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“Os negros que nascem em Portugal são estrangeiros no seu próprio país”

Beatriz Dias ocupa o 3.º lugar na lista do Bloco de candidatos e candidatas por Lisboa às eleições legislativas. A ser eleita, a ativista priorizará a agenda anti-racista que “é muito ampla”, existindo “tantas mudanças para concretizar”.
Beatriz Dias. Foto de Paula Nunes.

Beatriz Gomes Dias tem 48 anos. Nasceu em Dakar, Senegal, e veio para Portugal com apenas quatro anos acompanhada pelos pais, ativistas políticos das lutas de libertação na Guiné-Bissau. Foram os progenitores que, logo nos primeiros anos da sua vida, a ajudaram “a desenvolver ferramentas para poder aprender a lidar” com a discriminação de que foi sendo alvo.

Beatriz é professora de Biologia no secundário. É ativista do Movimento em Defesa da Escola Pública, faz parte do SOS-Racismo e é fundadora e dirigente da Djass - Associação de Afrodescendentes. Militante do Bloco há 12 anos, ocupa agora o 3.º lugar na lista bloquista de candidatos e candidatas por Lisboa às eleições legislativas.

Preciso de continuar a manter o contacto com os ativistas do movimento negro, com as pessoas que sofrem esta discriminação, para poder ter uma capacidade de transformação muito mais profunda

Afirmando-se como uma ativista, a candidata destacou, em entrevista ao jornal Público, que “a agenda anti-racista é muito ampla, temos tantas mudanças para concretizar”.

“Sinto que não o consigo fazer se não estiver ligada às bases, ao quotidiano das pessoas, se não souber quais são as dificuldades. Preciso de continuar a manter o contacto com os ativistas do movimento negro, com as pessoas que sofrem esta discriminação, para poder ter uma capacidade de transformação muito mais profunda”, avançou.

 

“Devemos ter um programa de combate anti-racista nas escolas”

Beatriz Dias sublinhou que “existe racismo na sociedade portuguesa”, e que “a escola não está destacada dessa realidade”. “No entanto, é um campo de disputa privilegiado para podermos potenciar a transformação social”, acrescentou.

Defendendo que “o trabalho na escola é prioritário”, a candidata bloquista destacou que “devemos ter um programa de combate anti-racista nas escolas”, que ainda estão muito influenciadas “por uma narrativa que importa combater e desmontar”.

“Temos uma visão eurocêntrica que domina os manuais escolares e a forma como o nosso passado histórico é relatado”, frisou, sinalizando que “continuamos a ter uma visão colonialista e imperialista do que foi a história portuguesa”.

Beatriz Dias ocupa o 3.º lugar na lista do Bloco de candidatos e candidatas por Lisboa às eleições legislativas. Foto de Paula Nunes. 

Para Beatriz Dias, “é preciso contar uma história muito mais ampla, que realmente relate os factos que ocorreram, que ilustre o que foi o passado histórico de Portugal, o que foi o projeto colonial português. Que não apague as consequências desse período histórico, nem a forma como o projecto foi desenvolvido nos países que foram ocupados por Portugal”.

“Isso é de uma relevância estruturante, estrutural, na criação de uma democracia robusta”, vincou.

Falta, inclusive, segundo a candidata, contar “a dignidade e humanidade daquelas pessoas que foram tratadas como mercadoria” e deixar de representar estas populações “como sendo primitivas e incivilizadas”.

E “importa desmontar o mito dos brandos costumes, do colonialismo suave, do bom colonizador, que continua a penetrar a narrativa identitária nacional”.

Importa desmontar o mito dos brandos costumes, do colonialismo suave, do bom colonizador, que continua a penetrar a narrativa identitária nacional

Beatriz Dias considera que a adesão ao projeto de construção do Memorial de homenagem às pessoas escravizadas mostra que “há espaço para questionar a narrativa e propor uma muito mais ampla”.

A segregação territorial, que empurra os negros e negras para as cidades da periferia de Lisboa, o encaminhamento dos jovens negros e negras para vias profissionalizantes, a precarização laboral da população afrodescendente e das comunidades racializadas são realidades que a ativista quer combater.

“Desigualdade historicamente criada deve ser corrigida com ferramentas de política pública”

Sinalizando que “quando olhamos para o acesso à universidade, para as escolas públicas, percebemos o processo de segregação e de discriminação, como é que a desigualdade se vai perpetuando, ao longo de várias gerações”, Beatriz Dias defendeu que “a desigualdade historicamente criada, como consequência do racismo, deve ser corrigida, usando ferramentas de política pública”, sendo que “as quotas são uma ferramenta importantíssima para fazer essa correção”.

“Não podemos continuar a negar a existência da discriminação racial e do impacto que tem na vida, no quotidiano, de negras e negros”, afirmou a candidata do Bloco, assinalando que “é preciso conhecer a composição da população portuguesa”: “Estes dados precisam de ser colhidos. Para podermos, depois de conhecermos a realidade da sociedade portuguesa, implementar políticas de acção afirmativa como são as quotas”, frisou.

Questionada sobre o artigo que Maria de Fátima Bonifácio escreveu no Público, Beatriz Dias afirmou que “vivemos numa sociedade portuguesa muito plural e o facto de se ter criado espaço, numa coluna de opinião, para que este tipo de mensagens e estas ideias fossem veiculadas reifica o racismo”.

