Revolta

O terceiro movimento de libertação do Quénia

22 de julho 2024 - 20:19

Não se trata já só da lei de orçamento. Os quenianos querem mudanças profundas.

por

Kari Mugo

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Protestos no Quénia.
Protestos no Quénia. Foto: Onesmus Karanja/AiaC

Se o objetivo do protesto é criar uma contra-crise, então o movimento popular no Quénia foi bem-sucedido. Encorajado pela Constituição de 2010, que transformou o país numa sociedade aberta e democrática, a tomada do poder pelo povo, sem precedentes em escala e força, chamou a atenção global e colocou o partido governista do presidente William Ruto em desvantagem.

Os maiores protestos nacionais numa geração viram jovens quenianos invadirem o prédio do Parlamento para retomar simbolicamente “a casa do povo”, onde foram recebidos por franco-atiradores e balas reais que resultaram num incidente com vítimas em massa no maior hospital do país e deixaram muitos mortos. Os eventos de 25 de junho marcaram um ponto de viragem, transformando os protestos contra a tributação em reivindicações mais amplas contra um governo que perdeu a sua legitimidade e de um presidente incapaz de governar. A violência desencadeada (aviso de gatilho) contra manifestantes inocentes, que não tinham nada além de bandeiras, cartazes e as suas vozes, colocou a classe política numa luta pela sua sobrevivência contra um movimento sem líderes, liderado por jovens e descentralizado que ela não consegue convencer a dialogar. Com as redes sociais como a sua principal ferramenta de mobilização, a hashtag #RutoMustGo está em alta desde 25 de junho.

De imperioso a conciliador, o Presidente Ruto parece estar confuso enquanto uma batida constante de tambores pede a sua renúncia. O “presidente voador”, que não sai do país há quase um mês, capitulou diante das exigências de reduzir os gastos do governo, fazendo uma série de pronunciamentos que removeram os cargos inconstitucionais das primeiras damas, reduziram o número de assessores do governo e cortaram as viagens não essenciais dos funcionários públicos, o que custou milhões de dólares aos contribuintes no ano fiscal anterior. Ele também sancionou um projeto de lei que abre caminho para a reconstituição do conselho da comissão eleitoral do país, uma das principais exigências do movimento, que está ansioso para iniciar o processo de revogação dos membros do parlamento que estão há apenas dois anos nos seus mandatos, forçando-os a participar de novas eleições. Entre os alvos estão os deputados que votaram “sim” à Lei de Finanças e outros acusados de assassinato (e claramente inaptos para o cargo). Cedendo às reivindicações de transparência em relação à dívida do país, o Presidente Ruto também prometeu uma auditoria da dívida nacional, embora os seus métodos para realizar essa auditoria estejam a ser criticados.

No entanto, nenhuma destas ações diminuiu o teor dos protestos no país e, quando a agitação civil entrou na sua quarta semana sem sinais de interrupção, o presidente anunciou a dissolução de todas as secretarias do seu gabinete, com exceção de uma, demitindo 21 pessoas, inclusive o procurador-geral. A última dissolução de gabinete deste tipo ocorreu há quase duas décadas, em 2005, quando alguns dos que saíram às ruas ainda não eram vivos. Num sinal da rapidez com que a contra-crise se está a desenrolar, um dia depois disso, o chefe da polícia nacional anunciou abruptamente a sua demissão, ao mesmo tempo que corpos gravemente mutilados foram descobertos numa pedreira em Nairóbi, deixando os quenianos mais firmes nas suas exigências de uma transformação total da governação no país.

Quarenta e uma pessoas morreram e a contagem continua. A maioria foi baleada ou espancada até a morte, segundo as autópsias. Kennedy Onyango, de 12 anos, tinha saído da sua casa para pedir um livro emprestado a um amigo quando foi baleado pela polícia. Perguntado sobre o assassinato de Kennedy durante uma entrevista numa mesa redonda na TV, Ruto mordeu o lábio inferior antes de responder: “Aquele rapaz, está vivo, certo?” Os queixos da nação caíram coletivamente no chão; Onyango estava morto há dois dias. Beasley Kamau tinha acabado de comemorar o seu 22º aniversário. Evans Kiratu tinha apenas 21 anos de idade. Kenneth Njeru tinha 19 e Joseph Gitau, 18.

