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O grande inquérito — Resultados preliminares

“Na verdade, o que o Parlamento fez ao longo da última década foi um grande e contínuo inquérito ao poder económico sob a modernização conservadora — e à parcial decomposição desse poder”. Artigo de Mariana Mortágua
Ricardo Salgado na Comissão parlamentar de Inquérito ao BES, 9 de dezembro de 2014 – Foto de Miguel A. Lopes/Lusa
Ricardo Salgado na Comissão parlamentar de Inquérito ao BES, 9 de dezembro de 2014 – Foto de Miguel A. Lopes/Lusa

As detenções de José Berardo e de Luís Filipe Vieira levantaram uma salva de elogios ao Parlamento pelos seus longos inquéritos, tantas vezes criticados como inconsequentes ou até humilhantes para a Assembleia da República, mas agora vistos como o princípio do fim da impunidade de alguns setores do poder económico. É justo reconhecer que, sem esses inquéritos, o trabalho da justiça poderia ter sido (ainda) mais lento e menos completo, até porque estes inquéritos valem pelo seu percurso, que é fator de escrutínio mesmo quando as conclusões e recomendações finais são descafeinadas pelo bloco central.

Quando fechou o inquérito ao BPN, em 2009, João Semedo fez um balanço que era já um vaticínio: “Não é apenas uma história de enganos. É uma história de proteção de banqueiros e do próprio sistema. Quando conhecerem o relatório proposto pelo PS, os portugueses perceberão que ainda não é desta que alguma coisa vai mudar a sério na banca.” Anos mais tarde, o ministro das Finanças que nacionalizou as perdas, Teixeira dos Santos, foi presidir ao banco que comprou o BPN, já limpo, na privatização.

O resultado destes milhares de horas não pode ser compreendido na visão fragmentária de “casos” que ignore o objeto político global. Na verdade, o que o Parlamento fez ao longo da última década foi um grande e contínuo inquérito ao poder económico sob a modernização conservadora — e à parcial decomposição desse poder

As palavras de Semedo eram também premonitórias sobre a teia que haveria de ligar aquele inquérito e os seguintes. O resultado destes milhares de horas não pode ser compreendido na visão fragmentária de “casos” que ignore o objeto político global. Na verdade, o que o Parlamento fez ao longo da última década foi um grande e contínuo inquérito ao poder económico sob a modernização conservadora — e à parcial decomposição desse poder. Além de abrir caminho ao capital estrangeiro, esse processo foi deixando a descoberto muitos dos erros, abusos e crimes dos donos de Portugal.

Descascando a cebola

Ser paulatinamente pilhado por um grupo de antigos notáveis cavaquistas era, afinal, a própria vocação do BPN. Quando, soprado pela crise financeira, tombou finalmente no colo do Estado, o esquema da sua nacionalização ainda permitiu que alguns ratos saltassem do navio levando restos do tesouro. Entretanto, foi conhecida a sua rede offshore e, anos depois, o BPN Cabo Verde ressurgiu no centro do esquema de lavagem de dinheiro usado por Ricardo Salgado, Hélder Bataglia e Álvaro Sobrinho. Contas para uma próxima ronda do grande inquérito. Até à queda do BPN, nunca tinha sido exposta a arrogante negligência dos responsáveis do Banco de Portugal.

Em 2014, é o negócio dos submarinos que vem à tona no Parlamento. Após oito anos de investigação judicial, os crimes já teriam prescrito. E não foi fácil impor o inquérito à maioria. Na pressa de tirar o tema de agenda, PSD e CDS forçaram audições a mata-cavalos, 50 em 30 dias. No fecho dos trabalhos, os depoimentos não estavam sequer transcritos e muitos documentos não tinham chegado ao Parlamento. Ainda assim, tudo quanto emergiu na comissão veio a ser confirmado pela investigação judicial: ilegalidades administrativas que podiam ter levado à nulidade do contrato; alteração opaca dos termos da adjudicação, pela mão do ministro Paulo Portas, que também chamou o BES para financiar a compra e concedeu diretamente a Salgado um aumento da taxa de juro cobrada pelo banco.

Todavia, os registos destes factos foram perdidos: tal como a documentação que sumiu dos arquivos do Ministério da Defesa, ficou por conhecer o destino final de três dos 30 milhões de euros cobrados pela Escom aos vendedores (os restantes 27 milhões foram repartidos irmãmente pelos Espírito Santo; Luís Horta e Costa relataria mais tarde como se evitaram os impostos). Tudo demonstrado e tudo arquivado: enquanto na Alemanha os gestores da Ferrostaal foram condenados por corrupção ativa, em Portugal o sujeito passivo escapava por entre offshores e documentos oficiais roubados, sem nome mas com o dinheiro.

