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Para desgosto da extrema-direita, a família Tolkien apoia ajuda a refugiados e ecologia

04 de maio 2024 - 18:07

A recuperação política de J.R.R. Tolkien pela extrema-direita não agrada a toda a gente. E muito menos aos seus descendentes, que utilizam os seus direitos de autor para financiar a solidariedade com os migrantes e as ações contra a venda de armas e os pesticidas.

por

Emma Bougerol

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Prateleira com livros de Tolkien.
Prateleira com livros de Tolkien. Foto de Steven Taylor/Flickr.

É uma página de fãs de O Senhor dos Anéis, como muitas que existiam nos anos noventa. Por baixo da fotografia de uma jovem mulher com um corte de cabelo curto e um sorriso tímido, um texto branco sobre um fundo fúcsia é formado com algumas palavras com as quais ela se apresenta. “Os meus interesses são livros de fantasia (claro que O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien é o meu preferido)”, escreve em italiano a estudante que a criou. Chamava-se Giorgia, tinha 21 anos na altura e vivia em Roma [1].

Imagem da página de Meloni nos anos noventa

Página de Giorgia Meloni no final dos anos 1990. Ela autodenomina-se “o dragão da Undernet”, o nome da rede, e partilha no seu microblogue a sua paixão pelas obras de J.R.R. Captura de ecrã de Drcommodore.it.

 

Décadas depois, Giorgia continua a ser uma grande admiradora da obra de J.R.R. Tolkien. Na sua opinião, a saga de culto representa tudo o que ela defende agora que está ao leme de Itália. Durante a sua campanha, convidou mesmo o ator que faz a voz italiana de Aragorn para o lançamento do seu comício. Segundo Giorgia Meloni, tal como os hobbits, os italianos devem proteger as suas terras das “forças do mal” vindas de Mordor… Mas para ela, essas forças do mal são os estrangeiros. Nos seus discursos, utiliza referências a O Senhor dos Anéis ou O Hobbit para apoiar a sua política xenófoba.

Milhões para a caridade

“É uma história estranha que começou no final dos anos 70, quando a Frente Juvenil, a organização juvenil de extrema-direita, se propôs encontrar uma nova narrativa que não fosse nem fascista nem pós-fascista. Encontrou neste mundo ficcional uma forma de transmitir ideias que lhe pareciam próximas da cultura de extrema-direita", explica Paolo Pecere, entrevistado pelo jornalista Gustav Hofer para o canal Arte.

O escritor e professor de filosofia na Universidade de Roma Tre precisa que “Tolkien não tinha nada a ver com essa cultura […]. Desaprovava o tipo de sociedade a que aspira a ultradireita”. A Terra Média, o mundo imaginado por Tolkien onde humanos, hobbits, elfos, anões e até ents – árvores gigantes guardiãs das florestas primitivas – cooperam para conter as forças do mal, não tem nada em comum com o modelo de sociedade promovido por Meloni e os seus amigos.

No entanto, quando se introduzem as palavras-chave “Tolkien” e “política” num motor de busca, deparamo-nos com uma série de artigos que associam o racismo e as ideias identitárias ao autor de O Senhor dos Anéis. Esta associação da obra a valores de extrema-direita não é do agrado de todos. Pelo menos, pode adivinhar-se que os descendentes do autor não veem com bons olhos esta interpretação.

Todos os anos, doam milhões de libras a instituições de caridade, nomeadamente a associações e ONG que lutam pelos direitos humanos, ajudam os migrantes e fazem campanha contra o comércio de armas a nível mundial. Três membros da família de J.R.R. Tolkien dirigem atualmente o Tolkien Trust, uma organização de beneficência. Uma parte do seu financiamento provém do Tolkien Estate, a entidade que gere os direitos das obras e os direitos morais do autor, falecido em 1973.

O fundo é atualmente gerido por Simon Tolkien e Michael George Tolkien, dois dos netos do autor, e Baillie Tolkien, sua nora e viúva de Christopher Tolkien. Todos os anos, distribuem vários milhões de libras a diversas instituições de caridade e grupos. A instituição de caridade foi criada em 1977 pelos quatro filhos de J.R.R. Tolkien, John, Michael, Christopher e Priscilla, para dar dinheiro a causas. “O fundo é inteiramente discricionário, o que significa que a sua constituição não impõe limites às instituições de caridade que pode beneficiar; os administradores são, por conseguinte, livres de selecionar as causas que lhes interessam”, afirma a página de Internet do Tolkien Trust.

