O espírito de 68 é uma bebida poderosa, uma mistura picante e desejável, um cocktail explosivo composto por vários ingredientes. Um dos seus componentes - e não menos importante - é o romantismo revolucionário, isto é, um protesto cultural contra os alicerces da civilização industrial / capitalista moderna, o seu produtivismo e consumismo, e uma associação singular, única no seu género, entre subjetividade, desejo e utopia - o "triângulo conceptual" que o define, de acordo com Luisa Passerini, 1968.1
O romantismo não é apenas uma escola literária do princípio do século XIX - como ainda se pode ler em muitos manuais - mas uma das principais formas da cultura moderna. Como estrutura sensível e visão do mundo, ele manifesta-se em todos os âmbitos da vida cultural - literatura, poesia, arte, música, religião, filosofia, ideias políticas, antropologia, historiografia e as outras ciências sociais. Surgiu em meados do século XVIII – pode-se considerar Jean-Jacques Rousseau como o "primeiro dos românticos" – desenvolveu-se através da Frühromantik alemã, Hölderlin, Chateaubriand, Hugo, os prerrafaelistas ingleses, William Morris, o simbolismo, o surrealismo e o situacionismo, e ainda está connosco nos princípios do XXI. Pode ser definir como uma rebelião contra a sociedade capitalista moderna, em nome dos valores sociais e culturais do passado, pré-modernos, e um protesto contra o desencanto moderno do mundo, a dissolução individualista / competitiva das comunidades humanas, e o triunfo da mecanização, mercantilização, reificação e quantificação. Dividida entre a sua nostalgia do passado e os seus sonhos de futuro, pode tomar formas regressivas e reacionárias, propondo um retorno a formas de vida pré-capitalistas, ou uma forma revolucionária / utópica, que não advoga um retorno, mas um desvio através do passado para alcançar o futuro; neste caso, a nostalgia do paraíso perdido é investida na esperança de uma nova sociedade.2

Entre os escritores mais admirados da geração rebelde dos anos 60 pode-se encontrar quatro pensadores que pertencem, sem dúvida, à tradição romântica revolucionária, e que tentaram, como os surrealistas na geração anterior, combinar - cada um à sua maneira, individual e singular - a crítica marxista e a crítica romântica da civilização: Henri Lefebvre, Guy Debord, Herbert Marcuse e Ernst Bloch. Enquanto os dois primeiros tinham a simpatia dos rebeldes franceses, o terceiro era mais conhecido nos EUA, e o último, sobretudo, na Alemanha. Certamente que a maioria dos jovens que saíram às ruas em Berkeley, Berlim, Milão, Paris ou México nunca tinha lido estes filósofos, mas as suas ideias difundiram-se de mil e uma maneiras, nos panfletos e nas palavras de ordem do movimento. Isto vale, especialmente, em França para Debord e os seus amigos situacionistas, aos quais o imaginário do Maio de 68 deve alguns dos seus sonhos mais ousados, e algumas das suas fórmulas mais marcantes ("A imaginação ao poder"). No entanto, não é a "influência" destes pensadores que explica o espírito de 68, mas sim o contrário: a juventude rebelde procurou autores que pudessem proporcionar ideias e argumentos a favor dos seus protestos e dos seus desejos. Entre eles e o movimento produziu-se, ao longo dos anos 60 e 70, uma espécie de "afinidade eletiva" cultural: descobriram-se uns aos outros e influenciaram-se mutuamente num processo de reconhecimento recíproco.3
No seu notável livro sobre o Maio de 68, Daniel Singer captou perfeitamente o significado dos "acontecimentos": "Foi uma rebelião total, que questionou não só um ou outro aspeto da sociedade existente, mas os seus objectivos e meios. Foi uma revolta mental contra o estado industrial existente, tanto contra a sua estrutura capitalista como contra o tipo de sociedade de consumo que criou. Isto ia a par com repugnância impressionante impressionante a tudo o que viesse de cima, contra o centralismo, a autoridade, a "ordem hierárquica".4 A Grande Recusa - expressão emprestada por Marcuse a Maurice Blanchot - da modernização capitalista e do autoritarismo, define o ethos político e cultural do Maio de 68 e, provavelmente, dos seus equivalentes nos EUA, México, Itália, Alemanha, Brasil e outros países.
