“Hoje não picamos cebolas, hoje picamos outra coisa”, diz sorrindo María Claudia Albornoz, La Negra, ao entrar no Palácio do Congresso. Desde há poucos meses, ela é a dirigente nacional de La Poderosa, uma organização de base que surgiu em Buenos Aires há 14 anos, mas que já lançou as sementes de assembleias populares em toda a Argentina e em países vizinhos como Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, México, Paraguai, Peru e Uruguai.
Atrás de La Negra, uma fila de aventais serpenteia. As mulheres, com os seus trajes quotidianos, também aguardam a sua vez de entrar no Anexo A da Câmara dos Deputados. Vieram cedo de todos os lados para acompanhar a apresentação de um projeto de lei que propõe reconhecer com um salário e direitos laborais o papel fundamental das 70.000 cozinheiras comunitárias que garantem a alimentação diária de dez milhões de pessoas na Argentina.
“Não se trata de um número fictício ou inventado por nós, é um número real que está a crescer porque, nos nossos refeitórios e cozinhas populares, todos os dias se aproxima mais um vizinho ou vizinha a pedir uma refeição. E isto não é novo. A pobreza estrutural na Argentina não diminui há muito tempo. Está nos 30% e os governos passam e esta pobreza estrutural não muda. É por isso que dizemos que passámos 40 anos de democracia a alimentar essa democracia. Há dez milhões de pessoas que precisam de assistência alimentar no nosso país. Imaginem dez milhões de pessoas sem ter garantido sequer um prato de comida por dia. Sem nós, sem as cozinheiras dos bairros populares, este país já teria explodido há muito tempo. Enquanto trabalharmos para a comunidade, mantemos as condições de pacificação”, diz de novo La Negra, mas já não sorri.
Muito mais que comida
Segundo a Unicef, na Argentina existem 5.687 bairros populares. Duas em cada três crianças são pobres ou estão privadas de direitos básicos – como o acesso à água, à educação, à proteção social, à habitação ou a um saneamento adequado – e 57% das pessoas que frequentam cantinas ou cozinhas populares são crianças e jovens.
Otilia Ledezma é a responsável de Tacitas Poderosas, uma cozinha popular que funciona de segunda a sábado no Bairro 21-24 Zavaleta. A sul, é a maior e mais populosa povoação da cidade de Buenos Aires: 64 quarteirões e 60.000 habitantes que toleram de perto o curso – e o mau cheiro – do Riachuelo, um dos rios mais contaminados do mundo.
“Recebemos 150 crianças todas as tardes. Quando vêm menos, são 80. Às sextas-feiras e aos sábados, organizamos a sopa e distribuímos 200 rações de comida ao almoço. Especialmente aos sábados, temos de fazer malabarismo porque as outras cozinhas populares estão fechadas e vêm pessoas em situação de sem-abrigo. O pior ainda foi a pandemia. Foi como o fim do mundo. De um dia para o outro, começaram a vir pessoas de diferentes bairros, pessoas grandes, pessoas que faziam biscates. Fui muito desesperante. Porque, para além disso, ouvíamos na televisão que tínhamos de tratar do vírus, mas aqui tínhamos uma fila interminável de pessoas. Sentimo-nos muito sós na altura do coronavírus. Se não estivéssemos organizadas, a pandemia ter-nos-ia destruído”, recorda Ledezma.
O estudo qualitativo La situación de la pobreza en barrios populares, realizado conjuntamente pela UNICEF Argentina e La Poderosa, indica que em 2019 a incidência da pobreza era de cerca de 35% e a indigência de 8% da população. No primeiro semestre de 2021, os números tinham aumentado para 41% e 11%, respetivamente. É de salientar que tudo se agrava nos bairros populares, onde, durante o primeiro ano da pandemia, a pobreza ultrapassou os 80%, com maior impacto nas crianças e adolescentes.
“Às vezes, há crianças que não saem da cozinha popular porque não têm para onde ir e utilizam o local como um lugar de contenção. Talvez as suas famílias estejam numa situação de consumo de drogas ou a trabalhar muitas horas e elas se sintam sozinhas. Se uma criança de seis, sete ou oito anos nos pede para ficar, não a podemos mandar embora. Ou então chamam-nos à uma da manhã porque têm fome ou porque não têm sapatos para ir à escola. Nós, cozinheiros comunitárias, não temos horários. E também acontece que as crianças ganhem confiança e começam a contar-nos coisas. Contam-nos sobre situações de abuso, por exemplo. Eu não sou especialista, mas estas crianças procuram refúgio. Como é que eu faço então? Ficas a pensar nisso à noite, consultamo-nos umas às outras, porque no dia seguinte essa criança vai procurar-nos. Não é fácil, não basta encher-lhes a barriga e pronto. Trabalhamos muito profundamente com as crianças porque nos preocupamos com elas. É um trabalho muito desgastante, muito duro, todo o dia, todos os dias, dia após dia”, lamenta a responsável das Tacitas Poderosas.
“O Estado vive de nós”
A Otilia chamam-lhe Oti. Nasceu em Concepción, a cinco horas da capital do Paraguai, e emigrou para Buenos Aires há 17 anos. Com o seu ex-marido e os seus dois filhos, instalaram-se no bairro 21-24 de Zavaleta: “Viemos diretamente para aqui. Chorei logo que chegámos. O bairro não era como é agora. As ratazanas eram enormes. Convivíamos com as ratazanas e eu chorava”.