David Chege, 39 anos, foi baleado na cabeça por um atirador de elite. A força da bala abriu a sua cabeça e deixou o seu cérebro numa rua do lado de fora do Parlamento (uma imagem que nunca esquecerei), enquanto a polícia disparava bombas de gás lacrimogéneo contra os cidadãos que tentavam velá-lo, segurando a bandeira nas mãos. Denzel Omondi, 24 anos, que estava desaparecido há uma semana e foi visto pela última vez filmando-se a si mesmo no terreno do Parlamento, foi encontrado morto, a boiar numa pedreira. As organizações de direitos humanos também registaram pelo menos 674 prisões e detenções arbitrárias, inclusive de crianças. Outras 361 pessoas ficaram feridas, algumas paralisadas, e 36 outras foram sequestradas ou desapareceram à força.

Os relatos das pessoas sequestradas estão apenas a começar a ser divulgados, enquanto as publicações nas redes sociais mostram entes queridos ainda à procura dos seus desaparecidos. Até ao momento, ninguém foi responsabilizado pelos sequestros, mortes ou violações de direitos que estão a ocorrer. Mas não são apenas as táticas violentas do governo de Ruto contra jovens armados apenas com as suas vozes – e, no caso de Kennedy, com o desejo de aprender – que estão a sustentar a indignação do movimento. É também o fracasso do governo de Ruto em proporcionar progresso. Vinte e dois meses depois de assumir o cargo, o governo cumpriu menos de 5% do seu programa, como mostra um rastreador digital das promessas de campanha do partido no poder. Das 284 promessas feitas aos quenianos, apenas 13 foram cumpridas e pelo menos 22 foram quebradas.

Depois de anos de má administração dos assuntos do país por uma pequena elite política que inclui o Presidente Ruto – que tem entrado e saído de cargos eletivos desde 1997 – o Quénia tornou-se um lugar miserável para se viver para aqueles que não têm poder, riqueza ou as conexões necessárias para obtê-los. Governos sucessivos, assumindo empréstimos pesados em nome do povo queniano em acordos de dívida opacos, também deixaram o país numa crise de dívida. Com uma carga de dívida estimada em 80 mil milhões de dólares, o que representa mais de metade do PIB do país, os quenianos têm poucos resultados. Não há empregos para os jovens e idosos, assistência médica inadequada para os doentes, um setor educacional em ruínas para as crianças, nenhuma habitação acessível para as famílias ou proteções de bem-estar social para os necessitados. Enquanto isso, o custo de vida continua a aumentar. Os quenianos perguntam-se: “Para onde vai o nosso dinheiro?”

Os casos de corrupção em massa fornecem algumas respostas e são matéria constante para os jornais do país. Um relatório do auditor geral publicado esta semana mostra que o governo “não consegue mostrar projetos financiados com 8,5 mil milhões de dólares de empréstimos caros” tomados entre 2010 e 2021. Outras reportagens da Africa Uncensored sobre corrupção orçamental também revelaram que pelo menos 10 mil milhões foram perdidos para a corrupção estatal entre 1978 e 2022. Para contextualizar, a dívida pendente do Quénia com o Fundo Monetário Internacional (FMI) é de menos de quatro mil milhões. E a classe política está tão desligada das preocupações dos quenianos comuns, que definham na pobreza, que os orçamentos anuais nacionais e dos condados se tornaram esquemas de enriquecimento de riqueza. No orçamento financeiro de 2024-2025, por exemplo, mais de 15 milhões de dólares foram alocados para carros novos para altos funcionários do governo, com apenas 780.000 reservados para o desenvolvimento da juventude. É importante ressaltar que 35% da população do Quénia tem entre 15 e 35 anos de idade e a taxa de desemprego dos jovens é de 67%.

