O terramoto de Estado na Turquia

05 de março 2023 - 14:59

Tal como fez com a crise inflacionária com a qual a Turquia sofre há anos, o governo de Erdoğan tenta culpar os “empresários malvados”. Porém, a imbricação do Estado com o capital rentista foi um fator fundamental nas consequências do terramoto. Por Alp Kayserilioğlu.

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Sismo na Turquia. Foto de  Foreign, Commonwealth & Development Office/Flickr.
Sismo na Turquia. Foto de Foreign, Commonwealth & Development Office/Flickr.

A 6 de fevereiro, o sul da Turquia e o norte da Síria sofreram dois fortíssimos terramotos de magnitude 7,8 e 7,7 respetivamente. No momento em que redigi este texto, o número de mortos superava os 47.000, enquanto mais de 110.000 edifícios tinham ficado destruídos ou sofrido danos irreparáveis. Para a Turquia é a pior catástrofe natural da história moderna. A magnitude do fracasso do Estado foi também imponente.

O regime de Erdoğan gaba-se frequentemente de ter animado um boom massivo de construção na sequência do qual foram construídos aeroportos, pontes, metros, auto-estradas e inumeráveis habitações, supostamente de acordo com a nova normativa elaborada depois do terramoto que abalou a cidade de Izmit em 1999. Mas agora fica claro que as normas relativas à qualidade da construção eram apenas um tigre de papel. Erdoğan afirmou que praticamente todos os edifícios que caíram nestes dias foram construídos antes de 2000, mas as imagens de satélite e os relatos em primeira mão parecem desmentir esta afirmação. No centro da cidade de Kahramanmaraş, a província mais afetada do país, quase 60% da população vive em edifícios construídos depois de 2001. As urbanizações de luxo, que seria suposto serem totalmente seguras face aos efeitos sísmicos, ficaram reduzidas a escombros. Infraestruturas chave, como o aeroporto de Hatay, e auto-estradas cruciais para a chegada de ajuda em situações de catástrofe, assim como escolas, hospitais e edifícios municipais, ficaram destruídos ou temporariamente inutilizáveis. A procuradoria está a investigar mais de 430 pessoas, entre promotores imobiliários e engenheiros, pelo seu papel na catástrofe. Mais de 130 já estão na prisão. Algumas foram detidas nos aeroportos quando tentavam fugir do país.

Tal como fez com a crise inflacionária com a qual a Turquia sofre há anos, o governo tenta culpar “empresários malvados” por este desastre. Porém, o próprio Estado também é culpado. As normativas não foram aplicadas de forma correta e muitos projetos de construção puderam ultrapassá-las graças a sucessivas “amnistias” do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), que permitiram aos proprietários e promotores imobiliários escapar a qualquer possível acusação pagando uma pequena soma de dinheiro. Os próprios números do Governo sugerem que perto de 50% do parque habitacional não cumpre as normativas vigentes. Ninguém sabe o que foi feito dos recursos investidos na construção de edifícios sismo-resistentes que ascendem a um total aproximado de 38 mil milhões de dólares. Quando se perguntou pelo dinheiro, Erdoğan negou-se a dar detalhes e assegurou que tinha sido utilizado “onde foi necessário”.

Resumindo, a imbricação do Estado com o capital rentista foi um fator fundamental nas consequências do terramoto. Como assinalaram cientistas e arquitetos, é perfeitamente possível construir edifícios que podem resistir a terramotos desta magnitude. Contudo, evidentemente, não houve vontade de o fazer apesar das repetidas advertências da Câmara dos Engenheiros Geólogos e de outros destacados investigadores. A hostilidade à ciência de cariz islamista radical é um fator a ter em conta aqui: o presidente de Câmara de Kahramanmaraş terá dito ao presidente da Câmara dos Engenheiros Geólogos que não acreditava na disciplina da paleosismologia.

