Israel

A não tão secreta história do apoio de Netanyahu ao Hamas

24 de novembro 2024 - 10:13

Desde sabotar Oslo até canalizar dinheiro do Qatar para Gaza, Bibi passou a sua carreira a apoiar o Hamas para ajudar a perpetuar o conflito. Mesmo depois de 7 de outubro, argumenta o historiador Adam Raz, continua a seguir a mesma estratégia.

por

Ghousoon Bisharat

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Netanyahu no Knesset.
Netanyahu no Knesset. Foto de Abir Sultan/EPA/Lusa.

Quando o historiador israelita e ativista dos direitos humanos Adam Raz se propôs a escrever "The Road to October 7: Benjamin Netanyahu, the Production of the Endless Conflict and Israel's Moral Degradation", sabia que estava a abordar um ponto cego no discurso público israelita. A grande maioria dos israelitas, acredita Raz, não consegue compreender toda a extensão do envolvimento de Netanyahu no apoio ao Hamas antes da guerra atual e na perpetuação de um estado de conflito interminável.

O livro de Raz, publicado em maio deste ano, lança luz sobre uma política controversa, segundo a qual os governos de Netanyahu, durante anos, aprovaram e encorajaram a transferência de fundos do Qatar para Gaza, para apoiar o Hamas. Embora note que os meios de comunicação social israelitas dedicaram mais atenção a esta política após o 7 de outubro, Raz disse ao +972 que se trata "apenas de uma parte do quadro mais vasto", que está enraizado na oposição mais ampla de Netanyahu a uma resolução justa do conflito. "As pessoas precisam de compreender o alcance total da estratégia de Netanyahu", disse.

De acordo com Raz, a prioridade de Netanyahu não é manter a segurança de Israel, mas impedir qualquer hipótese real de resolver o conflito israelo-palestiniano através da divisão de terras, do fim da ocupação ou de uma solução de dois Estados. Manter o fluxo de dinheiro para o Hamas serviu este objetivo, garantindo que o movimento nacional palestiniano permanecesse dividido entre o Hamas em Gaza e a Autoridade Palestiniana (AP) controlada pela Fatah na Cisjordânia, permitindo assim que Israel mantivesse o seu domínio sobre todo o território. Mesmo após os acontecimentos devastadores de 7 de outubro, Raz avisa que o manual de Netanyahu permanece inalterado.

Este livro não é uma lição de história sobre o conflito, sublinha Raz, mas sim uma exploração crítica de uma aliança política que continua a degradar o tecido moral de Israel. "Eu não escrevi este livro, eu gritei-o nas páginas", afirma.

Falei com Raz sobre a longa história da relação simbiótica de Netanyahu com o Hamas e o seu líder recentemente assassinado, Yahya Sinwar; por que razão a guerra atual representa uma continuação, e não uma rutura, da estratégia do primeiro-ministro em relação aos palestinianos no seu conjunto; e por que razão, mesmo após mais de um ano de guerra e a morte de Sinwar, para Netanyahu pouco mudou. A entrevista foi editada por razões de extensão e clareza.

 

Ao ler o seu livro, não pude deixar de sentir que está um pouco obcecado com Netanyahu - que não há elites políticas e de segurança em Israel, nem interesses de segurança nacional, nem opinião pública, nem meios de comunicação social. Escreve como se tudo fosse apenas a terra de Bibi. Como palestiniana, isto parece-me ser uma forma de retirar a culpa a outros decisores e à sociedade israelita em geral e colocá-la exclusivamente em Netanyahu.

Este é um livro sobre Netanyahu. Não me propus escrever a história da ocupação sob Netanyahu, a história do Hamas, ou a colisão entre os dois movimentos nacionais. É a história da relação entre Netanyahu e Sinwar. Estou a tentar compreender as motivações dos dois actores mais importantes deste jogo, que têm mantido as suas sociedades em suspenso.

Israel é a Bibilândia. O que quer que esteja em jogo em Israel, quer se trate dos palestinianos, do acordo nuclear com o Irão ou de qualquer outra questão de política externa, está tudo nas mãos de Netanyahu. No meu livro, pode-se ler como isto aconteceu e como Bibi mudou a política israelita. É verdade que o establishment da segurança era contra a política de Netanyahu em relação ao Hamas, mas em todas as encruzilhadas cruciais em que se confrontou com eles, Netanyahu ganhou.

 

Um dos argumentos centrais do seu livro é que a oposição de Netanyahu a um Estado palestiniano é o principal pilar da sua política em relação aos palestinianos. Como é que esta política moldou a sua relação com o Hamas, desde os anos 90?

