Movimentos 'Não Vai Ter Golpe' e 'Fora, Temer!' uniram as esquerdas no Brasil

06 de setembro 2016 - 23:37

Marisa Matias entrevista Jean Wyllys, deputado do PSOL, sobre a crise política no Brasil e como a esquerda brasileira se está a organizar para lhe fazer resposta.

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Marisa Matias entrevista Jean Wyllys.

A entrevista da eurodeputada bloquista Marisa Matias a Jean Wyllys está incluída no terceiro programa do “Mais Esquerda”, o programa de atualidade política do esquerda.net. O programa pode ser visto aqui (na íntegra aqui).

Temos um governo novo no Brasil, através de um golpe, que desde o início se viu envolvido num conjunto de gaffes e com ministros acusados de corrupção. Achas que têm condições para impor a agenda ultra conservadora que já mostraram que querem por em prática e que os trabalhadores têm condições para resistir aos cortes que estão a ser anunciados, na saúde, na educação e noutros setores?

Este governo só existe, porque atende aos anseios, aos ditames, às reivindicações dos mercados financeiros e das elites económicas. Era vontade das elites económicas que o governo Dilma fosse deposto e que esse governo esteja no seu lugar, justamente porque vai atender aos interesses dessa elite. Este governo tem condições de levar adiante esse programa que já tem vindo a implementar, um programa que aprofunda, na minha avaliação, a crise, porque todo o ajuste fiscal apresentado, embora venha acompanhado do discurso do desenvolvimento para levar o país a crescer, na verdade só favorece os rentistas. Quem vive de renda não investe em produção, não gera emprego. A tendência será a crise agravar-se, embora o discurso agora não seja esse, seja um discurso salvacionista. 

Este governo tem condições de levar adiante um programa que aprofunda a crise, porque embora venha acompanhado do discurso do desenvolvimento, na verdade só favorece os rentistas. Quem vive de renda não investe em produção, não gera emprego.

Sobretudo porque este governo vai desmontar a rede de proteção legal dos trabalhadores. Ou seja, na prática está a passar para os trabalhadores e para os mais pobres o curso da crise, uma crise que começa em 2008, nos Estados Unidos, e que se tem repercutido no mundo em momentos diferentes, com impactos diferentes. A crise chegou ao Brasil em 2013, complicou a vida da Presidente Dilma Rousseff junto ao eleitorado, à opinião pública, e foi uma das razões que levou à deposição do seu governo, porque o conjunto de medidas que Dilma apresentou para o mercado financeiro, para as elites económicas, não foi suficiente, na perspetiva dessa gente, dos endinheirados, dos mais ricos, que queriam mais. 

E a Dilma, por ser do PT e o PT ter o compromisso histórico com políticas sociais e com os trabalhadores, não estava disposta a radicalizar-se num programa neoliberal. Eles precisavam de um governo que se radicalizasse na implementação de um programa neoliberal e encontrou quem se dispusesse a fazê-lo, que é o grupo de Michel Temer. Michel Temer não pensou duas vezes em trair a Presidente Dilma Rousseff, o PMDB não pensou duas vezes em trair o PT e a fazer alianças com os partidos que foram derrotados nas últimas duas eleições, que é o partido Democratas, o PSDB e o PPS. Fizeram um arranjo para depor a Presidente Dilma e dizer às elites económicas e para ao mercado financeiro: “olha nós, que temos a coragem de implementar um programa radicalmente neoliberal que afeta os direitos dos trabalhadores, que faça um retrocesso em termos de direitos sociais, sem pudores. Nós não fomos eleitos, nós não devemos nada aos eleitores, então nós podemos tranquilamente fazer isto por vocês, já que o governo eleito vai ser deposto”. 

Ninguém com o mínimo de discernimento e razão acredita que Dilma saiu por causa de um crime de responsabilidade. Não há crime de responsabilidade, a Dilma saiu porque se recusou a implementar um programa radicalmente neoliberal que atendesse aos interesses das elites económicas, do mercado financeiro

E encontraram para depor o governo Dilma uma falácia, a acusação de que ela teria praticado manobras fiscais, o que chamamos de “pedaladas fiscais”. É uma mentira, mais ninguém acredita nisso, ninguém com o mínimo de discernimento e razão acredita que Dilma saiu por causa de um crime de responsabilidade. Não há crime de responsabilidade, a Dilma saiu porque se recusou a implementar um programa radicalmente neoliberal que atendesse aos interesses das elites económicas, do mercado financeiro, que, perante a crise, vê alguns dos seus privilégios ameaçados. 