Oti suportou 23 anos de violência machista, até que o acompanhamento e a rede da La Poderosa a ajudaram a tomar e a manter a decisão de se separar. Quase em simultâneo, abriu a Tacitas Poderosas, juntamente com oito vizinhas. “Começamos a trabalhar desde muito cedo com as companheiras porque pensamos no que cozinhar, como cozinhar, o que temos de comprar, onde procurar algum donativo. Se pudermos ir a pé, vamos a pé; ou apanhamos um autocarro ou vamos com um carrinho. Não são duas, três ou quatro horas de trabalho. São um monte de horas. Também temos de inventar coisas para vender e com esse dinheiro podemos comprar a garrafa de gás ou pagar a renda do local. Neste momento, por exemplo, estamos a fazer trocas: trocamos galinhas por leite para podermos responder às necessidades da cozinha social. Mas não sabemos por quanto tempo. E estamos a usar adoçante porque não temos açúcar”.
No âmbito da emergência sanitária da Covid-19, o Ministério do Desenvolvimento Social criou, em agosto de 2020, o Registo Nacional de Cozinhas Populares e Comunitárias de Organizações da Sociedade Civil (Renacom), uma iniciativa do Estado Nacional que fornece informações precisas sobre as cantinas e cozinhas populares que diferentes organizações da sociedade civil implementam nos bairros da Argentina, fornecendo assistência alimentar gratuita a pessoas em situação de vulnerabilidade social. Até à data, existem 34.782 registadas e validadas, nas quais trabalham 134.449 pessoas, na sua maioria mulheres.
Para La Negra Albornoz, a Renacom é ao mesmo tempo uma política pública de combate à fome e uma partida de mau gosto. “Nós, cozinheiras comunitárias, somos exploradas por um Estado que nos reconhece ao reconhecer as nossas cantinas na Renacom. Mas quem é que cozinha? A cozinheira é aquela que passa muito tempo a preparar a comida para as famílias do seu bairro e, quando está a cozinhar, não pode estar a trabalhar fora. Ou seja, não pode ir limpar a casa de outra pessoa, não pode sair para vender a venda ambulante ou para recolher papelão, nem pode fazer nenhum biscate porque está a cozinhar para a comunidade. Foi por isso que pensámos neste projeto de lei para as cozinheiras comunitárias. Em suma, trata-se de fazer justiça a um sector muito vasto do país, porque há exploração nas costas daquelas que estão na base da pirâmide social. Nós fazemos o que o Estado não faz. O Estado não cozinha, nós cozinhamos. O Estado não acompanha as mulheres e as crianças em situações de violência, nós acompanhamo-las. Então, não somos nós a viver do Estado, o Estado é que vive de nós e, no entanto, nós somos as invisíveis”.
"Que seja lei"
O Projeto de Lei de Reconhecimento Salarial das Cozinheiras Comunitárias – conhecido como a “Lei das Cozinheiros” – propõe a criação de um Programa Nacional para as Trabalhadoras e os Trabalhadores das Cozinhas Comunitárias que reconheça e atribua um salário mínimo, vital e móvel – entendido como o salário diário mais baixo necessário para satisfazer as necessidades básicas, férias, segurança social ou cobertura médica, um seguro de riscos profissionais, baixa por doença e/ou acidente, subsídio de Natal, licença de maternidade e paternidade, reforma e licença especial para quem trabalha em cozinhas comunitárias e refeitórios populares. O Ministério do Trabalho, do Emprego e da Segurança Social da Nação é proposto como a autoridade responsável pela aplicação.
No passado dia 5 de junho, às 11 horas, a deputada nacional Natalia Zaracho, da Frente Pátria Grande, apresentou o projeto de lei no Congresso. Dezenas de cozinheiras encheram o salão do Anexo A para participar no ato formal.
Deste lado do Atlântico, sentiam-se os primeiros frios do outono, esses que penetram fundo porque se perdeu o costume, mas nada ofuscou o ambiente de festa, a sensação de “ter chegado”. Selfies, abraços, risos e a pergunta repetida: “Quantas vezes é que nós, as villeras, entrámos no Congresso?” Com esta premissa em mente, as cozinheiras apropriaram-se em seguida do espaço legislativo, um espaço que normalmente se sente distante, indiferente às questões dos cidadãos comuns. Sobretudo dos que andam com os pés na lama.
“É fundamental que as nossas companheiras das cantinas e das cozinhas populares conheçam os seus direitos, porque quando sabes que tens direitos, lutas. Foi para isso que viemos ao Congresso: para sermos reconhecidas como trabalhadoras e para lutarmos pelos nossos direitos. E estamos tão convencidas de que os vamos conseguir”, disse La Negra a partir de um pequeno estrado. Ao seu lado, Nati Zaracho preparava o mate. As duas dirigiram a folia e até se imaginaram a pedir umas cumbias para “bailar um bocadinho”.
Ao fundo, os cantos arrastavam as vogais. “Que venham veeeeer-nos, que venham veeeeer-nos, nós somos as cozinheiras, estamos a lutar pela nossa leeeeei! Lutem, lutem, lutem, lutem para que escutem! Lutem, lutem, lutem, lutem para que escutem!”
Os cálculos de La Poderosa indicam que a aplicação da lei representaria um orçamento equivalente a 0,07% do produto interno bruto. Pouca coisa, se tivermos em conta que a isenção do imposto sobre o rendimento de que beneficia a magistratura representa uma perda para o Estado argentino equivalente a 0,16% do PIB. “Não é uma loucura. Sabemos o que estamos a pedir porque sabemos que fazemos muito trabalho nos bairros populares. Quando não há política de Estado, há política de bairro. E aí estamos nós organizadas, sempre a pensar comunitariamente. E essa é a nossa maior vitória: aprender a avançar em conjunto. Ninguém se salva sozinho é uma frase bonita, mas nos nossos bairros é uma realidade. Salvamo-nos como comunidade”, diz La Negra e, mais uma vez, sorri.
Texto publicado originalmente no El Salto.
Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.