Netanyahu é o principal opositor de uma solução de dois Estados. Em termos gerais, a Fatah e a OLP são a favor desta solução, enquanto o Hamas é contra, o que significa que, neste ponto crucial, os interesses de Netanyahu e do Hamas estão alinhados. Assim, desde 1996 [quando foi eleito primeiro-ministro], e especialmente desde o seu segundo mandato, a partir de 2009, Netanyahu tem trabalhado arduamente para fortalecer o Hamas.

Desde a assinatura inicial dos Acordos de Oslo em 1993 até ao assassinato do Primeiro-Ministro Yitzhak Rabin em 1995 [por um israelita que se opunha ao processo de paz], a OLP e Israel trabalharam em conjunto contra a influência do fundamentalismo judaico e islâmico. Houve uma espécie de acordo informal para não se construírem novos colonatos na Cisjordânia e para se definir onde se poderiam expandir os colonatos já existentes. Isto marcou uma mudança em relação ao governo [de Yitzhak] Shamir [que antecedeu Rabin], que supervisionou a construção de cerca de 7.000 unidades habitacionais [de colonatos] por ano.

Uma das primeiras coisas que Netanyahu fez como primeiro-ministro [em 1996] foi aprovar a construção do bairro de Har Homa, em Jerusalém Oriental. Durante o seu primeiro mandato, foram construídos 24 novos colonatos nos territórios ocupados. É claro que, durante o governo de Rabin, os israelitas continuaram a expandir os colonatos, mas isso era algo com que os negociadores palestinianos sentiam que podiam viver.

A segunda coisa importante que Netanyahu fez foi abrir os túneis do Muro das Lamentações na Cidade Velha de Jerusalém, desencadeando os primeiros confrontos violentos entre palestinianos e o exército israelita desde o início do processo de Oslo. Esta questão tinha sido discutida durante o governo de Rabin, que planeava abrir os túneis em coordenação com o Waqf muçulmano e os jordanos em troca do controlo do Waqf sobre os Estábulos de Salomão [uma área do complexo de Al-Aqsa]. No entanto, Netanyahu optou por ignorar estas recomendações e efetuar alterações unilaterais num dos locais mais sensíveis e sagrados para as três religiões abraâmicas.
Era evidente que isso conduziria a uma crise - e foi exatamente isso que aconteceu. Netanyahu decidiu abrir os túneis por sua própria iniciativa, sem informar o Governo ou o sistema de segurança. O pessoal militar e de segurança de topo ouviu falar disso na rádio. Os protestos que se seguiram à abertura dos túneis, em Jerusalém Oriental, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, resultaram na morte de 59 palestinianos e 16 israelitas.

A terceira coisa importante que Netanyahu fez, que também foi contra o conselho do establishment de segurança, foi retirar o pedido de extradição de Israel do chefe do gabinete político do Hamas, Mousa Abu Marzouq [o líder da ala radical do movimento na altura, que defendia a continuação da resistência armada, e a figura mais importante do Hamas fora de Gaza]. Este pedido tinha sido aprovado por Rabin depois de Abu Marzouq ter sido preso nos Estados Unidos em 1995. A decisão de Netanyahu de o retirar [e, portanto, de evitar que Abu Marzouq fosse julgado em Israel] ocorreu numa altura em que muitos líderes do Hamas, incluindo o fundador do movimento, o xeque Ahmed Yassin, se encontravam nas prisões israelitas e em que se travava um debate interno sobre a forma correta de prosseguir a luta.

Estes três acontecimentos fortaleceram o Hamas e as pessoas que queriam ver o conflito como um conflito religioso.

 

No seu livro, menciona várias ocasiões em que Netanyahu expressou publicamente o seu apoio a algum tipo de Estado palestiniano, incluindo a assinatura do Memorando de Wye River em outubro de 1998, o famoso "discurso de Bar Ilan" em junho de 2009, o seu discurso no Congresso em maio de 2011 e o seu apoio ao "Acordo do Século" de Trump em 2019-20. Como é que explica isso?

Sempre que falava publicamente sobre o assunto, havia uma razão para o fazer. Veja-se o seu discurso em Bar Ilan, por exemplo, que foi o exemplo mais conhecido de Netanyahu a "aceitar" a solução dos dois Estados. Havia um aspeto de política externa: foi pouco tempo depois de Barack Obama ter entrado em funções e logo após o famoso discurso de Obama no Cairo. E havia um aspeto interno: na altura, Netanyahu estava a tentar construir uma coligação com o centro-esquerda. Mas pode ler-se no meu livro que o diplomata norte-americano Martin Indyk percebeu que se tratava de um esquema.

