Lutas

Os estivadores, a cidade e o tráfico das armas do genocídio

22 de junho 2025 - 16:40

Os trabalhadores portuários de Génova souberam afirmar-se como um sujeito político em torno do qual se articula uma ação concreta que afronta o “regime de guerra” em que vivemos.

por

Stefano Rota

PARTILHAR
Trabalhadores do porto de Génova manifestam-se pela Palestina e contra a guerra.
Trabalhadores do porto de Génova manifestam-se pela Palestina e contra a guerra. Foto do CALP.

No sábado, 7 de junho, houve em Génova uma importante manifestação organizada pelo CALP (Coletivo Autónomo dos Trabalhadores Portuários), com o bloqueio da passagem da Ponte Etiópia e uma breve marcha na área portuária, com algumas centenas de participantes.

A motivação tinha sido aquela que o CALP assumiu como bandeira e persegue com convicção há anos: o bloqueio do tráfego de armas para países em guerra, neste caso Israel. Vale a pena precisar isso, porque em 2019 a mesma ação teve como alvo outra guerra. Naquele caso, a carga era destinada à Arábia Saudita, empenhada em massacrar a população houti do sul do Iémen.

A colaboração com os estivadores organizados de outras cidades é um ponto forte desta luta. O navio da empresa israelita ZIM deveria chegar a Génova com uma carga de quatro contentores cheios de material de guerra proveniente de Marselha e com destino a Israel, mas os estivadores daquela cidade recusaram-se a carregá-los. O navio chegou a Génova com um dia de atraso e sem a infame carga da morte. Tudo isto já era do conhecimento do CALP e as informações tinham sido partilhadas no dia anterior numa reunião lotada no Music For Peace. Apesar disso, foi decidido continuar com a manifestação marcada para sábado; pessoalmente, considero-a uma escolha sacrossanta.

Tentando ver para além do evento único, é necessário reiterar um ponto fundamental que tem a ver com a crescente força estratégica da logística e das finanças nos processos globais de criação de valor. A logística tem pontos fracos na cadeia de abastecimento global (as finanças também, mas são de natureza diferente). São aqueles em que uma força organizada consegue bloquear ou dificultar temporariamente o fluxo de mercadorias. Isto é válido para os portos, para a Amazon, para os navios americanos. Colocar o próprio corpo nestes cruzamentos, bloquear uma passagem ou montar um piquete à entrada de um armazém, significa realçar a vulnerabilidade (parcial) da cadeia de abastecimento, obrigando as corporações que gerem estas cadeias a alterar as suas rotas marítimas ou rodoviárias. Vem-nos à mente uma pergunta que Foucault colocou em duas entrevistas na segunda metade da década de 1970: “Quando falamos de luta de classes, de que luta estamos a falar?” Destas ações, não há dúvidas.

O que aconteceu no porto de Génova tem uma relação muito estreita com tudo isto, mas com uma mais-valia, ou melhor, duas. A primeira é a já referida da estreita colaboração com os trabalhadores de outros portos, o que cria um efeito multiplicador dos danos produzidos pela luta. A segunda é a força de atração que o CALP consegue emanar, produzindo uma participação variada nas suas iniciativas. Representa um importante ponto de referência em Génova, funciona como um elemento em torno do qual se articulam outros temas. Isto também acontece porque o CALP sabe posicionar-se não apenas como um coletivo de trabalhadores, mas como um coletivo político, no sentido mais preciso do termo. A luta que o CALP trava nesta frente é uma luta que contribui para definir, na sua articulação com outras forças, o ser de um sujeito político coletivo.

Há anos que, como Sandro Mezzadra e Maurizio Lazzarato claramente reiteram, a guerra está na base do modelo de governo, portanto muito para além do produtivo, que está a definir a nova ordem global. As estratégias continentais, bem como nacionais (o plano Von Der Leyen de 800 mil milhões e o processo de rearmamento alemão, por exemplo) estão a desenhar novas relações e equilíbrios, novas prioridades na alocação de recursos e poder de decisão. As finanças e a logística (não esqueçamos que esta última tem uma estrutura organizacional que deriva do modelo bélico) tornam-se cada vez mais estratégicas na construção desta nova ordem. Os grandes centros de investimento que movimentam milhares de triliões de dólares já escolheram em que apostar, como demonstra o crescimento vertiginoso do valor das grandes empresas multinacionais de armamento.

Sem diminuir o valor, que só pode ser simbólico, das manifestações em que nos deitamos nas praças cobertos por mortalhas, da exibição de gigantescas bandeiras palestinianas nos estádios (nem sequer tenho em conta as declarações hipócritas de políticos que, depois de mais de 50 mil mortes, afirmam que estamos a ir longe demais!), a iniciativa do CALP e dos trabalhadores de outros portos assume uma tonalidade bem diversa.

É uma manifestação de inteligência operária, popular, que demonstra ter compreendido bem onde se deve intervir se se quer produzir um obstáculo, ainda que parcial. Mas é sobretudo um projeto político que se manifesta num espaço público (neste caso, o porto, público-privado), onde ao dano material se soma a manifestação da “aliança dos corpos” em torno de uma leitura do mundo, onde se produz o verdadeiro sentido do que é hoje a ação política.

Um querido amigo e grande especialista em tráfego marítimo-portuário, bem como um dos primeiros apoiantes do CALP, com quem estivemos na manifestação (Riccardo degli Innocenti), disse-me, apontando para um navio que transportava centenas de contentores ZIM: “quem sabe o que mesmo apenas 2% destes contentores podem realmente conter?” Ele tem razão, é claro. Ele sabe melhor do que eu o quão fácil pode ser contornar os controlos.

Além de correr o risco de se tornar objeto de interesse das novas disposições do Projeto de Lei de Segurança, quem se organiza e participa nestas formas de luta sabe bem quais são os seus limites. A extensão da frente a outros sujeitos, mesmo de categorias diferentes, pode permitir uma maior eficácia destas lutas, acrescentando informação que permita um mapeamento mais claro dos nós da rede logística que devem ser controlados.

Informação, inteligência, redes e logística: afinal, o inimigo deve ser enfrentado e combatido no seu próprio território.


Stefano Rota é investigador independente e trabalhador nómada. Administra o blog “Transglobal”. A sua mais recente publicação coletiva é La fabbrica del soggetto. Ilva 1958-Amazon 2021 (Sensibili alle foglie, 2023). Colabora ocasionalmente com revistas online italianas e lusófonas.

Artigo publicado originalmente no Transglobal.