É preciso sublinhar que os movimentos de 68 não foram motivados por uma qualquer crise da economia capitalista
É preciso sublinhar que estes movimentos não foram motivados por uma qualquer crise da economia capitalista: pelo contrário, tiveram lugar na chamada era dos “trinta gloriosos” (1945-1975), anos de crescimento e prosperidade capitalista. Isto é importante para evitar a armadilha de achar que as rebeliões anticapitalistas são, única ou principalmente, resultado da recessão ou de uma crise mais ou menos catastrófica da economia: não existe uma correlação direta entre os altos e baixos da Bolsa e a ascensão ou declínio das lutas, ou das revoluções, anticapitalistas! Acreditar no contrário seria uma regressão ao tipo de "marxismo" economicista que prevalecia na Segunda e na Terceira Internacional.
Limitar-me-ei a comentar o caso francês, que é o que conheço melhor. Se pegarmos, por exemplo, no famoso panfleto distribuído em março de 68 por Daniel Cohn-Bendit e seus amigos, "Porquê sociólogos?", encontramos a rejeição mais explícita de tudo o que se apresenta com a etiqueta de “modernização"; esta é identificada com planificação, racionalização e produção de bens de consumo de acordo com as necessidades do capitalismo organizado. Diatribes similares contra a tecnoburocracia industrial, a ideologia do progresso e da rentabilidade, os imperativos económicos e as "leis da ciência" estão presentes em muitos documentos da época. O sociólogo Alain Touraine, um observador distanciado do movimento, analisa mediante o uso de conceitos de Marcuse, este aspeto do Maio de 68: "A revolta contra a ’unidimensionalidade’ da sociedade industrial gerada pelos dispositivos económicos e políticos não pode explodir sem implicar elementos ’negativos’, isto é, sem opor a expressão imediata dos desejos aos constrangimentos, que se consideram naturais, do crescimento e da modernização".5 A isto há que acrescentar o protesto contra as guerras imperialistas e / ou coloniais, e uma poderosa onda de simpatia - não sem ilusões "românticas" - para com os movimentos de libertação dos países oprimidos do Terceiro Mundo. Por último, mas não menos importante, havia em muitos destes jovens ativistas uma profunda desconfiança para com o modelo soviético, considerado um sistema autoritário / burocrático e, para alguns, uma variante do mesmo paradigma de produção e consumo do Ocidente capitalista.
O espírito romântico do Maio de 68 não se compõe só do "negativo" da revolta contra um sistema económico, social e político. Também está cheio de esperanças utópicas, sonhos libertários e surrealistas
O espírito romântico do Maio de 68 não se compõe só do "negativo" da revolta contra um sistema económico, social e político considerado desumano, intolerável, opressivo e filistino, como também de atos de protesto, tais como a queima de carros, esses símbolos desprezados da mercantilização capitalista e do individualismo possessivo6. Ele também está cheio de esperanças utópicas, sonhos libertários e surrealistas, “explosões de subjetividade" (Luisa Passerini), em resumo, do que Ernst Bloch chamava Wunschbilder, "imagens-de-desejo", que não só se projetam num futuro possível, numa sociedade emancipada, sem alienação, reificação ou opressão (social e de género), mas também, imediatamente, experimentadas em diferentes formas de prática social: o movimento revolucionário como festa coletiva e como criação coletiva de novas formas de organização; a tentativa de inventar comunidades humanas livres e igualitárias, a afirmação partilhada da sua subjetividade (sobretudo entre as feministas); a descoberta de novos métodos de criação artística, desde os cartazes subversivos e irreverentes, até às pinturas poéticas e irónicas nas paredes.
A reivindicação do direito à subjetividade estava inseparavelmente ligada ao impulso anticapitalista radical que atravessava, de um lado ao outro, o espírito do Maio de 68
A reivindicação do direito à subjetividade estava inseparavelmente ligada ao impulso anticapitalista radical que atravessava, de um lado ao outro, o espírito do Maio de 68. Esta dimensão não deve ser subestimada: ela permitiu a – frágil – aliança entre os estudantes, os diversos grupúsculos marxistas ou libertários e os sindicalistas que organizaram - apesar das suas direções burocráticas - a maior greve geral da história de França.