Há diferentes razões e motivações para o facto de ele ter falado a favor da divisão da terra de cada vez. Mas, como historiador político, a minha metodologia não consiste apenas em analisar o que os políticos dizem, mas também o que fazem.

 

Como é que Netanyahu continuou a reforçar o Hamas quando regressou ao cargo em 2009?

Desde que regressou ao poder, Netanyahu tem resistido a qualquer tentativa, seja militar ou diplomática, que possa pôr fim ao regime do Hamas em Gaza.

Até 2009, o exército israelita – juntamente com a Autoridade Palestiniana - estava a tentar eliminar o poder do movimento nos territórios ocupados. Depois, Netanyahu deu ordem para pôr fim à cooperação entre os militares israelitas e as forças de segurança da AP na sua luta contra o Hamas. Todas as outras formas de coordenação de segurança continuaram, mas este aspeto específico cessou. A partir de então, Netanyahu adoptou uma política de não negociação com os palestinianos, sob o pretexto de que a sua liderança está dividida, ao mesmo tempo que tentava minar todas as tentativas de conversações de reconciliação entre o Hamas e a AP.

Avancemos para 2018. O presidente da AP, Mahmoud Abbas, deixou de transferir dinheiro para Gaza, deixando o Hamas à beira do colapso. Em vez de deixar a AP regressar a Gaza [depois de ter sido expulsa pelo Hamas em 2006, na sequência de eleições], Netanyahu salvou o Hamas ao permitir a entrada de malas cheias de dinheiro do Qatar. Na verdade, ele foi o cérebro e o arquiteto desta transferência de dinheiro ao estilo da Máfia.

 

A transferência de dinheiro do Qatar para Gaza só começou em 2018?

O Qatar começou de facto a transferir dinheiro para o Hamas em 2012, embora fosse através de transferências bancárias e em montantes muito pequenos. A situação mudou radicalmente em 2018, quando Netanyahu persuadiu o seu gabinete a aprovar transferências maiores e a mudar o mecanismo de transferência para dinheiro. Depois disso, um carro que transportava malas cheias de quase 30 milhões de dólares em dinheiro passaria pelo cruzamento de Rafah todos os meses, desde o verão de 2018 até outubro de 2023.

Tanto quanto sabemos, a maior parte do establishment de segurança era contra esta ação, mas era muito importante para Netanyahu e ele foi bem sucedido. As actas dessa reunião do Conselho de Ministros não estão, nem poderão nunca estar, abertas ao público, mas é evidente que se tratou de uma medida destinada a enfraquecer a AP.

 

No seu livro, menciona uma mensagem que Sinwar enviou a Netanyahu pouco depois do início das grandes transferências. Pode explicar-nos o que foi essa mensagem?

Israel e o Hamas não comunicavam entre si oficialmente, mas mantinham conversações secretas sobre aquilo a que Israel chama "hasdara", ou seja, o acordo através do qual Israel permitia que o dinheiro do Qatar entrasse em Gaza. Em 2018, depois de as malas começarem a chegar, o representante israelita nestas conversações, o então conselheiro de segurança nacional Meir Ben-Shabbat, recebeu uma nota em hebraico de Sinwar dirigida a Netanyahu, intitulada "Risco calculado".

Lembro-me de ter ficado espantado quando a nota foi publicada nos meios de comunicação israelitas [em 2022]. Porque é que o chefe do Hamas escreveu ao primeiro-ministro israelita e porque é que escolheu estas palavras específicas? Qual é o "risco"?

Foi uma coisa muito inteligente de escrever porque tanto Sinwar como Netanyahu correram um risco calculado com este acordo [para continuar a enfraquecer a AP e eliminar a possibilidade de uma solução negociada]. Netanyahu sabia que o Hamas não ia usar o dinheiro para o bem-estar das crianças de Gaza ou para modernizar a Faixa, mas sim para construir túneis e comprar armas, transformando Gaza num Estado espartano em guerra com Israel. Mesmo assim, fê-lo com o objetivo de eliminar a possibilidade de uma solução de dois Estados.

