As estações de serviço da autoestrada não fecham. Por isso, quem lá trabalha, trabalha por turnos e garante o funcionamento durante vinte e quatro horas. Ao longo dos anos, as escalas foram mudando, mas uma coisa é certa: estes trabalhadores nunca têm férias no Natal, na Páscoa ou nos meses de verão, e é difícil conseguirem ter um fim-de-semana em casa.
Nesta entrevista, Carlos Candeias fala da sua experiência com o trabalho por turnos desde 2002, primeiro de forma temporária e, a partir de 2007, de forma permanente. Os horários noturnos, a falta de fins-de-semana, o cansaço, marcam a vida destes trabalhadores.
Em 2024, o Bloco de Esquerda lançou uma petição para garantir direitos aos trabalhadores por turnos, inclusivamente a obrigatoriedade do serviço por turnos, as 24 horas de descanso na mudança de horário por turno, limite de 35 horas semanais para trabalho por turnos e a antecipação da idade da reforma. A petição procurou também recolher testemunhos de trabalhadores por turnos. Carlos é um desses trabalhadores.
Trabalha uma estação de serviço na A2. Há quanto tempo é que entrou e que funções é que faz?
Trabalho numa área de serviço na A2, na parte do restaurante, desde 2007. Já tinha trabalhado lá anteriormente em períodos de Verão desde 2002. Trabalhei sempre de noite. O nosso horário começa às 11 da noite e termina às sete no dia a seguir, sempre com folgas rotativas. Já tivemos três tipos de escalas em que, como você sabe, não há fim-de-semana, não há feriados, não há nada. A estação de serviço trabalha 24 horas, sete dias por semana. Já trabalhei com duas empresas, porque inicialmente era uma concessionária da Eurest, agora as áreas de serviço são uma junção da Brisa com outra empresa espanhola, e são conhecidas como Colibri.
Falava aqui destas 3 escalas diferentes. Quais eram e como é que funcionavam?
A primeira vez que trabalhei na área, em 2001, as escolas eram 5/2. Ou seja, cinco dias de trabalho com dois dias de folga e era fixo ao longo do mês todo. As folgas eram o mês inteiro nos mesmos dias. Imagine que eram segunda e terça, quando passava para o mês a seguir eram terça e quarta. E passavam meses para ter um sábado e domingo. Mesmo quando chegava o sábado e ao domingo, estavam sempre a cravar dias para ir trabalhar, porque havia mais movimento ou porque havia alguém que faltava. Felizmente, as coisas mudaram. Em 2007, quando comecei em definitivo a escala já era diferente. Trabalhávamos seis dias consecutivos e tínhamos duas folgas numa semana e três folgas noutra. Atualmente a nossa escala é quatro dias consecutivos, depois uma folga. Temos menos dias de trabalho, mas só temos uma folga.
Retratos do trabalho por turnos
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Com esse com esses quatro dias e uma folga, consegue descansar?
Uma folga para quem trabalha à noite, se sair na segunda-feira às sete da manhã, vou começar a trabalhar na terça-feira, às onze da noite. Onde é que está a folga? Se forem os meus colegas de dia, eles saem a uma segunda-feira, têm a terça-feira toda em casa e vão trabalhar quarta-feira. Têm efetivamente um dia de folga. Mas quem trabalha à noite, não. E quem trabalha à noite tem de equilibrar os sonos. Eu faço questão de dormir sempre à noite quando estou de folga, acabo por não aproveitar nada. Temos de tomar uma decisão: ou dormimos, ou aproveitamos a vida.
Em relação ao trabalho noturno, sente consequências de viver em contraciclo?
O cansaço. Trabalhar por turnos já é complicado, de manhã ou tarde, mas trabalhar só de noite... Eu noto que a minha fadiga mental aumentou bastante ao longo destes anos, e o cansaço mental levou a uma situação de problemas de saúde psicológica. Tive insónias, dificuldades a dormir de dia. Porque é ter de aguentar com sons dos carros, cães, vizinhos, dos próprios filhos. Arranjamos estratégias para conseguir dormir de dia em condições, porque se não vamos acumulando cansaço. E não é com uma noite ou duas que conseguimos recuperar esse cansaço. Na minha opinião, devia ser similar a uma profissão de desgaste rápido. Porque o desgaste acaba por ser físico e mental. A quantidade de vezes em que não durmo de dia em condições, chega a noite ali às três da manhã, e cai um sono em cima. E agora com 43 anos já é difícil.
Imagina-se a fazer este trabalho noturno até à reforma?
Eu posso mudar para o turno do dia. Só que à noite recebo pouco mais de 1000 euros, e passando para o dia ganharia perto do salário mínimo. Eu tenho contas a pagar e é uma diferença muito grande. Portanto, enquanto eu conseguir trabalhar à noite, vou manter, mas já sei que não vou conseguir. Tenho de ir trabalhar para o turno de dia ou então procurar trabalho. E o trabalho na Brisa nem é muito mau comparado com a empresa anterior, que era um parasitismo. Era abuso atrás de abuso.