A mãe de todas as comissões de inquérito

Ainda nesse ano de 2014, ruiu o BES. A procissão judicial ainda hoje vai no adro, mas foi então que o país conheceu o segredo do império Espírito Santo, protegido por Salazar e reerguido pelo bloco central em democracia. Salgado surgiu como um mastermind da manipulação, enquanto várias gerações de gestores — uns vindos de alta escola, outros de boas famílias e outros lá do bas-fond — desfilavam, à vez, na sua incompetente subserviência. A adulteração dos livros do GES é explicada pelo próprio contabilista do grupo; a cleptocracia angolana é exposta no desfalque do BESA; conhecem-se as prendas do construtor José Guilherme para Salgado e o papel da Ongoing na guerra dos tronos. Entre os corpos jaz o de um gigante, a Portugal Telecom. Mas já só resta identificar os “assassinos” e o que desapareceu da caixa. Conta-se as voltas da porta giratória com os governos. O ministro-avençado, Manuel Pinho, é o seu símbolo e será a estrela de outra ronda do grande inquérito.

Dos banqueiros aos devedores, o inquérito à CGD, em 2019, revelou as consequências do triângulo Caixa-BCP-BES. Este inquérito teria sido desnecessário para se conhecer o assalto ao BCP, mas foi aqui que José Berardo revelou o truque com que colocou a coleção de arte a salvo dos credores. Entre fanfarronice e faltas de memória, desfilaram os negócios megalómanos que o Estado patrocinou: construção e imobiliário, bolsa e privatizações. Os governos quiseram e o banco público foi mesmo gerido em respeito pelos piores hábitos da banca privada: empréstimos de favor, jogos de poder, promiscuidade política e, de novo, negligência do Banco de Portugal. Constâncio dizia-se mais ocupado com a política monetária (que Portugal já nem controlava) e Carlos Costa fez “o que podia”. Um vice-governador, Pedro Duarte Neves, com o pelouro da Supervisão, teve um papel-chave na política do Banco de Portugal. Mas isso só ficará claro mais tarde, quando, depois de vários anos a tentar, finalmente o Parlamento (numa comissão com poderes reforçados) puser as mãos no “relatório Costa Pinto”.

Quando dois antigos quadros do BES — o socialista Manuel Pinho e um ex-ministro de Santana Lopes, António Mexia — foram constituídos arguidos, em 2017, o Parlamento avançou finalmente para o escrutínio das rendas excessivas na eletricidade — tão velhas como a privatização da EDP, mas fortemente aditivadas pelos Governos Sócrates, dez anos depois. Pelo meio, o governo da troika pouco fez, além de afastar um secretário de Estado da Energia, Henrique Gomes, por levar demasiado a sério o objetivo de cortar rendas excessivas. O inquérito parlamentar juntou dados novos, em particular sobre o negócio da extensão da concessão das barragens a favor da EDP, em 2007, e sobre a atuação do gabinete de Pinho, do adjunto Rui Cartaxo (depois presidente da REN) e do superassessor para a energia, João Conceição (afinal um homem da EDP, cujos honorários no ministério eram garantidos por Mexia e Manso Neto).

No final, o relatório, escrito pelo bloquista Jorge Costa, fez um mapa do mau governo da energia, dos queixumes inconsequentes da entidade reguladora e dos inexpugnáveis mecanismos pelos quais as elétricas, ao longo de décadas, vêm extorquindo à população milhares de milhões de euros. Os deputados socialistas aprovaram o documento, mas o Governo logo veio excluir qualquer intenção de cumprir as recomendações aprovadas. Só numa parte do relatório é que o PS não pôde arriscar esta manobra dúplice e juntou-se mesmo ao PSD para garantir o chumbo do texto: foi no capítulo sobre o negócio das barragens — precisamente o centro da investigação judicial contra Pinho e Mexia.

Esse capítulo chumbado voltou à baila recentemente: a avaliação feita em 2007 por Manuel Pinho a favor da EDP foi a referência usada em 2020 pelo ministro Matos Fernandes para autorizar a venda das barragens da EDP sem qualquer contrapartida para o Estado concedente. Desta feita, o Governo teve de responder primeiro no Parlamento. Semanas depois, o Ministério Público abria uma investigação ao negócio.

Na comissão de Inquérito ao Novo Banco, em 2021, confirmaram-se as clamorosas falhas da supervisão do Banco de Portugal no BES. Percebeu-se então por que ficou o “relatório Costa Pinto” tantos anos trancado na gaveta de Carlos Costa e Mário Centeno. Vários peixes graúdos foram apanhados pela boca: Nuno Vasconcellos disparatou via Zoom até ser desligado e deixa-se ficar pelo Brasil. Moniz da Maia, financiado por Salgado para o assalto ao BCP, admitiu manter fundações em paraísos offshore. Luís Filipe Vieira alongou-se sobre os serviços prestados a Salgado. À vista foi ficando o método do calote e da ocultação de património: Moniz da Maia diluiu a posição do Novo Banco nas suas empresas; Vieira recomprou dívidas suas, em saldos, através do amigo “Rei dos Frangos”; Vasconcellos transferiu ativos para o Brasil. O Governo e a arbitrariedade das instituições europeias entregaram o Novo Banco à grande finança internacional, mas um inquérito inteiro não bastou para que o país conhecesse a propriedade da Lone Star. Do abutre só se sabe que chegou para desbaratar: os ganhos são seus, as perdas são do Estado.