Ajuda a SOS Mediterrâneo

As causas que apoiam são resolutamente progressistas. Indicam que fazem donativos a causas como as artes, a educação, o ambiente, as pessoas em situação de sem-abrigo, o desenvolvimento internacional, as relações internacionais e a construção da paz, a migração, a reforma das prisões, a saúde no Reino Unido e no mundo e a investigação médica. No total, em 2022, o fundo doou mais de 6,2 milhões de libras (7,23 milhões de euros) a causas – tanto a instituições de caridade e ONG como a escolas e universidades, incluindo Oxford, onde J.R.R. Tolkien e alguns dos seus descendentes estudaram e ensinaram.

Ao longo de cinco anos, entre 2017 e 2022, por exemplo, a organização deu 175.000 libras (cerca de 200.000 euros) à SOS Méditerranée – e depois à sua cisão SOS Humanity. A Cimade, uma associação francesa que trabalha em solidariedade com migrantes, refugiados e requerentes de asilo, é também um beneficiário regular, com pagamentos anuais que aumentaram de 30.000 euros em 2017 e 2018 para 100.000 euros ou mais nos últimos três anos.

A família Tolkien parece estar particularmente empenhada em ajudar os migrantes. Para além destas organizações, o fundo também dá dinheiro à Asylum Welcome, à Help Refugees, à Kent Refugee Action Network, à Refugees at Home e à Volunteer Pilots, uma das associações que efetua vigilância aérea no mar para detetar embarcações de refugiados em dificuldades… Sem esquecer o clima e o ambiente, uma vez que, entre 2017 e 2022, a Greenpeace recebeu 540.000 libras (630.000 euros) e a Pesticide Action UK quase 780.000 libras (910.000 euros).

A família Tolkien também parece prestar especial atenção aos conflitos internacionais. Em 2022, com o início da ofensiva russa contra a Ucrânia, a instituição de caridade doou mais de 80.000 euros à organização internacional Ukrainian Patriot, responsável pela distribuição de alimentos e equipamento no terreno. Os Médicos Sem Fronteiras foram também um dos principais beneficiários do Tolkien Trust, com quase 1,9 milhões de euros doados ao longo de cinco anos, em particular para a sua filial na Líbia e no Iémen.

Não ao investimento na indústria do tabaco e das armas

Simon, Michael George e Baillie Tolkien optaram também por lutar contra o comércio internacional de armas, financiando o Trust for Research and Education on the Arms Trade (TREAT) – com cerca de 690.000 euros em cinco anos – uma organização criada em 1990 para “promover a investigação sobre o comércio internacional de armas e os seus efeitos e divulgar os resultados dessa investigação”. [2] O seu principal beneficiário é a Campaign Against the Arms Trade (Campanha contra o Comércio de Armas), sediada no Reino Unido, uma das suas recentes iniciativas centra-se na luta contra a venda de armas a Israel.

No que diz respeito ao investimento de fundos, o Tolkien Trust declara que estabelece limites claros: “segue uma política de investimento ético e não investe na indústria do tabaco, em empresas cuja atividade principal seja a venda de armas ou em serviços de jogos de dinheiro”.

O que é que J.R.R. Tolkien teria pensado de tudo isto? O autor “é alguém bastante difícil de compreender e de situar no tabuleiro de xadrez político e intelectual inglês”, explicou Vincent Ferré na France Culture, em outubro de 2022.

A leitura racista e xenófoba que a extrema-direita faz das suas obras não é, em todo o caso, a mais correta, afirma o professor de literatura da Sorbonne Nouvelle e especialista em J.R.R. Tolkien: “Não é verdade dizer, como foi recentemente escrito no jornal Le Monde, que a questão de saber se Tolkien é fascista ou racista divida violentamente os historiadores. Não, não há qualquer ambiguidade sobre a questão. Ele não o é”.


Emma Bougerol é jornalista, especializada em temas como os direitos das mulheres e das pessoas LGBTQI+, a uberização do mundo do trabalho e o impacto da tecnologia digital.

Texto publicado originalmente no Basta. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.