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Por que gostam os fascistas das obras de Tolkien?

Como uma história sobre diferentes raças que se unem apesar das suas diferenças contra um inimigo comum, com um herói improvável, Frodo Baggins, que adora as suas canecas de cerveja, ficar pedrado com o seu cachimbo de erva e a paz da natureza, se tornou num símbolo de narrativas racistas e de extrema-direita? Por Angelo Boccato.
Giorgia Meloni. Foto de FABIO FRUSTACI/EPA/Lusa.
Giorgia Meloni. Foto de FABIO FRUSTACI/EPA/Lusa.
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Em 22 de setembro, o ator italiano Pino Insegno (que faz a dublagem de Viggo Mortensen nos filmes de Peter Jackson, a trilogia Senhor dos Anéis de Peter Jackson,) deu as boas vindas a Giorgia Meloni antes dela encerrar a campanha eleitoral da coligação de extrema-direita em Roma, utilizando um discurso adaptado de Aragorn que aparece em O Retorno do Rei. Um sentimento de desconforto espalhou-se entre todos os tolkienistas italianos que não se identificam com a apropriação fascista do autor britânico.

A história desta apropriação pela extrema-direita italiana começou na década de 1970. O Senhor dos Anéis foi traduzido para italiano pela primeira vez em 1971. No contexto dos “anos de chumbo”, o Movimento Social Italiano (MSI) somou-se às forças que impulsionaram a ascensão da Nouvelle Droite, o movimento político e cultural da Nova Direita, e vislumbrou nos elementos tradicionalistas do trabalho de Tolkien uma fonte de inspiração política e cultural, levando ao lançamento do primeiro Acampamento Hobbit em 1977. A experiência também desencadeou o lançamento de revistas como a Éowin, batizada com o nome da princesa de Rohan pelas mulheres ativistas do MSI.

“Todos podem amar Tolkien. O Senhor dos Anéis é uma das obras primas mais grandiosas do século vinte”, afirma Loredana Lipperini, autora e apresentadora de rádio do programa de literatura Fahrenheit na Radio 3, da emissora estatal RAI. “Estamos presos no discurso literário da crítica marxista que repele qualquer coisa que não se conecte ao realismo. Uma grande parte desta crítica, para os intelectuais italianos, é a visão de que toda a literatura fantástica, da fantasia ao horror, passando pela ficção científica, é ou algo infantil ou algo que pertence à direita.” Elementos biográficos também influenciaram a forma como estas obras foram recebidas. Tolkien era católico e um discreto apoiante da frente nacionalista de Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola – mas também recusou que os seus livros fossem traduzidos na Alemanha do terceiro Reich, quando a editora Rütten & Loening solicitou a certificação da sua ancestralidade ariana e que confirmasse que não possuía origens judaicas.

Conforme Lipperini enfatiza, tem ocorrido uma mudança geracional em termos de crítica literária da esquerda, algo comprovado pelo trabalho e pela investigação de autores como Wu Ming. Mas como uma história sobre diferentes raças que se unem apesar das suas diferenças contra um inimigo comum, com um herói improvável, Frodo Baggins, que adora as suas canecas de cerveja, ficar pedrado com o seu cachimbo de erva e a paz da natureza, se tornou num símbolo de narrativas racistas e de extrema-direita?

A receção de Tolkien variou muito de país a país, algo notado por Craig Franson, professor associado de literatura britânica, drama e escrita na La Salle University, na Philadelphia, e co-anfitrião do podcast American ID. “Na Inglaterra da década de 1980 havia uma crítica muito forte, também um pouco mais cedo com Raymond Williams, Fredric Jameson e outros, que o viam dessa forma (como um fascista ou um criptofascista)”. “Contudo, nos Estados Unidos havia uma visão diferente de Tolkien, parcialmente devido a ele ter chegado na década de 1960 no grande momento hippie e logo ter sido adotado por eles em 1965”, explica Frason. “O período entre 1965 e 1971 é o momento em que ele se torna realmente parte da cultura pop e, ao longo dos próximos cinco ou dez anos, a sua popularidade afunda e desaparece novamente da esfera pública.”