O establishment de segurança israelita avisou repetidamente Netanyahu de que o Hamas estava a preparar-se para a próxima ronda de combates. Ao longo de 2023, Netanyahu recebeu uma série de avisos específicos de que o Hamas estava a planear lançar um ataque contra Israel para matar e raptar pessoas. Mas ninguém, incluindo Netanyahu, pensou que o ataque seria tão grande como foi.
Em agosto de 2023, quando os israelitas se manifestavam contra a reforma judicial, os palestinianos em Gaza manifestavam-se contra o Hamas. Sinwar receava perder o poder em Gaza, pelo que o Hamas reprimiu os protestos com bastões e armas. As sondagens de opinião pública realizadas em setembro e outubro de 2023 em Gaza mostraram que mais de 50% eram a favor da solução dos dois Estados. Isto significa que o Hamas tinha falhado: apesar de metade da população de Gaza ter vivido a maior parte das suas vidas sob a sua doutrina fundamentalista, a maioria continuava a ser a favor da divisão do território.

Com o ataque [de 7 de outubro], Sinwar ajudou Netanyahu, eliminando qualquer oposição ao seu governo dentro de Israel e a possibilidade de conversações de paz num futuro próximo. Sinwar sabia que o Hamas não ia conquistar Israel a 7 de outubro; não pensou que estava a iniciar uma guerra para eliminar o projeto sionista. Tratava-se de uma demonstração de força. E ele sabia qual seria a reação.

 

A maioria dos palestinianos vê o Hamas como um movimento de resistência e parte integrante da vida política palestiniana, quer o apoiem ou não pessoalmente. No seu livro, chama ao Hamas o inimigo do movimento nacional palestiniano. Não é um pouco paternalista?

Penso que o Hamas faz parte, talvez mesmo uma grande parte, do movimento nacional palestiniano. Mas penso que é o inimigo do segmento do movimento nacional palestiniano que quer acabar com o conflito e a ocupação.

Mesmo dentro do Hamas, encontramos diferentes abordagens e pontos de vista. Não se trata de uma organização monolítica. Nos últimos anos, tem havido um debate sobre a forma como a organização deve continuar a sua luta e com quem deve alinhar – Egito, Irão, Turquia ou Qatar. Sinwar, que era um político racional, não é sinónimo de Hamas, tal como Netanyahu não é sinónimo de Likud.

Mas Sinwar estava disposto a pôr em risco a vida de mais de dois milhões de habitantes de Gaza. Ele negociava com a morte. Houve muitas citações de altos funcionários do Hamas a explicar que se espera que os habitantes de Gaza derramem o seu sangue pela causa palestiniana. Quando Sinwar disse [em 2022] que um bom palestiniano é aquele que agarra numa faca e esfaqueia um judeu, não acreditava que esse fosse o caminho para acabar com o projeto sionista. Ele sabia que tais acções tornariam o conflito ainda mais enraizado e permanente. É evidente que Sinwar era um inimigo de todos os que valorizam a justiça e a paz.

 

Na segunda parte do livro, intitulada "The Pariah State: On the First Days of the Fighting in Gaza", afirma que a atual ofensiva de Israel é a continuação da política de Netanyahu. Pode explicar melhor esta afirmação?

Penso que para compreender a guerra é necessário compreender os seus primeiros 20 dias. Esta foi a "Dresdenização" de Gaza: uma campanha de bombardeamento aéreo antes do início da operação terrestre.

Na noite de 7 de outubro, Netanyahu fez o seu primeiro discurso à nação, durante o qual disse - utilizando um termo bíblico - que Israel vai transformar Gaza "em escombros". O primeiro-ministro terá dito, por esta altura, a Biden que manifestara reservas, que Israel ia fazer o que os americanos fizeram no Japão e na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, ou seja, uma campanha estratégica de bombardeamento de cidades inteiras.

Esta Dresdenização foi algo que não serviu qualquer lógica política ou estratégica: não se importava com o futuro das relações entre as nações. Durante esses primeiros 20 dias, os combatentes do

Hamas e a direção do movimento estiveram em túneis subterrâneos; a força aérea israelita bombardeou milhares de civis inocentes. A força aérea israelita bombardeou milhares de civis inocentes, o que não ajudou Israel a ganhar o controlo de Gaza e tornou mais difícil a libertação dos reféns. Serviu a lógica da vingança, que é a lógica de Sinwar e Netanyahu

A Dresdenização de Gaza ajudou Netanyahu. Com ela, recebeu a aprovação da grande maioria da sociedade israelita, e isto é uma nódoa na sociedade judaico-israelita. Foi um massacre, um genocídio, um crime contra a humanidade - não acho que a palavra seja importante. E este crime ajudou Netanyahu a eliminar a oposição interna. A nível interno, a política de Netanyahu tornou o público israelita cúmplice do crime.