Estas estatísticas – e o facto de Ruto ter concorrido com uma plataforma para jovens – podem explicar a ânsia do presidente na entrevista de TV mencionada anteriormente de exaltar todos os empregos no exterior que sua viagem pelo mundo está criando para os jovens. Mas uma olhada no portal do governo que lista “Foreign Active Jobs” (empregos ativos no exterior) está repleto de vagas para empregadas domésticas, ajudantes domésticos, governantas, trabalhadores de limpeza e motoristas em países com abusos documentados de direitos humanos contra trabalhadores quenianos. A pequena burguesia, dizem os quenianos, vendeu-nos para enriquecer.

Em “What Must We Do to Be Free?” (O que devemos fazer para sermos livres?) Ed Whitfield escreve que a escravidão nas Américas baseava-se no “uso do poder para tirar de uma pessoa o produto do seu próprio trabalho”. No Quénia, 61% de cada cêntimo arrecadado na receita do contribuinte, de acordo com Ruto, é gasto no serviço da dívida. Isto não é apenas uma admissão da incapacidade do governo de atender às necessidades essenciais dos quenianos, mas equivale ao roubo do trabalho do povo queniano. A corrupção orçamental do Estado significa que os contribuintes quenianos estão a pagar por empréstimos, alguns dos quais nunca chegaram ao Quénia. Os jovens quenianos, que identificaram corretamente a conexão entre a falta de controle sobre o seu trabalho e os seus produtos (em receitas fiscais), estão agora a buscar a libertação de décadas de violência económica e do jugo do extrativismo e do imperialismo ocidentais aos quais a classe política se amarrou. Estão a exigir um governo que priorize os seus interesses e um país no qual possam viver, trabalhar e prosperar.

O país, segundo eles, tem receita suficiente para atender às suas necessidades e oferecer empregos e futuro para os seus jovens, se puder resolver o seu problema de despesas. Ele também é capaz de se livrar de credores como o FMI, cujas condicionalidades causam conflitos para os seus cidadãos. Os relatórios mostram que o FMI não apenas aprovou as propostas de impostos na controversa Lei de Finanças, mas também previu os protestos contra os impostos muito antes de os quenianos verem a lei e mobilizarem a sua raiva. Ao classificar os protestos como de “risco médio”, o FMI pediu ao governo queniano que prosseguisse com os planos de aumentar a tributação sobre uma população já sobrecarregada. Fadhel Kaboub, escrevendo para o The Guardian, documenta como as políticas fiscais do FMI e dos EUA continuam a falhar com o povo queniano: “O Quénia pode ter democracia ou extração neocolonial, mas não os dois, porque democracia significa atender às reivindicações do povo queniano.”

O que acontecerá a seguir é a pergunta que está na mente de todos. Há mais protestos planeados para a próxima semana. O dinamismo do movimento popular do Quénia, a sua capacidade de se organizar online e offline, é a sua maior força. O uso de plataformas das redes sociais para educação cívica, diálogo com a comunidade e mobilização política está a gerar reivindicações orgânicas e ações diretas baseadas nas experiências vividas pelas pessoas, em vez de serem orientadas por agendas políticas. Isto torná-las-á sustentáveis na compreensão do que o Quénia quer. O aumento do escrutínio do governo e das suas negociações também está apressionar a responsabilidade e a transparência. Como observou um orador num X Space do qual participei recentemente, o nosso “sucesso é que o nosso apelo não é ao presidente, mas à própria Constituição”.

Não estamos a apelar para que um líder nos salve, mas para a realização do país que o povo queniano imaginou em 2010. E à medida que o discurso político se infiltra em todos os espaços públicos e privados do Quénia, fica claro que um terceiro movimento de libertação criou raízes, liderado pelos seus jovens. São os quenianos com 40 anos de idade ou menos que irão influenciar a próxima eleição em 2027, mas essa é uma eleição muito distante para um movimento que está a ganhar terreno e a concretizar-se em torno de uma exigência central: Ruto deve sair.


Kari Mugo é uma escritora queniana.

Texto publicado originalmente no Africa is a Country. Traduzido para português pela revista Movimento. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.