As ilusões sobre a política israelita que na prática vinha boicotando a possibilidade da existência de dois estados (Israel e Palestina), estão a ser barbaramente destruídas com recurso a genocídio, perante a indiferença da comunidade internacional. E sobretudo das potências imperialistas como EUA, que ameaçam reduzir fornecimento de armas a Israel a troco de facilitar ajuda alimentar ao povo palestiniano que vai escapando às bombas cercado pela política hedionda dos seus opressores tão bem retratados no livro da jornalista israelita, Amira Hass, no seu livro “Beber o Mar em Gaza” editado em 1995. O prefácio à edição portuguesa dez anos depois, em 2005, mostra-nos a sua atualidade quase 20 anos depois desta edição, um ano depois da guerra que se propõe esmagar as pretensões do povo palestiniano, a que o ocidente está rendido em nome do direito de Israel à sua defesa, mesmo através de métodos que nem o Mar os palestinianos podem beber em Gaza.
O longo acumular de “revoltas sem estratégia por parte dos palestinianos” face ao avanço de colonatos israelitas e sua repressão militar, espartilhando e reduzindo o território palestiniano a meramente simbólico. Acabou por desembocar no dia 7 de outubro de 2023, numa ofensiva do Hamas sobre Israel que representou uma pesada humilhação aos dirigentes israelitas cujo governo liderado por Benjamin Netanyahu, apoiado por uma coligação com partidos religiosos ultranacionalistas e da direita radical, que ainda não explicaram a facilidade de tais atos igualmente terroristas num país que não facilita na segurança.
Foi assim, com pretexto de responder ao terrorismo do Hamas, que se escancarou as portas para a guerra mais duradoura de todas as que Israel travou contra o Hamas em Gaza, bem como uma das mais longas desde o seu nascimento como Estado. Sem fim à vista, esta guerra que já matou mais de 40 mil pessoas, espalha-se por várias outras fronteiras, como o Líbano. Ofensiva inserida na campanha que se propõe atingir, “vitória total”. Um objetivo que analistas militares israelitas reconhecem não ser alcançável, como o próprio antigo primeiro-ministro Ehud Olmet.
À fúria israelita não escapa o contingente de Paz da ONU, vergonhosamente alvo de ataque militar das tropas e tanques de Israel, numa intimidatória provocação do governo fascista e ocupante de Benjamin Netanyahu. Humilhação às Nações Unidas também facilitada pela indiferença da comunidade internacional com capacidade, nomeadamente de embargo de armas, para travar tal rumo de impunidade de Israel, que, como começa por escrever Amira Hass no referido prefácio à edição portuguesa, “a política israelita não é compatível com a paz”.
Para além do tema do livro “Beber o Mar em Gaza”, que a autora que vivia então no enclave palestiniano de Gaza, nos remete para o cenário catastrófico e desumano vivido de forma ainda mais horrorosa pelo povo palestiniano, obrigado a fugir ou a esperar pela morte à bala ou à fome, com mulheres, velhos e crianças como as principais vítimas. Este prefácio à edição portuguesa desperta-nos não só para a atualidade da obra, mas também para uma mais acessível compreensão do conflito, ou, como se lê na contracapa do livro publicado pela Caminho, “é um livro de claridade dolorosa, que lança uma luz crua sobre a realidade por trás dos discursos oficiais sobre a «retirada israelita» e o «processo de paz»”.
Livro “Beber o Mar em Gaza” de Amira Hass
Prefácio à edição portuguesa
“Quando assinei o contrato para este livro, em 1995, recomendaram-me que me apressasse a terminá-lo, porque a paz estava iminente e poderia tornar o livro obsoleto. Eu respondi: «Não se preocupem, a política israelita não é compatível com a paz.» Infelizmente, veio a verificar-se que eu tinha razão. E aqui estamos nós, dez anos depois, com uma tradução portuguesa deste livro.
