O “novo” Médio Oriente

por

José Manuel Rosendo

18 de setembro 2025 - 10:27
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Com o ataque ao Qatar, Netanyahu teve a “virtude” de sentar à mesma mesa, pela mesma causa, árabes e persas. Não é coisa pouca. Publicado no blogue “Meu Mundo Minha Aldeia“

cimeira de Doha
Cimeira de Doha.Foto Organização para a Cooperação Islâmica.

Poucos dias depois de Israel sofrer uma derrota no Conselho de Segurança da ONU (que condenou o ataque ao Qatar) e uma outra derrota na Assembleia-geral da ONU (142 países votaram a favor de uma declaração pela criação do Estado da Palestina), e enquanto os países árabes e muçulmanos tinham encontro marcado em Doha, Qatar, o secretário de estado norte-americano Marco Rubio corria para Israel. Mensagem: aconteça o que acontecer, Estados Unidos e Israel seguem unidos. Mesmo quando estão em causa outros aliados norte-americanos, Israel é a prioridade de Washington. Nada de novo mas, um pouco mais tarde, Donald Trump saiu-se com uma versão melhorada que parece contraditória: Israel deve “ter muito cuidado”, sublinhando que “o Qatar tem sido um grande aliado dos Estados Unidos. Muitas pessoas não sabem disso”. E Trump garantiu, assertivamente, que Israel não voltará a atacar o Qatar. Uma garantia com o carimbo da Sala Oval poucas horas depois do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, ter dito o contrário (tendo ao lado o secretário de estado norte-americano, Marco Rubio, que não o contrariou), não descartando novos ataques contra os líderes do Hamas “onde quer que estejam”. Até deu o exemplo de como Israel matou os autores do atentado contra a comitiva de Israel nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972.

Benjamin Netanyahu não se desvia um milímetro da deriva violenta e supremacista com a qual perpetua a guerra na Faixa de Gaza, ignorando apelos de aliados de sempre, ignorando a Justiça Internacional e espatifando o Direito Internacional, algo que Donald Trump certamente aprecia. Israel faz o que quer, como e quando quer. Chamam-lhe uma democracia.

Cimeira de Doha

Enquanto isso, em Doha, países da Liga Árabe e da Organização para a Cooperação Islâmica reuniram-se de urgência. Há agora um discurso anti-Israel que tinha esmorecido (com a excepção do Irão) e até desaparecido, a partir do momento em que alguns países árabes/muçulmanos assinaram os acordos de Abraão e outros estavam na calha, incluindo a Arábia Saudita (pelo menos até ao ataque do Hamas a 7 de Outubro de 2023). É uma mudança radical.

O ataque ao Qatar fez soar as campainhas de alarme nas capitais árabes, até aqui mais preocupadas com os negócios de muitos milhões com Israel e com os Estados Unidos e muito menos com a causa palestiniana ou com a guerra na Faixa de Gaza, apesar da retórica habitual. Há um momento em que os governos não podem perder a face, até perante os seus próprios cidadãos.

Para além disso, desta vez perceberam uma coisa muito simples: a vontade de Israel é mais forte do que a alegada protecção dos aliados norte-americanos. Ainda não se sabe se os Estados Unidos foram avisados com antecedência – Israel assume a responsabilidade total pelo ataque ao Qatar – mas o que já se sabe é que os mísseis caíram mesmo em Doha e os Estados Unidos não o evitaram. E poderão voltar a cair, porque Netanyahu assim o diz, apesar de Donald Trump dizer o contrário. E o que as capitais árabes também ficaram a saber é que a qualquer uma delas pode acontecer o mesmo, se Israel assim entender.

Netanyahu juntou o mundo árabe e persa

Com o ataque ao Qatar, Netanyahu teve a “virtude” de sentar à mesma mesa, pela mesma causa, árabes e persas. Não é coisa pouca, se pensarmos que Israel tem no Irão o principal inimigo e que um dos objetivos dos Acordos de Abraão era precisamente isolar o Irão. A coisa não correu bem a Netanyahu, para além dos líderes do Hamas terem sobrevivido ao ataque.

