desenvolvimento da componente multifuncional que hoje reconhecemos na agricultura, pois a sua valorização depende também do desenvolvimento territorial não agrícola. A agricultura familiar é especialmente lesada por esta situação.

4. O futuro por que lutamos

4.1 Construir uma paisagem alimentar diversificada e integradora

Os alimentos não são apenas uma mercadoria. Hoje, debater a política agrícola e alimentar, tem muito que ver com a forma como as regiões e os países podem construir um futuro mais sustentável. Não interessa o nível de globalização ou sofisticação tecnológica, os sistemas alimentares e as suas dinâmicas de produção e consumo interagem e transformam os lugares e as realidades socioeconómicas. Precisamos de observar os territórios e construir paisagens alimentares heterogéneas que sejam integradoras dos produtores e consumidores numa relação de proximidade e democrática. Contudo, esta transformação não se pode realizar nem manter com base numa falsa ideia de que o local é bom e o global é mau, o importante é construir uma nova relação entre as duas dimensões, de forma a dar primazia à preservação ambiental. Dependendo do bem alimentar em causa e das condições edafoclimáticas do momento, a melhor opção para a origem do produto pode variar.

A atual oligarquia instalada no retalho determina, em muitas circunstâncias, os métodos de produção e uniformiza os sistemas agrícolas e alimentares, degradando a capacidade de resiliência dos mesmos, porque ignora um conjunto de fatores de regulação sociais, económicos e ecológicos, que são característicos de cada local. A consequência é uma enorme destruição socioeconómica e ambiental. Responder a este atentado exige que a política agrícola e alimentar sejam tratadas como um todo, com uma base democrática e soberana mas não nacionalista. As necessárias transformações que o futuro nos exige ao nível dos sistemas de produção, com maior preservação ambiental e qualidade dos alimentos, só será possível de concretizar se for acompanhada de transformações da mesma magnitude ao nível de toda a cadeia de distribuição e comercialização de alimentos.

4.2 Promover a política agroalimentar urbana

Um número crescente de cidades no mundo está a iniciar a construção das suas próprias soluções de forma a obter produção local, urbana ou rural de proximidade, e a conseguir sistemas de produção e abastecimento de alimentos mais resilientes. A cidade de Toronto, por exemplo, foi onde se implementou o primeiro conselho para a política alimentar no Canadá, de forma a aplicar uma estratégia de alimentação urbana focada na saúde e a garantir o acesso a comida de qualidade a todos os residentes, proveniente de sistemas agrícolas respeitadores do ambiente, promovendo também maior justiça social. Na cidade de Los Angeles, definiu-se uma estratégia alimentar que criou o conceito de “good food” para destacar o papel da alimentação na saúde e identificar alimentos seguros e de qualidade, provenientes de sistemas de produção respeitadores do ambiente e dinamizadores da economia local.

As ferramentas de política alimentar urbana têm um elevado potencial para aproximar consumidores e produtores, fortalecer a interligação entre o rural e o urbano, garantindo maior dinamização das economias locais, contrariando os processos de concentração e uniformização gerado pelas grandes cadeias de retalho. Também a agricultura urbana, que permite a presença de agricultores na cidade ou que os cidadãos produzam o seu próprio alimento entra nesta equação. Trata-se de uma área de trabalho que carece de investigação e desenvolvimento para melhor compreensão do seu potencial, mas claramente não deve ficar de fora do debate sobre a política agrícola e alimentar que queremos.

4.3 Apostar numa agricultura que preserve os recursos naturais

Perante a escassez de recursos disponíveis face às necessidades da população atual e futura, e considerando a mitigação e adaptação às alterações climáticas, seja qual for a metodologia de produção agrícola dominante no futuro, é necessário produzir mais e desligar, tanto quanto possível, o aumento de inputs por hectare do aumento de produção. Para tal, existem duas vias, que podem ser complementares: 1) consumir menos energia, menos adubos e outros inputs através de uma maior precisão na sua aplicação; 2) a substituição de inputs industriais por processos ecológicos (limitação natural, fixação de azoto atmosférico, etc.). Na Europa, pela ação de vários agentes de mercado e pela subsidiação da aquisição de equipamentos pela PAC, a via da agricultura de precisão tem feito algum caminho, embora muitas vezes de forma limitada pela falta de capital financeiro e técnico-científico dos agricultores, em especial no sul da europa. A segunda via, a dos processos biológicos com potencial para substituir adubos, pesticidas e outros inputs, porque está fora do mercado e não há políticas públicas fortes para a sua implementação, está muito atrasada. A aposta em políticas públicas que promovam a agroecologia, o seu desenvolvimento científico e a sua aplicação prática é uma urgência incontornável e apresenta-se como solução para garantir a multifuncionalidade da agricultura, com especial destaque para a preservação de biodiversidade em espaço europeu, onde a maioria das espécies a preservar são altamente dependentes de sistemas agrícolas extensivos.

Referências Bicliográficas

Global Agriculture and Food Secutity Program (GAFSP) – Reducing Hunger, Increasing Incomes, Annual Report 2014, 76p.

Marsden, Terry, and Morley, Adrian et al, 2014. Sustainable Food Systems Building a New Paradigm. New York, Routledg

Mazoyer, Marcel, and Laurence Roudart 2009 História das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea. São Paulo; Brasilia: Ed. UNESP : NEAD.

Santos, José Lima 2013. Agricultura e ambiente: papel da tecnologia e das políticas públicas, em O futuro da alimentação: ambiente, saúde, economia, Fundação Calouste Gulbenkian 2013, 174-186

Intervenção de Ricardo Vicente no encontro sobre a Política Agrícola Comum, que decorreu em Santarém a 14 de outubro, 2018

Ricardo Vicente
Sobre o/a autor(a)

Ricardo Vicente

Engenheiro agrónomo