O que é que carateriza como parasitismo?
Pagar o mínimo possível. Nós tínhamos um contrato coletivo de trabalho que obrigava ao fim de X anos, a subir de categoria. Eles congelaram muita gente durante muitos anos. Só foram obrigados a descongelar porque alguém entrou com um processo em tribunal. Não davam nada.
Trabalhar à noite significa trabalhar em contraciclo com a vida familiar. Como é que fez essa gestão?
Dá para conciliar algumas coisas, por incrível que pareça. Por exemplo, chego a casa por volta das oito da manhã e dá para levar os filhos à escola. A gente consegue dormir ir buscá-los à escola. E depois temos a noite toda até às dez da noite. Só que à noite é o cônjuge que fica em casa com os filhos. Se fosse um pai solteiro não tinha como fazer isso. No meu caso, a esposa fica com os filhos, mas o grande inconveniente é a vida pessoal com o cônjuge. Quem trabalha à noite, nunca vai dormir com a mulher ou com o marido.
Sentiu alguma dificuldade particular quando as crianças eram mais novas?
Sim, temos de os deixar numa creche, não há hipótese. E depois temos de limitar o nosso tempo de sono, por exemplo, até às 5 da tarde. Porque a maioria das creches fecham aos fins-de-semana, e nós trabalhamos aos fins-de-semana. Por acaso a minha mulher é professora e tem folgas ao fim-de-semana. Mas vejo isso com os meus colegas. Tem sido uma grande preocupação, porque nem todos têm avós, nem todos têm pessoas para deixar os filhos. Têm sido casos complicados. Muitas pessoas optam por não vir trabalhar e perdem o dia. No meu caso, consegui sempre conciliar.
E nos fins-de-semana, como disse? Afetou a sua relação familiar?
Os fins-de-semana e as férias. As férias lá não podem ser marcadas nos meses de Julho e Agosto. Agora veja, a minha mulher é professora e tem férias em agosto, ou seja, eu nunca tenho férias com ela. Também não podemos ter férias nos sete dias da Páscoa e no Natal. E, novamente, é exatamente quando a minha mulher está de férias e as crianças não tem aulas. É complicado. Tento marcar férias sempre antes da Páscoa ou início de Setembro para apanhar ali um ou dois dias com eles.
Na escala de quatro dias com uma folga, quão frequente é ter a folga ao fim-de-semana para estar com sua família?
Um fim-de-semana inteiro, só de sete em sete semanas. Às vezes dois meses e meio para ter um fim-de-semana. Mas se tiver folga a uma sexta-feira, mesmo que vá trabalhar sábado à noite, dá para aproveitar sábado. Agora só tenho um fim-de-semana no dia 14 e 15 de fevereiro, e a última folga de fim-de-semana foi em dezembro. Quase dois meses e meio para ter um fim-de-semana. Nas outras estações de serviço, os trabalhadores preferiram ficar numa escala 6/2, porque sempre conseguem mais fins-de-semana. Mas eles preferem que nós trabalhemos em 4/1, porque se tiverem de nos pedir um dia, trabalhar cinco dias não é tão grave como trabalhar sete. Aí têm de pagar um dia extra.
Para além das férias, nos dias de Natal e Ano Novo, muitas vezes não consegue estar em casa.
Este ano não tive nem Natal, nem Ano Novo. Não tive nada. Para mim, o especial é o Natal, que estou com a minha família, com os meus filhos. O ano passado também não tive nada, e 2022 tive o Natal. Já estive a ver a minha escala, para o ano não vou ter o Natal, mas vou ter o Ano Novo. Aí já me dá margem de manobra para poder negociar com um colega meu. No meu caso em particular, ninguém quer trabalhar à noite. Compreensível. Não há uma única pessoa que queira trabalhar, quando estamos na situação em que alguém falta, é sempre o mesmo rapaz que nos vai ajudar.
O desgaste de que foi falando ao longo da entrevista, acha que é transversal à profissão? Afeta os seus colegas?
Queixam-se do trabalho por turnos, principalmente quando estão no turno da tarde, e têm filhos. É o pior turno possível. No entanto, existe a tal lei para que quem tem crianças até aos 12 anos, possa fazer o pedido para trabalhar só no período da manhã.
O que é que acha que poderia melhorar as condições de trabalho por turnos?
A ideia de que me poderia reformar mais cedo, porque com a idade mais avançada, é mais difícil fazer o trabalho. Se por cada ano trabalhar à noite equivalesse, por exemplo, três ou quatro meses de tempo de reforma antecipada, ajudava imenso. É que uma pessoa jovem, não quer esta vida. Trabalhar por turnos, ninguém quer. Todos os jovens que entram na área de serviço, não duram lá muito tempo. Porque ninguém quer.