O presidente do Irão disse que nenhum país árabe ou muçulmano está a salvo de ataques da “entidade sionista”; o Emir do Qatar pediu medidas práticas e decisivas para responder ao ataque israelita; o presidente egípcio disse que o ataque israelita levanta obstáculos a qualquer oportunidade para acordos de paz com Israel e pode até acabar com os que já existem (Egipto e Jordânia têm Tratados de Paz com Israel)

Declaração de Doha

Nada de muito concreto saiu da cimeira de Doha. A retórica não surpreende, mas não seria a primeira vez que as palavras não teriam consequências. Há, no entanto, palavras fortes no comunicado final: (…) contínuas práticas agressivas de Israel, incluindo crimes de genocídio, limpeza étnica, fome e cerco, bem como atividades de assentamento e políticas expansionistas, minam as perspectivas de paz e coexistência pacífica na região. Os países reunidos em Doha, acusam Israel de Genocídio, crimes contra a Humanidade e crimes de guerra, e dizem que a paz na região não se traduz em fazer o que Israel quer, estabelecem critérios para futuros acordos na região, exigem o fim da ocupação israelita de todos os territórios árabes (Líbano, Síria, Cisjordânia e Gaza) e reafirmam “o conceito de segurança coletiva e destino compartilhado dos Estados Árabes e Islâmicos, a necessidade de unidade para enfrentar desafios e ameaças comuns e a importância de começar a implementar os mecanismos de implementação necessários”.

Também fica um aviso: qualquer decisão de Israel de anexar território palestiniano significará uma anulação de todos os esforços para alcançar uma paz justa e abrangente na região.

A Organização de Cooperação Islâmica propõe-se examinar até que ponto Israel pode fazer parte da ONU, atendendo às “claras violações das condições de filiação e o seu persistente desrespeito pelas resoluções da ONU”. Objetivo: coordenar esforços visando suspender a filiação de Israel das Nações Unidas.

Os países reunidos em Doha pedem também que sejam impostas sanções, suspendendo o fornecimento, a transferência ou o trânsito de armas, munições e materiais militares, pedem que sejam ponderadas as relações diplomáticas e económicas e que sejam desencadeados processos legais contra Israel.

Esta é a síntese de um extenso comunicado, com 25 pontos. Algumas das exigências que nele são feitas podem começar a ser desde já aplicadas pelos próprios países que assinaram esta declaração, mas vai ser preciso esperar para saber se a retórica, desta vez, vai traduzir-se em acções concretas.

Qatar

Certo é que o Qatar é um país sui generis, até há pouco tempo um quase pária entre as monarquias do Golfo, centro de uma crise entre 2017 e 2021, que levou ao encerramento de fronteiras e a um cerco económico. Um bom relacionamento com o Irão, tal como com a Irmandade Muçulmana e acusações de apoio ao terrorismo, são agora questões ultrapassadas. O Qatar é também um forte aliado dos Estados Unidos, a cujo presidente ofereceu recentemente um Boeing 747, avaliado em 350 milhões de Euros, para ser utilizado como avião presidencial. Os negócios entre os dois países, juntando encomenda de aviões à Boeing e compra de equipamento militar, somam muitos milhares de milhões de dólares e é algo que faz brilhar os olhos de Donald Trump. E depois há ainda a presença militar norte-americana no Qatar.

Do que não se falou

Dentro desta crise provocada pelo ataque israelita ao Qatar, parece haver uma arma ainda de reserva: o petróleo. Nada consta na declaração final, mas o preço do petróleo, que os países árabes e em particular os países do golfo podem influenciar, não será certamente algo a ignorar se Israel persistir na agressão e se a comunidade internacional continuar sem aplicar sanções a Telavive.

À margem, do que se falou foi da reactivação de uma força militar árabe para defesa rápida em caso de ataque a um país árabe. A ideia não é nova, mas nunca vingou. Apesar disso, o jornal Al-Quds Al-Arabi, sediado em Londres, disse que o presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sisi, trabalhou nessa ideia durante os últimos dias. Em Israel a ideia serve para títulos de imprensa que apoucam as lideranças árabes, como foi o caso do israelnationalnews.com: “O Mito de um Exército Árabe Conjunto: Ditadores focam-se na sobrevivência, não na defesa”.

Para o mundo árabe em geral, o drama é que este jornal israelita tem razão. Tem sido assim. Falta saber se assim vai continuar ou se o ataque ao Qatar vai mudar atitudes e ultrapassar as habituais dificuldades de entendimento sobre medidas concretas que consigam juntar vontades e diferentes perspectivas sobre o futuro da região.

Apesar de tudo isto, Israel está mais isolado. Queria aproximação aos países vizinhos, mas mediu mal o passo ao atacar o Qatar e acabou por criar maior hostilidade. O “novo” Médio Oriente que Trump e Netanyahu tanto ambicionam e apregoam vai ter de esperar. A Palestina também depende disso.


Pinhal Novo, 16 de Setembro de 2025
Artigo publicado no blogue “Meu Mundo Minha Aldeia