Mas agora, apesar da resistência popular, têm condições para aplicar esse programa neoliberal e das elites?

Têm muitas condições. Têm maioria no Congresso Nacional e parte deste governo golpista, o PMDB, já estava no governo Dilma, e traiu-o. Ao PMDB uniu-se o PSDB, o Democratas e o PPS, que eram antiga oposição ao governo Dilma. Agora formam uma ampla maioria no Senado e na Câmara e oferecem todas as condições para que estas medidas sejam aprovadas. 

A esquerda sempre foi minoritária e contra-hegemónica e nunca foi tão minoritária e contra-hegemónica quanto agora

A resistência popular, é uma resistência que parte muito da esquerda, ou do campo progressista. O campo progressista é um campo minoritário, sempre foi minoritário, sempre foi contra hegemónico. A esquerda chegou ao poder por causa de uma conciliação que o Lula promoveu, uma conciliação de classes, mas a esquerda sempre foi minoritária e contra-hegemónica e nunca foi tão minoritária e contra-hegemónica quanto agora.

É essa tradição política, e a forma como o governo já estava constituído no tempo de Dilma, o governo democraticamente eleito que justifica, por exemplo, o comportamento do PT agora? Porque o PT, que denunciou as manobras dos golpistas de direita para alcançar o poder, neste momento acabou por apoiar Rodrigo Maia, um dos golpistas, para a presidência da Câmara dos Deputados. Depois olhamos, por exemplo, para as eleições locais e vemos, não só o PT, mas até o próprio PCdoB a fazer coligações com partidos golpistas que estão na base dessa nova aliança que quer por em prática esta nova política ultra conservadora e ao mesmo tempo neo liberal.

A base social do PT é contrária à submissão do PT aos jogos de poder, a essas alianças. E há no PT também muitos parlamentares incomodados e constrangidos, mas existe a base e a cúpula Petista. A cúpula Petista não tem pudores em fazer essas alianças, são pessoas que se acostumaram a estar no poder e estão dispostas a tudo para estar no poder. 

Acho que é preciso fazer uma distinção, o PT não é um bloco monolítico. Eu diria que a base Petista, a base social do PT, é contrária a essas alianças espúrias, a essa submissão do PT aos jogos de poder, a essas alianças nas bases municipais. E há no PT também muitos parlamentares incomodados e constrangidos com essa aliança, mas existe a base e existe a cúpula Petista. A cúpula Petista e, sobretudo, os líderes do PT na Câmara e no Senado não têm pudores em fazer essas alianças, são pessoas que se acostumaram a estar no poder e estão dispostas a tudo, tudo é possível e legítimo para se estar no poder. 

Foi o que vimos na eleição para a Câmara. O PT, na segunda volta, claro, votou em Rodrigo Maia. Conseguimos dividir a bancada Petista nas eleições para a Câmara. Muitos deputados e deputadas do PT votaram em Luiza Erundina, a candidata do PSOL. Muitos votaram porque nós os convencemos que naquela situação, tínhamos de apostar na candidatura de Erundina, mesmo que fosse uma candidatura com hipóteses de derrota mas, por uma questão de princípios, de dignidade, era preciso apostar numa outra candidatura que não aquela dos golpistas. 

Na segunda volta, uma parte da bancada Petista não votou em Rodrigo Maia, absteve-se, como nós, no PSOL, fizemos. Mas a grande maioria da bancada, principalmente os líderes do PT na Câmara, acabaram por votar em Rodrigo Maia. 

Durante as eleições municipais, que vão acontecer em outubro, o PT tem feito alianças com candidatos dos partidos golpistas, que o implementaram, que o perpetraram. Com o PP, com o PR, e até mesmo, em alguns municípios, há alianças com o PSDB, por incrível que pareça. 

Como é possível que o PT no âmbito municipal faça alianças com o partido do Eduardo Cunha, o corrupto mor da Câmara, o grande algoz inimigo de Dilma Rousseff, que teceu toda a trama?

