O Bolchevique

21 de janeiro 2024 - 10:19

No centenário da morte de Lenine, recarregar o seu legado implica näo ceder nos princípios mas recuperar a capacidade de inovar que o próprio Lenine teve face à teoria marxista. Por Luís Fazenda.

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Lenine
Lenine.
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Passam cem anos sobre o desaparecimento de Lenine, político russo que marcou o marxismo revolucionário e figura central da Revolução de Outubro de 1917, a primeira revolução socialista triunfante. De seu nome Vladimir Ilyich Ulianov, nascido em 1870, adotou Lenine como nome de combate. entre a clandestinidade, o exílio da Rússia czarista e a legalidade revolucionária. Lenine é uma das pessoas mais biografadas da história universal e toda a historiografia da Revolução dos Sovietes desenha a luminosidade do principal fundador da URSS. Cabe aqui pontuar alguns dos aspetos mais salientes da sua análise teórica.

A teoria do imperialismo é a pedra de toque do enfoque leninista e a partir da qual desenvolveu outros conceitos teóricos marcantes. Do estudo do sistema capitalista na viragem do século XIX para o século passado, recolhendo informação económica vária e contributos de alguns autores, Lenine conclui que a fase da concorrência estava ultrapassada. O capitalismo concorrencial tinha dado lugar, através da concentração da propriedade das empresas, a monopólios nos países capitalistas avançados. Os monopólios da Inglaterra, da França ou da Alemanha tomaram para si os estados respetivos, criando o capitalismo monopolista de estado. Estes estados empenharam-se na divisão do mundo para possuir colónias e semi colónias, onde pilhavam matérias-primas e para onde exportavam capitais em nome e proveito dos seus monopólios. Essa análise permitiu a Lenine concluir que o imperialismo seria o estádio supremo da capitalismo. O imperialismo moderno distinguia-se assim do imperialismo atrasado, como ele qualificava a Rússia ou a China, imperialismos assentes em força militar e matérias-primas.

Desta análise sai a ideia de que os monopólios antecipavam o socialismo na medida em que operam uma socialização da produção sem precedentes, recorriam a mecanismos de planificação e elevam a oferta, tudo fatores a que faltaria a nacionalização para o objetivo socialista. Por isso, Lenine fala do "capitalismo em decomposição".

Da teoria do imperialismo emerge também a ideia de que o capitalismo organiza-se em redes por todo o mundo e ele é prevalecente em países avançados e atrasados economicamente, mesmo com formas diferentes e estruturas de classes bem mais heterogéneas do que a contradição entre o proletariado e a burguesia. Nessas condições, a revolução poderia ocorrer num elo fraco da cadeia imperialista e não necessariamente num país capitalista avançado.

Nesse entendimento, cabia ao proletariado, sobretudo nos países onde era minoritário, ganhar alianças sociais com camponeses e outras camadas de pequenos proprietários, alianças essas dirigidas pelo proletariado, tendencialmente através do seu partido. A "hegemonia do proletariado" resumia essa política. Esta mesma ideia atravessa a conceção de que o poder do proletariado, derrubada a burguesia imperialista ou os seus títeres, consistia numa aliança de classes dirigida pela classe que não tinha nada a perder com o fim do capitalismo.

Lenine considerava que os superlucros provindos da exploração imperialista permitiam aos monopólios dispensar algum rendimento extra a setores operários que eram aliciados para apoiar os seus governos nas rivalidades e conflitos entre imperialismos. Essa "aristocracia operária" deu base ao oportunismo dos partidos social-democratas que na 1ª Guerra Mundial alinharam nas guerras pelo seu "próprio" imperialismo. A guerra era, então, a solução para uma nova repartição do mapa do mundo e das zonas de influência de cada Potência, devido ao desenvolvimento desigual de cada uma delas, sendo os pretextos da guerra mera demagogia nacionalista.

Esse oportunismo de conciliação de classes, nos partidos social-democratas, tinha levado ao predomínio do grupo parlamentar sobre o coletivo partidário. Lenine defendeu a criação de um partido de "tipo novo": um partido dotado de centralismo democrático, onde todos cumprem as decisões do comité central, sejam deputados, jornalistas, militantes operários. Esse Partido assentava na ideia de que o essencial do seu corpo devia ser constituído por revolucionários profissionais, oriundos da classe operária para que tivessem condições para se formar teoricamente e oriundos da intelectualidade pequeno-burguesa para que aprendessem a disciplina coletiva da classe. Lenine visava uma forma prática de fusão entre o socialismo e a prática revolucionária, sem descuidar as normas relativas à existência clandestina do Partido face à repressão burguesa.

Com a estratégia assente na confrontação com o imperialismo, procurando alianças sociais vastas, lançando mão de um partido revolucionário, Lenine olhava a tática do Partido como um fenómeno do quotidiano. Quem ler a sua obra verifica que Lenine escreveu milhares de páginas sobre o dia a dia em períodos mais intensos da luta de classes, embora menos em outros períodos, mas sempre com assinalável produção de opinião. Toda a tática pode mudar em 24 horas, advertia ele, a materialização da política nas palavras de ordem, nas formas de luta e organização popular, na agitação e propaganda servindo a ação política e a transformação social. A firmeza e a flexibilidade e a dialética entre elas identificam a tática leninista e serviu de manual a toda a tradição política comunista. Muitos dos discípulos afastaram-se dessas premissas mas a riqueza da interpretação política da luta de classes e das respostas em cada hiato de tempo são ainda hoje um manancial de ensinamentos, não só de um marxista lúcido mas de alguém que cultivou a dialética marxista a picos nunca antes escalados.