Abrir as zonas vedadas do debate político

Uma dúzia de anos depois do seu início, o grande inquérito faz a história dos anos dourados, dos dividendos colossais, das privatizações e das comendas e conta-a a partir das suas ruínas económicas, políticas e, claro, sociais. Não se trata de nódoas caídas em pano bom, nem sequer de uma tribo ou de uma geração malfadada. Trata-se da essência de um regime económico que integra a acumulação de capital por apropriação, seja de rendas garantidas ou de fundos públicos (através da transferência de passivos para os contribuintes). O grande inquérito obriga, sim, a mudar a organização económica do país. Arrisco-me a apontar três zonas vedadas da política que é preciso reabrir.

Arrisco-me a apontar três zonas vedadas da política que é preciso reabrir

1. Como vimos, a propriedade estatal de uma instituição financeira (como, em geral, de bens estratégicos) não é condição suficiente para garantir a sua mobilização a favor de estratégias de desenvolvimento social, nem sequer para impedir a sua instrumentalização ilegítima por interesses particulares. Em contrapartida, a propriedade privada destas empresas deixa-as amplamente desobrigadas de qualquer critério de interesse geral. Ao concentrarem a maior capacidade económica e técnica dos respetivos setores, elas exercem grande condicionamento das entidades regulatórias públicas. Em mãos privadas, convertem-se em sistemas de permanente transferência social de rendimentos, isto quando não são destruídas pelas dinâmicas particulares de determinado grupo. Por toda a Europa e não só, é possível encontrar elementos de balanço semelhantes. Em Portugal, o grande inquérito aqui tratado torna definitiva a conclusão de que a privatização destes setores estratégicos foi um erro. A correção desse erro deve ter em conta os permanentes riscos de clientelismo e ineficiência, já experimentados no passado. Cabe impor formas qualificadas de propriedade pública, com mecanismos de controlo e transparência que incluam organizações da sociedade civil e partes interessadas.

2. Quando o sistema financeiro foi liberalizado e os instrumentos de política industrial foram desmantelados, o Estado colocou nas mãos da banca a mais determinante das escolhas: para onde dirigir o crédito. Sem a imposição de critérios de interesse geral, prevaleceu o argumento da rentabilidade de curto prazo oferecida pelo imobiliário, pela construção, pela bolsa e pelas rendas. Substituiu-se prudência por desbarato. O resultado é uma economia não só endividada mas estruturalmente desequilibrada. De facto, há uma razão para a maior parte dos países europeus ter instituído mecanismos de controlo e direção de crédito depois da Segunda Guerra Mundial. Mas o que então se compreendeu, é hoje maldito: deixadas à lógica da acumulação, as poderosas forças do crédito não são uma mola para o desenvolvimento económico e para o emprego, mas sim um perigo para a sociedade.

3. “Mas não é ilegal?” Grande parte das proezas narradas ao longo do grande inquérito não é ilegal. São manobras de um jogo viciado, em que os interesses de uma elite se apresentam como um desígnio público, uma espécie de eterna promessa de democratização da prosperidade. As teias de offshores, designação em que incluo o Luxemburgo ou Malta, em que todas as comissões de inquérito ou investigações judiciais se enredaram, não servem o investimento ou a eficiente alocação de capitais. Existem exclusivamente para facilitar a apropriação e afastar o fisco e a justiça, objetivo, aliás, igualmente servido pela santificação do segredo bancário onshore.

Uma dúzia de anos depois do seu início, o grande inquérito faz a história dos anos dourados, dos dividendos colossais, das privatizações e das comendas e conta-a a partir das suas ruínas económicas, políticas e, claro, sociais

A transparência é a melhor arma contra o abuso. Mas a eficácia dos mecanismos de troca de informações é questionável, sobretudo porque o seu efeito secundário é a legitimação do recurso a práticas e jurisdições offshore. É preciso ir mais longe. Portugal não pode impor o fim de todos os offshores, mas a suposta impotência nesta matéria está mais para desculpa que para inevitabilidade: os governos deste país sempre protegeram a Zona Franca da Madeira, os regimes dos “vistos gold" ou do residente não habitual. É possível ao Estado criar barreiras no acesso a territórios offshores, mas para isso tem de reconhecê-los como tal, acabando com a hipocrisia que mantém tudo como dantes. Da mesma forma, há muito por fazer nas obrigações de divulgação pública de informação, quer por parte dos bancos como das grandes empresas. Basta ver como foi permitido a grupos como o Espírito Santo nunca revelarem publicamente as suas estruturas offshore.

A elite portuguesa está em recomposição, com a notória entrada de novas formações internacionais, sobretudo grandes fundos de investimento, que integram o que hoje é conhecido por banca sombra. Os métodos transformaram-se com os tempos, mas as vontades não. Nada do que é essencial mudou na banca e na organização do poder económico. Por isso, o grande inquérito não acabou.

Artigo publicado no jornal “Público”, em P2, a 25 de julho de 2021

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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