 

E qual é a política de Netanyahu em relação ao Hamas, depois de mais de um ano de guerra e da morte de Sinwar?

Penso que a política de Netanyahu continua a ser a mesma que era antes da guerra. Está a tentar reforçar o Hamas, ou mais precisamente, os interesses que o Hamas representa – ou seja, enfraquecer o apoio a uma solução de dois Estados e manter-nos a todos num estado de guerra sem fim. O Sinwar e o Hamas não eram a questão principal para ele; o seu interesse central é a guerra sem fim, e o Hamas era um instrumento para manter o conflito enquanto Israel estava em vantagem.

Entre a esquerda israelita, especialmente a esquerda sionista, muitas pessoas dizem agora que, depois de 7 de outubro, a "conceção" [a palavra usada para descrever a política de Israel de manter o Hamas no poder enquanto limita as suas capacidades militares] provou ser um fracasso. Eu tento explicar que a "conceção" funcionou. Não creio que nada de fundamental tenha mudado desde 7 de outubro; as folhas de excel das vítimas tornaram-se muito mais longas, especialmente entre os palestinianos, mas não creio que nada de fundamental tenha mudado.

O Hamas é uma ideologia profundamente enraizada na paisagem social e política da região. A sua política é orientada pelas realidades no terreno. A retórica da "destruição do Hamas" e as afirmações de Netanyahu de que alcançou a "vitória total" não passam de uma ilusão para o público. A questão fundamental não é o número de armas existentes em Gaza – haverá sempre mais – mas sim as condições sociais e políticas que aí prevalecem. Não é o número de espingardas Kalashnikov que existem, mas se as pessoas estão dispostas a usá-las.

[Depois do ano passado], estamos a falar talvez de 20-25 anos de reconstrução em Gaza, o que significa que duas gerações de crianças em Gaza vão crescer em tendas e campos de refugiados. Não terão a oportunidade de aprender poesia e informática; em vez disso, lutarão pela sobrevivência básica: comida, um quarto quente, uma cama macia. Milhares de crianças nunca sentirão o abraço dos seus pais. É de partir o coração. São estas as condições que alimentam a resistência e perpetuam a segregação. Os escritórios de recrutamento do Hamas continuarão mais ocupados do que nunca.

Penso que uma das coisas que tanto Sinwar como Netanyahu queriam foi alcançada: o apoio à solução dos dois Estados está nos níveis mais baixos da história deste conflito, em ambos os lados. Agora, a questão é saber o que vai acontecer em Ramallah: qual é o plano da AP e da OLP?

 

Como caracterizaria o impacto da guerra na sociedade israelita?

Na segunda parte do livro, tentei abordar a questão da moralidade e o que aconteceu aos valores dos judeus israelitas. Procurei compreender a relação entre a estratégia de vingança e a estratégia de negação.

Desde 7 de outubro, Israel tem cometido múltiplos crimes de guerra em Gaza, que os soldados estão a fotografar e a filmar e a publicar em todas as redes sociais. Vi a fotografia de dois soldados que bombardearam os Arquivos Centrais da Cidade de Gaza apenas por diversão, o que me marcou muito, porque passo a maior parte do meu tempo em arquivos. Vê-se que há uma política de fome, há uma política de bombardeamento indiscriminado, há uma política de tortura.

As pessoas sabem, mas não sabem: esta é a estratégia da negação. A maior parte dos israelitas não lê o Haaretz ou o Local Call (o site de língua hebraica parceiro do +972), mas podem ir às redes sociais ou visitar qualquer outro meio de comunicação internacional. Fiquei espantado, durante a campanha de bombardeamento no início da guerra, com a forma como as pessoas simplesmente fecharam os olhos. Mas a negação é muito importante para nós, o "povo escolhido", para dar legitimidade ao que estamos a fazer em Gaza e ao que não estamos a fazer pelos reféns.

Penso que quase 60 anos de ocupação mudaram o coração do israelita médio. Yeshayahu Leibowitz, o intelectual judeu ortodoxo e professor da Universidade Hebraica, disse já em 1968 que a ocupação é uma força corruptora. A ocupação corrompeu-nos verdadeiramente.

Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, em 1945, os campos [de concentração] abriram-se e o mundo foi exposto à forma mais brutal de extermínio da história. Penso que algo deste género acontecerá quando as portas de Gaza se abrirem. Quando isso acontecer, o público israelita terá de decidir qual o caminho que vai seguir: responsabilidade ou negação. Penso que escolherão a negação. E é por isso que penso que Netanyahu ganhou a guerra.


Publicado originalmente no +972.

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