Na sua importante obra sobre o "novo espírito do capitalismo”, Luc Boltanski e Eve Chiapello distinguem entre dois tipos - no sentido weberiano do termo - de crítica anticapitalista, cada um com a sua combinação complexa de emoções, sentimentos subjetivos, indignações e análises teóricas, que de uma ou de outra maneira convergiram no Maio de 68: I) a crítica social, desenvolvida pelo movimento operário tradicional, que denuncia a exploração dos trabalhadores, a miséria das classes dominadas, e o egoísmo da oligarquia burguesa que confisca os frutos do progresso; II) a crítica artística, apoiada em valores e opções de base do capitalismo, e que o denuncia, em nome da liberdade, como um sistema que produz alienação e opressão. 7
Examinemos mais de perto o que Boltanski e Chiapello incluem sob o conceito de crítica artística do capitalismo: uma crítica do desencanto, da inautencidade e da miséria da vida quotidiana, da desumanização do mundo pela tecnocracia, da perda de autonomia e, enfim, do autoritarismo opressor dos poderes hierárquicos. Em vez de libertar as potencialidades humanas pela autonomia, a auto-organização e a criatividade, o capitalismo submete os indivíduos à "jaula de ferro" da racionalidade instrumental e à mercantilização do mundo. As formas de expressão desta crítica são tomadas do repertório da festa, do jogo, da poesia, da liberdade de expressão, enquanto que a sua linguagem é inspirada por Marx, Freud, Nietzsche e pelo surrealismo. É anti-moderna, na medida em que insiste no desencanto, e é modernista, quando põe o acento na libertação. As suas ideias podem-se encontrar já na década de 1950 nos pequenos "grupos de vanguarda" artísticos e políticos - como "Socialismo ou Barbárie" (Castoriadis, Claude Lefort) ou no situacionismo (Guy Debord, Raul Vaneigem) - antes de explodirem publicamente na revolta estudantil de 68.8
De facto, o que Boltanski e Chiapello chamam “crítica artística" é basicamente o mesmo fenómeno que eu designo como crítica romântica do capitalismo. A principal diferença é que os dois sociólogos tentam explicar por "um estilo de vida boémio”, pelos sentimentos dos artistas e dos dândis, formulados de maneira exemplar nos escritos de Baudelaire.9 Isto parece-me uma análise muito estreita: o que eu chamo romantismo anticapitalista não só é mais antigo, como tem uma base social bem mais ampla. Está implantado não só entre os artistas, mas também entre intelectuais, estudantes, mulheres e todo o tipo de grupos sociais cujo estilo de vida e cultura são afetados negativamente pelo processo destrutivo da modernização capitalista.
Outro aspeto problemático do ensaio de Boltanski e Chiapello, notável pela riqueza das suas propostas, é a sua tentativa de demonstrar que, nas últimas décadas, a crítica artística, separando-se da crítica social, foi integrada e recuperada pelo novo espírito do capitalismo, pelo seu novo estilo de gestão, baseado em princípios de flexibilidade e liberdade, que propõe uma maior autonomia no trabalho, mais criatividade, menos disciplina e menos autoritarismo. Uma nova elite social, frequentemente ativa nos anos 60 e atraída pela crítica artística, rompeu com a crítica social do capitalismo - considerada "arcaica" e associada à velha esquerda comunista - e aderiu ao sistema, ocupando lugares dirigentes.10
Mais do que uma continuidade suave e sem contradições entre os rebeldes de 68 e os novos gestores, ou entre os desejos e utopias de Maio e a última ideologia capitalista, vejo uma profunda rutura ética e política - às vezes na vida de um mesmo indivíduo
Evidentemente, há muito de verdade nesta descrição, mas mais do que uma continuidade suave e sem contradições entre os rebeldes de 68 e os novos gestores, ou entre os desejos e utopias de Maio e a última ideologia capitalista, vejo uma profunda rutura ética e política - às vezes na vida de um mesmo indivíduo. O que se perdeu neste processo, nesta metamorfose, não é um detalhe, mas o essencial: o anticapitalismo ... Uma vez despojada do seu conteúdo anticapitalista próprio - diferente do da crítica social -, a crítica artística ou romântica deixa de existir como tal, perde todo o significado e torna-se num mero ornamento. Certamente que a ideologia capitalista pode integrar elementos "artísticos" ou "românticos" no seu discurso, mas foram previamente esvaziados de todo o conteúdo social significativo para se tornarem numa forma de publicidade. Há muito pouco em comum entre a nova "flexibilidade" industrial e os sonhos utópicos e libertários de 68. Falar, como o fazem Boltanski e Chiapello, de um "capitalismo esquerdista"11 parece-me um puro contrassenso, uma contradictio in adjecto.
