O mal-estar do campo: a crise do neoliberalismo que ameaça tingir-se de castanho

11 de fevereiro 2024 - 21:30

A extrema-direita europeia está a tentar tirar proveito eleitoral dos protestos dos agricultores, apresentados pelos grandes meios de comunicação social como um confronto entre o mundo rural e a ecologia. Por Enric Bonet.

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Foto de Thomas Bresson (vía Wikimedia Commons)
Foto de Thomas Bresson (vía Wikimedia Commons)
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As botas pardas tingem-se com o castanho da lama. Alguns dirigentes da extrema-direita europeia terão pisado mais o campo nas últimas semanas do que no resto das suas vidas. Do Vox à Alternativa para a Alemanha, passando pela União Nacional de Marine Le Pen ou pelos Irmãos de Itália, as formações ultra estão a tentar instrumentalizar a atual onda de protestos dos agricultores. Apesar de promoverem o mesmo modelo económico que gera tanto mal-estar e agitação entre os agricultores: o capitalismo neoliberal.

A quatro meses das próximas eleições europeias, esta raiva do campo parece um presente caído do céu para a extrema-direita, que já tinha o vento a seu favor nas eleições de 9 de junho. Se em 2019 as manifestações climáticas dos jovens tiveram impacto nessas eleições e favoreceram o crescimento dos Verdes no Parlamento Europeu, a atual vaga de protestos de agricultores surge como sintoma de uma mudança de época. É um sinal do efeito de backlash (reação conservadora) que o ecologismo sofre mas também dos limites e inconsistências do neoliberalismo verde.

Alemanha, França, Polónia, Países Baixos, Roménia, Itália… A lista de países onde este tipo de mobilização teve lugar é longa e, desde o início de fevereiro, chegou também a Espanha. A dimensão continental deste protesto é a prova do carácter estrutural dos problemas do sector primário. Os agricultores e criadores de gado europeus estão a sofrer de uma crise capitalista clássica. Por outras palavras, uma crise de crescimento de uma atividade que se desenvolveu e prosperou durante décadas graças à sua modernização e industrialização, mas que estagnou desde o início do século XXI. Está presa a um modelo produtivista que já não cresce e que está a gerar mal-estar entre os agricultores endividados e empobrecidos.

A isto juntam-se as incoerências das políticas agrícolas da União Europeia. Por um lado, o facto de conceder um grande volume de ajudas ao sector, nomeadamente os 41,4 mil milhões da PAC, mas fazê-lo sem critérios de justiça social – em 2020, 0,5% das maiores explorações receberam 16,6% dos fundos, com ajudas individuais superiores a 100 mil euros – nem de justiça climática – são repartidos em função dos hectares, o que incentiva uma agricultura produtivista e poluente. Por outro lado, por ter renunciado à regulação dos preços pagos aos agricultores e suprimido os direitos aduaneiros sobre os alimentos provenientes do exterior da UE, com a assinatura de acordos de comércio livre.

Estes fatores económicos não são a única explicação para o atual mal-estar agrícola – também alimentado por secas, excesso de burocracia, normas ambientais, concorrência “desleal” dos produtos ucranianos… – mas influenciaram a explosão social desta profissão, tão desigual quanto precária. "Queremos viver do nosso trabalho", "Quando chego ao fim do mês, não me resta qualquer rendimento líquido. Vivo graças ao salário da minha mulher"… Testemunhos como estes são comuns entre os agricultores que bloquearam estradas em França.

Grupúsculos ultra infiltram-se nos protestos

Apesar disso, os grandes meios de comunicação social e uma grande parte da classe dirigente impuseram uma interpretação muito mais simplista e parcial: o mundo rural contra a ecologia. Este diagnóstico só tem em conta as últimas gotas que fizeram o copo transbordar – a abolição dos subsídios ao gasóleo rural na Alemanha ou em França ou a redução da dimensão das explorações agrícolas na Bélgica ou nos Países Baixos – e não a dimensão total deste mal-estar. Também serve para não questionar a indústria alimentar e a grande distribuição – um dos alvos preferidos dos agricultores mobilizados – nem os dogmas económicos neoliberais, como a não regulação dos preços ou os acordos de comércio livre. E, de facto, trata-se do mesmo quadro discursivo da extrema-direita.

"A ecologia está a ser sistematicamente levada a cabo em detrimento dos nossos agricultores", declarou Jordan Bardella, o número dois da União Nacional, à TF1. Estávamos a 20 de janeiro e, apenas dois dias depois do início dos primeiros bloqueios de estradas, o cabeça de lista europeia do partido lepenista tentava instrumentalizar os protestos, visitando uma exploração pecuária no sudoeste de França, propriedade de apoiantes do seu partido. Este exercício de comunicação acabou por não lhe acabar bem, pois foi revelado mais tarde que os mesmos agricultores tinham roubado três hectares e 39 fardos de feno no ano passado. Mas inaugurou o desfile preferido dos líderes dos ultras nas últimas semanas: o do campo.