Dez anos depois não estamos mais perto, estamos talvez mais longe da paz entre Israel e os palestinianos. Em vez de aprenderem a lição de há dez anos, e de desconfiarem das promessas sobre «a dinâmica da paz» após a aplicação do plano de Ariel Sharon de retirada unilateral de Gaza, as pessoas voltam a deixar-se levar pela ilusão de um progresso inevitável. Entre elas contam-se os políticos, os estadistas e a opinião pública da Europa. É isso que faz com que a minha introdução esteja perpassada de «política atual».
De acordo com este plano, uns 8000 colonos judeus na Faixa de Gaza serão finalmente repatriados este Verão e o exército israelita será recolocado em torno da Faixa de Gaza, em vez de no seu interior. O exército israelita continuará a controlar todo o acesso por terra, mas e ar, e os palestinianos que vivem na Faixa de Gaza continuarão a estar separados do seu povo na Cisjordânia. Um enclave separado e desligado, à mercê da política israelita e das intervenções caritativas do mundo.
Não me compreendam mal: o repatriamento de alguns milhares de colonos, que nunca lá deviam ter estado, deve ser saudado. Os capítulos seguintes, escritos há dez anos, explicarão porquê. Mas as aspirações nacionais palestinianas não se limitavam a remover alguns checkpoints militares e a ter acesso à praia – coisas que a recolocação israelita promete fazer. Os palestinianos têm lutado pela independência, pela liberdade de escolha, pelo desenvolvimento do seu futuro sem a dominação e sem aparelho de controlo israelita. No terreno tudo aponta para o facto de que Israel está a aperfeiçoar os seus mecanismos de dominação sobre a futura entidade palestiniana.
Por trás da cortina de fumo das declarações sobre progresso e «retirada», assiste-se a uma escalada da colonização israelita da Cisjordânia e também da sua fragmentação territorial. No decurso dos últimos cinco anos, os colonatos israelitas e uma rede de estradas de alta qualidade só para judeus despedaçaram a Cisjordânia em diversos enclaves palestinianos separados e frouxamente ligados. E é este o plano para o futuro Estado palestiniano: um conjunto de enclaves cujo tamanho e interligação ainda dependem de negociações futuras. Isto viola diretamente as resoluções internacionais, segundo as quais a Faixa de Gaza e a Cisjordânia no seu conjunto deveriam fazer parte de uma entidade única e formar juntas um futuro Estado palestiniano.
Um erro comum é ver a insurreição que eclodiu em Setembro de 2000 e a sua repressão militar como um hiato no caminho de negociações pacíficas conhecidas por «Acordos de Oslo». Na realidade, o ataque militar israelita sem precedentes dos últimos cinco anos contra toda a população palestiniana dos territórios ocupados em 1967 foi Oslo por meios diferentes.
O caminho de Oslo provou ser um esforço israelita permanente para criar uma liderança palestiniana submissa. Uma liderança que se resigne a uma solução tão afastada quando possível das resoluções internacionais. Quando os palestinianos rejeitaram claramente esta tentativa, em Setembro de 2000, Israel respondeu com uma ofensiva militar em grande escala – a que eu me refiro no meu epílogo à edição francesa.
Seria necessário um livro inteiro para descrever a devastação que Israel descarregou sobre a sociedade palestiniana durante os últimos cinco anos. Seria necessário um outro para abordar as falhas da resistência palestiniana. Falhou, não só devido ao poderio e à superioridade militar de Israel mas também devido à ausência de uma estratégia clara e unida, devido ao culto das armas e explosivos e ao culto da vingança que dominou a resposta palestiniana.
Os meus amigos de Gaza – que conhecereis ao longo destas páginas – viveram durante este período a época mais difícil das suas vidas. Eles emergem desta época – de bombardeamentos aéreos e de artilharia, de funerais diários de parentes e amigos e vizinhos, de ferimentos, de arrasamentos e demolições de casas, etc. – sem esperança num futuro digno. As formas actuais de dominação política, social e económica de Israel continuarão a estrangulá-los, e garantirão recorrentes explosões de raiva e revoltas sem estratégia por parte dos palestinianos, e ofensivas militares por parte dos israelitas.
Quem me dera que se venham a verificar que não tenho razão.”
Ramallah, Junho de 2005