Para o eleitor, isso é muito confuso, ele diz, “como assim, há uma narrativa mais ampla que diz que o PSDB, o Democratas, o PPS e o PMDB são partidos golpistas, como é possível que o PT, no âmbito municipal faça alianças com o partido do Eduardo Cunha, que é o corrupto mor da Câmara, o grande algoz inimigo de Dilma Rousseff, que teceu toda a trama que depois a Dilma… Como é possível?” 

O eleitorado fica confuso, não compreende esse sentido pragmático, esse pragmatismo, essa real politik, praticada pela cúpula Petista e pelos líderes do PT na Câmara. Acho lamentável. Acho que o PT cava, com esse tipo de alianças, um pouco mais a sua cova. A base eleitoral Petista gostaria muito que o PT se refundasse, que o PT voltasse ao passado e revisse os seus princípios de origem, sobretudo o seu comportamento quando oposição. Muita gente no PT gostaria dessa refundação, que o partido renascesse novo, de novo.

Acho que o PT cava, com esse tipo de alianças, um pouco mais a sua cova. A sua base eleitoral gostaria muito que o PT se refundasse, que voltasse ao passado e revisse os seus princípios de origem, sobretudo o seu comportamento quando oposição, que o partido renascesse novo, de novo.

Mas os primeiros sinais não sua propriamente esses…

Não, não são os interesses da burocracia do partido, dos líderes partidários, dos dirigentes. Os dirigentes, os líderes partidários, os líderes na Câmara, no Senado estão acostumados com o poder e, de certa forma, já estão resignados nesse papel que conferiram ao PT. O papel de um partido grande, de massas, mas um partido quase de aluguer, lamentavelmente. 

É curioso que o PT, de tanto conviver com o PMDB, de ter feito tantas alianças com ele, foi-se assemelhando e ele, e estão-se a absorver. O PT, em alguns lugares e para alguns Petistas, é muito parecido com o PMDB. E eles não vêm problema nisso. Mas para muitos outros Petistas, sobretudo os que estão na  base, isso é um problema  e eles gostariam de ver uma distinção entre os partidos. Inclusive, muitos deles estão a sair e a entrar em partidos de esquerda, como o PSOL. Alguns foram para a Rede, que é um partido novo, outros estão nos movimentos sociais, mas muitos estão a sair do PT.

Na impossibilidade de haver agora eleições, e isso está agora mais do que visto, qual é a estratégia do PT, é eleger Lula, em 2018? É deixar cair Dilma?

Eu acho que a grande maioria quer eleger Lula em 2018. Na verdade, aconteceu o seguinte, o “não vai ter golpe” e o “fora, Temer”, esses dois movimentos uniram as esquerdas no Brasil e, por um momento, todos os partidos de esquerda se juntaram num coro numa só voz, dizendo, primeiro, “não vai ter golpe” e, agora, “fora Temer”. Não temos acordo com o que queremos depois.

Uma vez o golpe concluído, o que é que propomos? Uma parte da esquerda quer novas eleições, que é a parte em que me incluo, eu, o PSOL, a Presidente Dilma, parte do PT, parte do PCdoB, essa parte da esquerda quer novas eleições, quer eleições já para 2017. Achamos difícil conseguir, mas gostaríamos que as eleições fossem antecipadas. 

Uma outra parte, gostaria que a Dilma voltasse, é o grupo do “fica, Dilma!”, do “volta, querida!”, que gostaria que a Dilma voltasse e que terminasse o governo, até por um questão de justiça, de respeito à democracia. O mandato dela foi conferido pelo voto, ela foi eleita com 54 milhões de votos, isso tem que ser respeitado, para essas pessoas, a Dilma tem que voltar. Eu até concordo com eles no que diz respeito a fazer justiça com Dilma, a respeitar a democracia, mas não vejo condições para que Dilma governe, e acho que se vai repetir o que já vinha acontecendo, uma sabotagem do governo dela na Câmara dos Deputados, porque não vamos renovar o Congresso Nacional. Se a Dilma voltasse, ela iria governar com as mesmas pessoas do dia do voto do impeachment, aquelas pessoas assustadoras. Por esse motivo, ela mesma acha que não tem condições para levar por diante o governo. O que é que ela pretende? Voltar, e chamar novas eleições, convocar um plebiscito, consultar a população, e a população dizer que quer novas eleições imediatamente.