O divisor de águas veio com o lançamento da trilogia de Peter Jackson, O Senhor dos Anéis. A Sociedade do Anel chegou ao cinema em dezembro de 2001 e essa adaptação tolkienista emaranhou-se com a conversa política e cultural no auge da “guerra contra o terror”. A atenção que Tolkien recebeu na cultura pop global também abriu o caminho, nos Estados Unidos, com as guerras no Afeganistão e Iraque, para o interesse pelas obras de Tolkien pela extrema-direita norte-americana, expressada em páginas como o site disseminador de ódio Stormfront, conforme a explicação de Franson. “As conversas no Stormfront iniciaram-se a partir de discussões sobre a guerra no médio oriente e conspirações sobre judeus e escalaram, descrevendo os judeus como Naxgûl e apelidando pessoas racializadas de Orcs. Isto aconteceu no Stormfront e com o decorrer do tempo tornou-se norma em todas as redes sociais. Assim, quando o Breitbart foi lançado, em 2007, estava repleto dessa linguagem.”

A reação extrema experienciada pelos atores de Os Anéis do Poder, Ismael Cruz Cordova, Sophie Nomvete, Lenny Henry e Cynthia Addai-Robinson tem as suas raízes aí e estende-se, na verdade, muito além da ideia de fãs tóxicos. Franson estabelece um paralelo entre a nova extrema-direita (a alt-right) dos Estados Unidos e Giorgia Meloni. “Para mim, o que é crucial nesta história é que os fascistas estão, mais uma vez, a usar a cultura popular para criar grandes estímulos de recrutamento e isto é algo que funciona sempre para eles. Meloni é o exemplo disso: ela é exatamente a pessoa que eles imaginavam; é como se fosse um caso de sucesso daquilo que as pessoas que organizaram o Acampamento Hobbit tinham em mente ao princípio.”

“Ela era a rapariga que adorava Tolkien, que se mascarava de Hobbit e ia para as escolas recrutar pessoas para o fascismo e fazia isso tendo nascido durante as ondas de terrorismo [da década de 1970]. Houve mais de 1.000 pessoas assassinadas durante os “anos de chumbo”, a maior parte delas pelo terrorismo de extrema-direita, inclusive o massacre de Bolonha em 1980 [que teve 85 mortos, 200 feridos, o maior massacre de civis na Itália desde a Segunda Guerra Mundial]. Depois de toda essa violência, ela pensou que seria uma boa ideia juntar-se a um movimento neofascista e vestir-se de Hobbit, visitando escolas para recrutar outros jovens”. Outra questão enfatizada por Frason é o quão pouco estes fãs e personalidades da extrema-direita mudaram suas estratégias – para manter as pessoas racializadas, não-cristãs e queer fora da “sua” Terra Média.

Parte do sucesso da extrema-direita em preservar um tipo de hegemonia cultural sobre o género fantástico também tem a ver, de acordo com Silvia Costantino, da editora italiana Effequ, com o confuso caldeirão de temas e influências da fantasia, que tende a colocar na mesmo saco Tolkien, Michael Ende (o encontro nacional do grupo Irmãos de Itália é chamado “Atreju” por causa do protagonista de História Interminável) e mitos nórdicos. Conforme demonstra Constantino, “há um elemento de tradição nos Acampamentos Hobbit, na revista Éowyn… É relativamente fácil entender a razão pela qual Giorgia Meloni acabou por ler O Senhor dos Anéis e interpretá-lo daquela forma. Para além disso, há o elemento da figura feminina. A personagem Éowyn apresenta fortes componentes revolucionários”.

As obras de Tolkien podem ser vistas como telas em branco. Através de um olhar internacionalista é possível ver diferentes raças procurando unidade; para a extrema-direita, os Orcs e os homens do sul (Southrons) são alvos ficcionais para o seu racismo vil e xenofobia. Independentemente disto, a apropriação de Tolkien e da literatura fantástica pela extrema-direita já dura muito tempo. É tempo de uma começar uma jornada mais justa, mais verde e mais igualitária no interior do fantástico.


Angelo Boccato é um jornalista freelancer. Tem publicado na Columbia Journalism Review, no The Independent e no Open Democracy. É coapresentador do podcast Post Brexit News Explosion. Publicado originalmente no Tribune Mag. Traduzido por Natanael Alencar para a Jacobin Brasil. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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