Quer seja tirando a indispensável selfie em cima de um trator ou à base de tweets, os Le Pen, Abascal ou Geert Wilders querem sacar capital eleitoral com a raiva no campo. Além disso, militantes de grupúsculos neo-fascistas participaram em protestos de viticultores em Montpellier, onde proclamaram "mais para os nossos agricultores e menos para os migrantes". No início de janeiro, o ministro alemão da Economia, o verde Robert Habeck, foi bloqueado num ferry, no Norte do país, por uma manifestação de agricultores furiosos, organizada através de um canal conspiratório e xenófobo do Telegram.

A extrema-direita sairá beneficiada?

Mais do que a sua presença nos protestos, o risco da extrema-direita é ideológico e eleitoral. "Desde o início dos anos 2000, a ascensão do lepenismo deve-se à sua capacidade de se estabelecer eleitoralmente nas zonas rurais", explica o historiador Edouard Lynch, especialista em agricultura e professor da Universidade de Lumière-Lyon 2, referindo-se à estratégia de Marine Le Pen de se tornar a porta-voz da "França dos esquecidos". A maioria dos 88 deputados do RN na Assembleia foi eleita em círculos eleitorais rurais nas eleições legislativas de 2022. É o mesmo modelo "ruralista" que o Vox está a tentar implementar em Espanha.

Falar do "campo" não serve apenas para tentar seduzir os agricultores – 30% deles votaram em Le Pen ou Zemmour na primeira volta das eleições presidenciais de 2022, uma percentagem semelhante à média do país – mas também todos os habitantes dos territórios rurais e periurbanos. Estes já tinham estado sobre-representados no final de 2018 na revolta dos coletes amarelos, que também marcou a campanha para as eleições europeias do ano seguinte.

Tirará a extrema-direita proveito eleitoral deste mal-estar no campo? "Custa-me imaginar que isso não vá suceder", admite o politólogo Guillaume Letourneur. No entanto, este especialista da implantação rural da União Nacional ressalva que "isso vai depender da oferta eleitoral nas eleições europeias", na qual o presidente da Federação dos Caçadores, Willy Schraen, vai liderar um novo partido ruralista.

"Talvez seja esta lista a que mais beneficiará com os protestos", diz Letourneur. Este novo partido francês inspira-se no Movimento dos Cidadãos Camponeses, que foi uma surpresa na Holanda e se tornou a principal força nas eleições provinciais de março do ano passado. A candidatura Espanha Esvaziada também pretende surpreender nas eleições de junho.

Demonizar a ecologia sem cair no negacionismo climático

A direita mainstream – da CDU, na Alemanha, ao PP, em Espanha, passando pelo macronismo, em França – segue com inquietação esta evolução do eleitorado rural. Por isso, endureceu o seu discurso contra o ambientalismo. O presidente do Partido Popular Europeu, o alemão Manfred Weber, já no ano passado se tinha oposto claramente ao Green Deal (Pacto Verde) da União Europeia, apesar do pacote de medidas ter sido diluído sob a influência dos grupos de pressão. “O grande problema é o Pacto Verde e a sua visão claramente baseada no decrescimento”, denunciou recentemente o presidente da FNSEA (a principal organização agrícola em França), Arnaud Rousseau, conhecido por possuir mais de 700 hectares de terra.

"Face a cada dificuldade, vocês dedicam-se a apontar o dedo aos agricultores" e a retratá-los "como criminosos, poluidores das nossas terras e torturadores de animais", censurou o primeiro-ministro francês Gabriel Attal uma deputada dos Verdes na Assembleia Nacional. Em vez de falar de "concorrência desleal", de apontar o dedo à grande distribuição ou de pôr em causa a desregulamentação dos preços, o Governo de Emmanuel Macron atribui a culpa deste mal-estar agrícola aos ambientalistas. Sacrificou várias medidas ambientais, como a supressão progressiva dos subsídios ao gasóleo rural ou um plano de redução da utilização de pesticidas, para responder à raiva do campo.

Esta reação representa, sem dúvida, uma vitória ideológica da extrema-direita. Para se distanciar dos discursos céticos em relação ao clima, o lepenismo (e também os ultras de outros países) aborda o debate sobre as alterações climáticas com uma nova estratégia. Coloca-o como um confronto entre o "falso meio-ambiente" punitivo, defendido pelos tecnocratas de Bruxelas e pelos "burgueses" urbanos que votam à esquerda, e o "verdadeiro meio-ambiente" dos agricultores e caçadores. Uma posição puramente retórica e cheia de contradições, mas que também foi adotada por uma parte da direita clássica.

Ainda que a extrema-direita se apresente em Bruxelas como a defensora dos pequenos agricultores, na realidade apoia políticas que alimentam o descontentamento do sector primário. Votou no Parlamento Europeu, no final de 2021, os fundos da PAC, distribuídos sem critérios de justiça social ou climática. Também apoiou recentemente acordos de comércio livre com o Chile e o Quénia. De certa forma, a raiva do mundo rural reflete o paradoxo em que se encontra encurralada a Europa: um continente doente de um neoliberalismo que alimenta o voto na extrema-direita. E, no entanto, a extrema-direita defende o mesmo modelo que está a alimentar o descontentamento.


Enric Bonet é jornalista, correspondente em Paris do El Periódico e CTXT. Texto publicado originalmente pelo CTXT. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.