Qual é, então, o legado de 68 hoje? Pode-se estar de acordo com Perry Anderson que o movimento foi derrotado duradouramente, que muitos dos seus participantes e dirigentes se tornaram conformistas, e que o capitalismo - na sua forma neoliberal - não só triunfou nos anos 1980 e 1990 como se converteu no único horizonte possível.12 No entanto, parece-me que estamos a assistir, nos últimos anos, ao desenvolvimento, à escala planetária, de um novo e vasto movimento social, com uma forte componente anticapitalista. Claro, a história nunca se repete, e seria tão inútil e absurdo esperar um "novo Maio de 68" em Paris ou em qualquer outro lugar: cada nova geração rebelde inventa a sua própria e única combinação de desejos, utopias e subjetividades.
A mobilização internacional contra a globalização neoliberal, inspirada no princípio de que "o mundo não é uma mercadoria", que tomou as ruas de Seattle, Praga, Porto Alegre, ou Génova é - inevitavelmente - muito diferente dos movimentos dos anos 60. Está longe de ser homogénea: enquanto que os seus participantes mais moderados ou pragmáticos acreditam ainda na possibilidade de regular o sistema, uma grande parte do "movimento dos movimentos" é abertamente anticapitalista, e nos seus protestos pode-se encontrar, como em 68, uma fusão única das críticas romântica e marxista da ordem capitalista, das suas injustiças sociais e da sua avidez mercantil. Pode-se vislumbrar, sem dúvida, algumas analogias com os anos 60 - a poderosa tendência anti-autoritária ou libertária - mas também diferenças importantes: a ecologia e o feminismo, ainda incipientes em Maio de 68, são agora componentes centrais da nova cultura radical, enquanto que as ilusões no "socialismo realmente existente" - soviético ou chinês - praticamente desapareceram.
Este movimento está apenas a começar, e é impossível prever como se vai desenvolver, mas já mudou o clima intelectual e político em alguns países. É realista, isto é, exige o impossível…
Artigo de Michael Löwy, publicado originalmente em inglês, em fevereiro de 2002, em Thesis Eleven, n° 68. Republicado em francês, em Mediapart. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net
Notas:
1 L. Passerini, “ ‘Utopia’ and Desire ”, Thesis Eleven, Number 68, February 2002, pp. 12-22.
2 Veja-se sobre este assunto o meu livro, com Robert Sayre, Revolte et Melancolie. Le romantisme à contre-courant de la modernité, Paris, Payot, 1992
3 Remeto para a análise do conceito de afinidade eletiva para o meu livro “Rédemption et Utopie. Le Judaïsme libertaire en Europe centrale, une étude d’affinité éléctive”, Paris, Presses Universitaires de France, 1986.
4 Daniel Singer, Prelude to Revolution. France in May 1968 , New York, Hill and Wang, 1970, p. 21.
5 A.Touraine, Le Mouvement de Mai ou le Communisme utopique, Paris, Seuil, 1969, p. 224. Ver também Andrew Feenberg, “Remembering the May events ”, Theory and Society, n°6, 1978.
6 Eis o que escrevia Henri Lefebvre num livro publicado em 1967: "Nesta sociedade, em que a coisa tem mais importância que o homem, há um objeto rei, um objeto piloto: o automóvel. A nossa sociedade, dita industrial ou técnica, possui este símbolo, coisa dotada de prestígio e de poder. (...) o carro é um instrumento incomparável e talvez irremediável, nos países neocapitalistas, de desculturização, de destruição a partir do interior do mundo civilizado". (H. Lefebvre, Contra os tecnocratas, 1967, reeditado em 1971 sob o título Vers le cybernanthrope, París, Denoel, p.14).
7 Luc Boltanski, Eve Chiapello Le nouvel esprit du capitalisme, París, Gallimard, 1999, pp. 244-245.
8 Ibid. pp. 245-246, 86
9 Ibid. pp.83-84.
10 Ibid. pp.283-287
11 Ibid , p. 290.
12 Refiro-me às intervenções orais de Perry Anderson durante os debates de um seminário sobre o Maio de 68 em Florença, que deu lugar à publicação de um número da revista Thesis Eleven.