E há um grupo, muito mais de Petistas, com alguns do PCdoB, que desejam que Michel Temer permaneça, para Lula ganhar força para voltar como um salvador em 2018. Essa é uma manobra arriscada, irresponsável e egoísta, porque não leva em conta os males que este governo interino vai produzir na nossa democracia, sobre o nosso sistema de direitos, sobre o nosso parco e incipiente Estado do Bem Estar Social.

E há um terceiro grupo, muito mais de Petistas, com alguns do PCdoB, que desejam que Michel Temer permaneça, é o grupo do “quanto pior, melhor”…

Para ganhar força…

Para ganhar força para Lula voltar como um salvador em 2018. Essa é uma manobra arriscada, irresponsável e egoísta, porque não leva em conta os males que este governo interino vai produzir na nossa democracia, sobre o nosso sistema de direitos, sobre o nosso parco e incipiente Estado do Bem Estar Social. 

Que demoraram muitos anos a conquistar, mas demoram pouco tempo a destruir.

Sim, a conquistar demora muito tempo, a destruir, é muito rápido. Nós não podemos, em nome das estratégias políticas, deixar que este governo fique até 2018, para que Lula volte como um salvador. E também, eu acho que há um risco grande de Lula comprometer o seu próprio legado, as condições são outras, o país é outro…

E há a questão da Lava Jato, que também interfere aí.

A questão da Lava Jato interfere, porque a Lava Jato está à caça de um crime para Lula. Lula já foi condenado moralmente, a imprensa já se encarregou de destruir, para boa parte dos brasileiros, a sua imagem, até mesmo para boa parte dos brasileiros que beneficiou dos governos Lula. Até mesmo parte dos brasileiros que tiveram pela primeira vez os seus direitos reconhecidos. Os meios de comunicação de massa, a televisão, notadamente a Rede Globo, fez essa tarefa de destruir publicamente a sua imagem.

Lula já foi condenado moralmente, eles estão à procura de um crime que justifique esse linchamento moral. E dadas as circunstâncias em que estamos a viver no Brasil, é provável que o encontrem. Estamos num momento de ruptura do Estado de direito, a Lava Jato desrespeitou direitos básicos

Lula já foi condenado moralmente, o que eles estão à procura é de um crime que justifique esse linchamento moral. Então acusam-no de ser dono, proprietário de um triplex, que já foi provado que não é dele. Acusam-no de ser proprietário de um sítio [casa de campo] em Atibaia, que também não há provas que seja dele. Ou seja, não há crimes para Lula, mas eles estão à procura. E dadas as circunstâncias em que estamos a viver no Brasil, é provável que encontrem um crime para prender Lula. Estamos num momento de ruptura do Estado de direito, a Lava Jato desrespeitou direitos básicos, a presunção de inocência foi desrespeitada, pessoas foram conduzidas coercivamente sem necessidade, pessoas…

Sem separação de poderes.

Sim, as pessoas foram mantidas presas provisoriamente muito mais tempo do que deveriam, foram aplicados métodos quase de tortura para que as pessoas denunciassem outras, a Lava Jato violou o Estado de direito aos olhos do Supremo Tribunal Federal, sem que o Supremo Tribunal Federal interviesse.

O curioso é agora, quando a Lava Jato começou a voltar-se para o grupo do PSDB, Aécio Neves, José Serra, o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, que mirou o PMDB, Romero Jucá, José Sarney, Renan Calheiros, é que o Supremo Tribunal Federal (STF), através da figura de Gilmar Mendes, que aceitou calado todos os abusos da Lava Jato, foi à imprensa e disse “Alto lá, alto lá, eu tenho o poder para proibir isto, vocês estão a ultrapassar todos os limites, vocês estão a violar a presunção de inocência, vocês estão a violar o Estado de direito, vocês querem defender, praticamente, a tortura para obter provas, vocês querem que a gente aceite provas ilícitas, obtidas ilicitamente”. Ou seja, tudo o que criticávamos antes, quando os alvos desses abusos eram os Petistas, Gilmar Mendes agora repete só, e porque só os alvos são o PSDB e o PMDB. Como estamos vivendo essa situação de rutura do Estado de direitos e das garantias jurídicas, Lula pode ser preso, e isso frustra os planos de quem gostaria que ele voltasse em 2018.