Nos sismos, as primeiras 48 horas são cruciais: depois, as taxas de sobrevivência descem rapidamente. Porém, o Estado falhou clamorosamente na hora de ajudar a ajuda de emergência imediatamente a seguir. Relatórios independentes assinalam que durante o primeiro dia houve uma ausência quase total de ajuda oficial no terreno. Em cidades como Antakya passaram três dias até que uma equipa de gestão de catástrofes estivesse plenamente operativa e até então limitou-se a atuar nos centros urbanos, deixando de lado as periferias e as populações rurais. A razão desta incompetência é clara: não se tratou do frio, como afirmou Erdoğan, mas da combinação fatal da ortodoxia neoliberal e da degradação autoritária das instituições públicas.

Nos últimos anos, todos os aspetos da gestão de catástrofes na Turquia foram centralizados num único organismo, a AFAD (Presidência da Gestão de Catástrofes e Emergências), a qual foi dotada de recursos muito limitados depois de sucessivas vagas de austeridade. A organização também foi reestruturada para promover no seu seio militantes do AKP, escolhidos pela sua lealdade mais do que pela sua qualificação profissional. Quando se deu a catástrofe, a pessoa encarregue de supervisionar diretamente a intervenção era um clérigo, enquanto que o diretor da AFAD era um antigo governador. Nenhum dos dois tinha experiência na gestão de catástrofes. A incompetência era tal que o Governo pediu ao anterior chefe da AFAD, mais experiente, que assumisse o controlo na região de Adana. Fontes anónimas da AFAD confirmam que nas primeiras 24 horas houve uma falta total de coordenação e que os altos dirigentes da AKP não queriam sair às ruas por medo de uma reação pública devido à sua lenta resposta. A AFAD não foi apenas manietada pela sua falta de experiência, de pessoal e de equipamentos mas também porque os seus funcionários ficam renitentes a tomar a iniciativa por causa da sua deferência para com Erdoğan. Decidiu-se, por exemplo, abster-se de mobilizar suficientemente as forças armadas por medo que isso prejudicasse a legitimidade do Governo.

O contraste com a resposta dada ao terramoto de 1999 é evidente. Então, a magnitude da devastação foi também resultado do fracasso do Estado e da indústria da construção neoliberalizada. Porém, perante o sismo, a sociedade civil e as instituições estatais, incluindo o exército, responderam rapidamente; os meios de comunicação social foram suficientemente livres para exigir contas ao Governo; e as ações do executivo foram criticadas por ministros e por uma comissão parlamentar de inquérito. Atualmente, contudo, o autoritarismo impede a menor autocrítica. O punho de ferro do Estado é usado para suprimir a informação independente, empregando ameaças de represálias aos jornalistas críticos. Tal como aconteceu com a pandemia da Covid-19, a propaganda do regime insiste que a resposta do Estado é irrepreensível. Diz-se que a destruição é “parte do plano do destino” e que nenhum político poderia tê-la impedido.

Onde o Estado não interveio, as pessoas comuns fizeram todo o possível para preencher as suas lacunas. Uma assombrosa onda de solidariedade estendeu-se por todo o país e através da diáspora, enquanto um enorme número de turcos se disponibilizaram para trabalhar como voluntários na zona do desastre e enviaram dinheiro e equipas para lá. Chegam constantemente à província camiões carregados de ajuda desesperadamente necessária. As doações a organismos independentes e organizações políticas dispararam, refletindo a crescente desconfiança nas instituições estatais. São muitos aqueles que sentem que o espírito dos protestos de Gezi em 2013 renasceu. A “outra Turquia”, sempre latente por detrás do caótico feudo de Erdoğan, voltou a tornar-se visível. Ainda que o Governo tenha tentado parcialmente restringir estas demonstrações de ajuda popular, evitou erradicá-las por completo.

Debilitado por esta calamidade, o regime tenta recuperar a iniciativa e reduzir as consequências políticas através de uma exibição teatral de unidade nacional: “estamos todos juntos nisto”. Até agora, não é claro se a sua campanha de relações públicas salvará a regência de Erdoğan ou se, como prevê Henri Barkey, se verá rapidamente submergida por um “tsunami de descontentamento”. No final, só uma ação política decisiva poderá canalizar o descontentamento atual para provocar a sua queda.


Alp Kayserilioğlu é editor da revista re-volt magazine e doutorando em economia política.

Artigo publicado no Salto Diário a partir do original Turkey’s Statequake publicado no blogue Sidecar, blog da New Left Review. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.