Em que pensava Lenine?

23 de abril 2017

Em muitos anos, Lenine já tinha defendido a possibilidade e a necessidade de transformar uma revolução democrática numa revolução socialista. A chave seria, como vimos, a hegemonia do proletariado. No caso da Rússia, toda a literatura da sua autoria desde a revolução democrática de Fevereiro de 17 até à revolução socialista de Outubro (7 de Novembro, pelo calendário ocidental), é a expressão da aventura mais importante na história de classes da humanidade. A Revolução Socialista perdeu-se adiante, bem como outras revoluções degeneraram. Mas Outubro foi a boa nova da "expropriação dos expropriadores". Nesse intervalo de meses, o Partido tomou o nome de Comunista para não se confundir com os partidos social-democratas, cúmplices da guerra imperialista.

A revolução bolchevique correu mundo e trouxe a esperança para o magma político dos oprimidos. Bolchevique era uma expressão neutra que queria apenas dizer maioritário no vocabulário russo, por referência a menchevique/minoritário, divisão em determinado momento do Partido Operário Social-Democrata Russo. É impressionante como uma expressão neutra se tornou uma bandeira de classe para gerações e gerações de combatentes do socialismo.

Não se abdica deste legado. Essa desistência não corresponderia nem ao conhecimento, nem à razão da luta de classes, e seria uma perda para aqueles que buscam uma sociedade sem classes.

Hoje mantemos a divisória com o imperialismo, inimigo dos povos, em especial o imperialismo americano e todos os seus satélites. Combatemos o imperialismo mesmo que se possa entender que o funcionamento do imperialismo tenha alterações significativas da realidade analisada por Lenine. Alterações provindas da emergência de empresas transnacionais superando monopólios, e da formação de conglomerados de estados, agrupando vários imperialismos. As condições de fusão do capital financeiro nos mercados globais e o risco da destruição do modo de produção capitalista pelo conflito nuclear levam a uma competição interimperialista mais controlada, mesmo que indeterminada.  As alterações climáticas criam aqui limites ao modo de produção que vão internalizar novas contradições no sistema imperialista global, com um agravamento do desenvolvimento desigual. Os elos fracos deste poder podem originar um novo ciclo revolucionário.   

Hoje mantemos a raiz de um partido de classe. Mesmo que o seu funcionamento se possa distanciar das 21 condições da Internacional Comunista, escritas pelo punho de Lenine. Regras que ele próprio admitiu serem demasiado próximas da disciplina militar e que compreendia uma maior flexibilidade num corpo revolucionário. As condições de ilegalidade ou de extensos regimes democráticos burgueses são bem diferentes em termos de sacrifício da vida pessoal e da rigidez da disciplina, ou até da liberdade de expressão. Por outro lado, o Partido forma-se atualmente com recurso a trabalhadores e jovens formados sem precisarem de ser profissionais para terem uma instrução literária e teórica e o revolucionário profissional, sempre um compromisso corajoso, tem de conviver com a democracia aberta no partido. Claro que o Partido, sob a repressão ou num auge revolucionário, deve proteger a sua vida interna e ganhar a sombra nas massas, num centralismo interno de legítima defesa. A forma partido é adaptável e não imutável, como aliás, podemos recolher da experiência do próprio Lenine no POSDR e no Partido Bolchevique.   

Hoje, como nunca, valorizamos a relação entre a revolução democrática e a revolução socialista. A revolução democrática coloca-se na atualidade para derrotar regimes reacionários do capitalismo, não mais para concluir a revolução burguesa e eliminar os restos do feudalismo, como ocorrera na Rússia. Lenine já tinha entrevisto essa hipótese em Itália, quando se aproximava a onda que trouxe  Mussolini, e até nos Estados Unidos. Aliás, essa foi a determinação da luta contra os fascismos no século XX. Com toda a vitalidade presente, a ligação entre processos democráticos radicais contra as oligarquias e o imperialismo, podem alargar as alianças sociais  de uma  maioria que reverta o desequilibrio de forças e abra caminho a governos socialistas.

Necessariamente, a obra escita de Lenine cobre outros aspetos sobre filosofia, ciência, religião, sindicatos, cultura, história do socialismo, que têm a marca de rigor crítico e comprometido. Quer por dureza do seu percurso, quer por postulado político, Lenine foi impiedoso com todos os centristas, todos os que ficavam a meio da ponte. Nesse contexto, sinalizar o oportunismo político auxilia a ampliação de um espaço político independente.

Recarregar o legado de Lenine implica näo ceder nos princípios mas recuperar a capacidade de inovar que o próprio Lenine teve face à teoria marxista. Ele próprio escarnecia dos marxistas "oficiais", como Kautsky. Não vale a pena indagar pelos leninistas "oficiais". Que diria Lenine se uma das potências imperialistas fosse dirigida por um partido único (que Lenine não defendeu), dito comunista, e em cujo comité central se encontram alguns dos mais ricos do mundo?

A farsa prenuncia que o socialismo se fará no seu contraste. Mais uma vez, tempos desafiantes. No centenário do Bolchevique que alarmou a burguesia mundial.