Mas ao mesmo tempo, a sociedade brasileira está a mudar muito com este processo. Nós vemos, com alguma responsabilidade tua também, seguramente, nos últimos anos um crescendo grande do movimento LGBT, e a ganhar força. Vimos também manifestações feministas neste processo do impeachment. Obviamente, é inegável que tudo isto que se passou com Dilma tem a ver com o facto de ela ser mulher, portanto, o sexismo está muito presente, mas, como disse, há movimentos que estão a ganhar força. Achas que já há condições para o Brasil ser feminista e para estes movimentos LGBT e feministas contornarem, de certa forma, aquilo que é a influência massiva da igreja? Por exemplo, no que diz respeito à criminalizarão do aborto e a outras questões que são sempre muito controversas na sociedade brasileira...

Acho que o Brasil está, pela primeira vez na história, tendo um choque real com o feminismo. O feminismo está mais ativo, está mais produtivo, encontrou, graças às novas tecnologias da comunicação e da informação, os meios para se expressar de maneira mais contundente, de denunciar de maneiras mais claras o sexismo, o machismo, de reivindicar os direitos das mulheres.

As mulheres tiveram um protagonismo sem precedência no Brasil durante a fase do “não vai ter golpe” e do “fora Temer”, da mesma forma que tiveram antes durante o “fora Feliciano”, que antecipou tudo isto em 2013. As mulheres e o movimento LGBT estão no melhor momento, mas isso não me permite dizer que o Brasil já é um país feminista. Ainda não, ainda temos muito sexismo.

Desconstruir esse sexismo e machismo exige tempo então não posso dizer que a sociedade brasileira está mais feminista, mas posso dizer que o feminismo nunca esteve tão forte, nunca esteve tão eloquente, tão produtivo como agora.

O IPEA (Instituto de Pesquisas Económicas Aplicadas) fez uma pesquisa cujo resultado foi estarrecedor: mais de 40% da população acha que uma mulher vítima de violência tem culpa, por causa das roupas que veste, e que deveriam mudar a forma de se vestir para impedir a violência sexual. Ainda temos um sexismo e um machismo arraigado na subjetividade, inclusive nas próprias mulheres.

Na Câmara dos Deputados, a bancada feminina é de 36 deputadas, e dessas 36, poucas são assumidamente feministas e têm uma agenda feminista. Desconstruir esse sexismo e esse machismo exige tempo então não posso dizer que a sociedade brasileira está mais feminista, mas posso dizer que o feminismo nunca esteve tão forte, nunca esteve tão eloquente, tão produtivo como agora. E essa relação direta com o movimento LGBT, com o trans feminismo, com as reivindicações dos gays e lésbicas, está muito interessante. Acho que o meu mandato ajuda muito na articulação entre os diferentes movimentos sociais…

E a dar visibilidade...

sabemos que durante muito tempo a esquerda foi muito fragmentada, dividida, cada movimento no seu canto, a lutar pelo seu quinhão. Agora conseguimos uma transversalidade, conseguimos sororidade, conseguimos solidariedade, empatia entre os movimentos.É, dá visibilidade, mas sobretudo na articulação. Porque, como eu sou um ativista dos direitos humanos, gay assumido, acabo por vocalizar as agendas desses diferentes movimentos na Câmara dos Deputados. E o facto de eu vocalizar essas diferentes agendas, a agenda do movimento negro, do povo de santo (os adeptos de religiões de matriz africana), das mulheres feministas, da comunidade LGBT, dos povos indígenas, e fazer uma articulação permite que esses movimentos dialoguem entre si, e sabemos que durante muito tempo a esquerda foi muito fragmentada, dividida, cada movimento no seu canto, a lutar pelo seu quinhão. Agora conseguimos uma transversalidade, conseguimos sororidade, conseguimos solidariedade, empatia entre os movimentos.

Sabemos que durante muito tempo a esquerda foi muito fragmentada, dividida, cada movimento no seu canto, a lutar pelo seu quinhão. Agora conseguimos uma transversalidade, sororidade, solidariedade, empatia entre os movimentos.