“Não resolvemos o racismo resolvendo as questões de classe exclusivamente”

Sobre a relação entre discriminação racial e pobreza, a ativista salientou que “o discurso público sobre o racismo associa de uma forma mais fácil a ideia de que o racismo é uma consequência da pobreza. Que os negros são discriminados porque são pobres, que é mais uma questão de classe social e que não é tanto uma questão fenotípica”.

Não podemos continuar a defender, ou acreditar, que resolvemos o racismo resolvendo as questões de classe exclusivamente

“Considero que há uma interseccionalidade. A classe é um factor importantíssimo para a discriminação étnico-racial em Portugal, as pessoas são excluídas porque são pobres, mas também porque são negras. Há uma coincidência de várias dimensões na discriminação”, apontou, avançando que “não podemos continuar a defender, ou acreditar, que resolvemos o racismo resolvendo as questões de classe exclusivamente”.

“Os negros que nascem em Portugal são estrangeiros no seu próprio país”

“Existe uma narrativa hegemónica que cria uma ficção de um país homogeneamente branco. Todos os outros que têm um fenótipo diferente são entendidos como estrangeiros”, disse Beatriz Dias.

Um exemplo dessa realidade foi a reação, no Twitter, do ex-secretário de Estado do Tesouro e das Finanças e ex-dirigente do PSD a uma declaração de Beatriz Dias sobre o colonialismo português: “Se somos assim tão maus, se cometemos tantos pecados, não somos merecedores da vossa vinda. Deixem-se estar”, escreveu António Nogueira Leite.

“Não é novidade para mim, não é a primeira vez que sou considerada estrangeira. Afirmo-me como negra e portuguesa. É uma afirmação política. Uso o negra enquanto sujeito político, de afirmação política, e sou portuguesa, precisamente para desmontar esta coincidência que é reiteradamente feita entre ser negro e ser estrangeiro”, afirmou a ativista.

A ausência dos negros no espaço público, não haver sujeitos racializados em lugares de poder e de produção de poder, empobrece-nos enquanto democracia

“Há jovens negros e negras que nascem em Portugal que não têm direito à sua cidadania, são considerados estrangeiros no seu próprio país... Com a lei do indigenato também eram considerados estrangeiros no seu próprio país. Consegue ver-se aqui as continuidades, as relações que existem entre o que foi o nosso passado histórico e o racismo contemporâneo. É preciso desmontar esta coincidência”, acrescentou.

Beatriz Dias reforçou que “continua a haver manifestações de racismo em Portugal”: “É algo que está a par da negação do próprio racismo. Todo o debate em torno do racismo é bastante difícil de fazer porque há uma negação activa do racismo em Portugal e essa negação activa decorre dos mitos do luso-tropicalismo e do colonialismo suave. Há políticas que têm um recorte de classe, para a correção da desigualdade de classe, mas não há políticas que tenham um recorte de raça. E esta ausência, a ausência dos negros no espaço público, não haver sujeitos racializados em lugares de poder e de produção de poder, empobrece-nos enquanto democracia. Temos de fazer uma acção explícita de correcção para quebrar este lastro que existe”, defendeu.

Propostas do Bloco para combater o racismo estrutural

O Bloco quer dar centralidade às políticas de promoção de igualdade e de combate ao racismo. Para isso, propõe o seguinte:

  • Criar a Lei da Nacionalidade para que nasça em Portugal seja português, independentemente da nacionalidade dos pais;

  • Criar um organismo autónomo na administração pública para desenhar programas específicos para combater as desigualdades, do acesso ao emprego público à frequência do Ensino Superior, em que estejam representadas organizações das comunidades racializadas, de imigrantes e antirracistas;

  • Fazer formações específicas das forças de segurança contra o racismo e apuramentos rigorosos dos factos em situações reportadas de violência policial com contornos racistas;

  • Acabar com os despejos e demolições forçados em territórios com forte presença de pessoas e comunidades africanas, afrodescendentes e ciganas, sem a existência de uma alternativa de habitação digna;

  •  Implementar medidas legislativas e inspetivas especiais para proteger os direitos laborais e combater a precariedade e a exploração laboral nos setores de atividades em que as comunidades racializadas estão desproporcionalmente presentes;

  • Adotar medidas promover a igualdade e combater a discriminação racial no domínio laboral;

  • Alterar o Código Penal para que este abranja práticas de discriminação racial;

  • Fazer recolhas de dados sobre a pertença étnico-racial nos Censos de 2021 para conhecer e avaliar desigualdades e apoiar a implementação de políticas públicas;

  • Fazer um estudo nacional sobre discriminação racial para criar uma Estratégia Nacional de Combate ao Racismo;

  • Abrir os materiais escolares a outras correntes problematizadoras dos legados históricos e culturais; criar ensino bilíngue nas línguas mais utilizadas em cada comunidade escolar; formar e contratar mediadores escolares que articulem o diálogo entre instituições e a comunidade;

  • Criar programa para comunidades racializadas acederem ao ensino superior;

  • Criar equipamentos para difundir um conhecimento mais completo e rigoroso da história do país, designadamente da escravatura, do colonialismo;

  • Reconhecer o direito de voto a todos os titulares de autorização de residência em Portugal;

  • Aumentar o tempo dos programas de acolhimento de refugiados para 24 meses.

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