Já fica difícil para uma mulher feminista não assumir a luta contra o racismo, e entender a especificidade da vulnerabilidade da mulher negra. E, portanto, o feminismo tem que entender isso, a mulher negra é muito mais vulnerável do que a mulher branca, sobretudo a mulher negra pobre. A mulher branca que reivindicou a inserção no mercado do trabalho não pode esquecer que as negras estiveram desde sempre no mercado de trabalho, a princípio como mão de obra escrava, depois como mão de obra subremunerada. Os homens gays já não podem defender a sua luta sem serem solidários com as pessoas trans e sem combater o sexismo dentro do próprio movimento LGBT. Essa solidariedade vem sendo construída no Brasil e sinto muito orgulho por o meu mandato produzir esse diálogo.

E achas que essa solidariedade pode passar também, por exemplo, para o nível dos partidos? Ou seja, há condições num futuro próximo para haver uma espécie duma frente de esquerda socialista à esquerda do PT para levantar estas questões todas?

Gostaria muito. Acho que eu, pessoalmente, encarno muito essa vontade. Eu sou uma pessoa com um bom trânsito entre todos os partidos de esquerda. Fiz no outro dia um texto sobre a bancada feminista do PCdoB, cuja maioria da bancada é composta por mulheres feministas: Manuela d’Ávila, Perpétua Almeida, Alice Portugal, Jandira Feghali, Jô Moraes, Luciana Santos. E quando eu fiz o post, eles ficaram felizes, o PSOL também não reclamou. Umas poucas pessoas do PSOL disseram, “ah, estás a dar visibilidade a alguém de outro partido” e eu disse, “não, estou a dar visibilidade para as mulheres deputadas”. O que interessa é dizer que as mulheres têm que ocupar espaços de poder e, se elas estão a ocupar espaços de poder através do PCdoB, isso não me interessa, interessa- me dizer que elas os estão a ocupar.

Fiz uma defesa muito grande da Dilma e resisti muito ao golpe. Fui acusado, inclusive, de ser Petista. Não tive medo de fazer esse deslocamento de identidade partidária. Queria que isso acontecesse, que construíssemos uma frente de esquerda. Como, talvez, o Bloco de Esquerda é, que nasceu de uma conjunção de diferentes partidos.

Fiz uma defesa muito grande da Dilma e resisti muito ao golpe. Fui acusado, inclusive, de ser Petista por causa disso. Não tive medo de fazer esse deslocamento de identidade partidária, queria que isso acontecesse, que nós construíssemos uma frente mesmo, de esquerda. Como, talvez, o Bloco de Esquerda é, que nasceu de uma conjunção de diferentes partidos, gostaria que isso acontecesse, que a esquerda do PT, que aqueles que sonham com o PT do início e a esquerda do PCdoB pudesse construir uma unidade. Para, inclusive, dar um melhor futuro para a esquerda da América Latina. 

Por falar em futuro, como é que vês o futuro próximo do PSOL, quais é que são os próximos passos? 

O PSOL é um partido que está a crescer e que cresceu bastante. Nós saímos dessa crise política muito fortalecidos, atraímos a simpatia da base Petista, atraímos a simpatia da base do PCdoB, mas quando eu digo nós, tou a falar das figuras públicas do partido: eu, o Chico Alencar, o Marcelo Freixo, o Edmilson [Rodrigues], a [Luiza] Erundina, o Ivan [Valente], o Glauber [Braga], a Luciana [Genro]. De alguma maneira nós, as figuras públicas, damos uma unidade para o partido e fazemos com que a maioria das pessoas de esquerda e do campo progressista se identifiquem connosco.

Mas, quando a gente entra na realidade do partido, vê que o PSOL ainda é um partido com as práticas tradicionais da esquerda, com essa divisão em muitas correntes, de uma briga interna pelo controlo do aparato que não me interessa. A mim, particularmente, não me interessa, eu não entro nessa disputa. Entrei no PSOL quando já era o PSOL, em 2009 e não me interessa entrar nas disputas de corrente. Para mim, interessa-me muito mais firmar uma identidade do PSOL. E acho que o PSOL pode ser o grande partido que vai confluir essas diferentes esquerdas que estão órfãs com a crise do PT, com a crise do PCdoB.