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Morreu João Cutileiro

O escultor morreu esta terça-feira, em Lisboa, aos 83 anos. Criador de obras tão incontornáveis quanto polémicas, quebrou cedo com o academismo do Estado Novo num trabalho voluptuoso sobre a pedra. Marisa Matias diz que "morreu um mestre, um grande homem e um anti-fascista".
João Cutileiro na exposição pós-pop, organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2018.
João Cutileiro na exposição pós-pop, organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2018. Foto de Inácio Rosa, Lusa.

A estátua de “D. Sebastião”, em Lagos, e o monumento ao 25 de abril, no Parque Eduardo VII em Lisboa, são apenas dois exemplos de obras envoltas em polémica, apesar dos esclarecimentos do próprio (sempre rejeitou uma intenção fálica no monumento ao 25 de abril).

Detentor de doutoramentos Honoris Causa pelas Universidades de Évora e de Lisboa, recebeu a medalha de Mérito Cultural em 2018, ano em que doou o espólio e a casa-atelier ao Estado, com a contrapartida de dinamização e programação cultural e académica do espaço, bem como residências artísticas, exposições e formação na área da escultura em pedra.

Em 2016, Cutileiro apoiou a candidatura de Marisa Matias à eleições presidenciais, deixando o seu apoio registado em vídeo. No Twitter, Marisa Matias declara que "Morreu um mestre, um grande homem e um anti-fascista. Obrigada João Cutileiro".

Nascido a 26 de junho de 1937, em Lisboa, numa família antifascista, João Pires Cutileiro viajou constantemente durante a infância e adolescência, devido à profissão do pai, José Cutileiro, médico da Organização Mundial de Saúde, relata a Lusa.

A sua casa de infância recebia frequentemente personalidades destacadas da oposição democrática e do panorama intelectual português da época, de artistas, investigadores e compositores, como Celestino da Costa, Estrela Faria, Maria Helena Vieira da Silva, Abel Manta, Avelino Cunhal, Fernando Lopes-Graça, António Pedro, entre outros.

Em 1946, com nove anos, é convidado por António Pedro - artista plástico, ator e escritor - para desenhar no seu atelier. É neste local, durante dois anos, que contacta com artistas, escultores e críticos, interessados no Surrealismo.

Entre 1949 e 1951, frequenta o estúdio do pintor e ceramista Jorge Barradas, onde aprendeu a modelar, pintar e executar vidrado de cerâmica, mudando-se depois para o atelier de António Duarte, onde trabalhou dois anos como assistente de canteiro.

Foi neste período que Cutileiro se iniciou no tratamento da pedra, pois o seu trabalho no atelier de António Duarte era o de ampliar os modelos do mestre canteiro, passá-los a gesso, e traduzir esses gessos para o mármore, como sublinham os seus dados biográficos, no Centro de Investigação para Tecnologias Interativas (CTI).

Em 1951, com 14 anos, João Cutileiro fez a primeira exposição individual, "Tentativas Plásticas”, em Reguengos de Monsaraz, na zona do Alto Alentejo, numa loja de máquinas de costura, apresentando peças de escultura, cerâmica, aguarelas e pinturas.

Uma passagem por Florença, onde viu as esculturas de Miguel Ângelo, reforça a sua certeza sobre o caminho a seguir.

Durante o ensino secundário, ingressou no Movimento de Unidade Democrática (MUD), organização política de oposição à ditadura salazarista. Nos anos de 1960, passa pelo Partido Comunista Português.

Entra depois na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa onde trabalha com o professor e escultor Leopoldo de Almeida. Em dois anos, frustrado com os constrangimentos ao experimentalismo, conclui que a ditadura é adversa ao trabalho artístico e sai do país.

Paula Rego leva João Cutileiro para a Slade School of Art, onde ganha como mestre de escultura Reg Butler, nome determinante na arte britânica do pós-guerra, conhecido pelas suas esculturas femininas. Durante a formação, recebeu três prémios para composição, figura e cabeça.

Concluído o curso, Cutileiro permaneceu em Londres, onde se casou. O escultor procurava afastar-se das influências de Butler, e começou a fazer as primeiras figuras articuladas, que datam de 1964, progredindo então num caminho mais pessoal, que iria caracterizar o seu trabalho futuro.

Ainda no Reino Unido, foi escolhido para a I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, em 1957, e expôs duas vezes na galeria Young Contemporaries, na capital britânica (1957 e 1959).

O início do uso de máquinas elétricas, no corte da pedra – que viria a mostrar-se decisivo para problemas futuros do foro respiratório -, remonta a 1966. A técnica permitiu-lhe dedicar-se em particular ao mármore, dando forma, além das figuras, a paisagens, caixas, flores e as árvores.

Regressou a Portugal em 1970, fixando-se primeiro em Lagos, no Algarve, onde permaneceu por mais quinze anos, e depois em Évora. No atelier da cidade algarvia, empenhou-se na construção das primeiras figuras bífidas.

Daí saiu a polémica obra "D. Sebastião", erguida na cidade de Lagos, na praça Gil Eanes, dividindo as opiniões, desde as críticas ferozes ao seu "capacete integral", aos rasgados elogios pela nova sintaxe impressa na escultura portuguesa.

Avesso ao academismo, sobretudo à expressão da escultura do Estado Novo, Cutileiro declarou, na altura, que tinha abandonado a criação artística para se tornar "um fazedor de objetos decorativos destinados à burguesia intelectual do ocidente".

Em 1971 o escultor conquistou uma menção honrosa no Prémio Soquil, em Lisboa. Em 1976, as suas esculturas e mosaicos foram expostos na Unikat-Galerie, em Wuppertal, na Alemanha, seguindo-se exposições na Royal Academy of Arts, em Londres, e no Museu de Lagos (1978), na XV Bienal Internacional de São Paulo, Brasil (1979), e em Évora (1979 e 1981), entre outras mostras.

Em 1980, a sua obra voltaria à Alemanha (Munique e Wuppertal), tendo exposto também nos Estados Unidos, no II Congresso da International Association of Sculptors, realizado em Washington, e na Jones Gallery, em Nova Iorque.

Em 1985, João Cutileiro mudou-se para Évora, onde se fixou, e onde deixou exposta, na sua própria casa, boa parte de uma obra multifacetada, em que também trabalhou materiais como o cimento fundido, o bronze, o ferro soldado, o gesso, além do mármore, muitas vezes corroído com ácido.

Alguns anos antes, em 1981, na cidade alentejana promoveu, com o Ar.Co - Centro de Arte e Comunicação Visual, o I Simpósio Internacional de Escultura em Pedra, reunindo um grupo de escultores como Sergi Aguilar, Andrea Cascella, Minoru Niizuma, Syoho Kitagawa e Pierre Szekely, e um grupo de jovens escultores portugueses em que se destacavam Rui Anahory, Brígida Arez, José Pedro Croft, Amaral da Cunha, Pedro Fazenda, Luísa Periennes, Pedro Ramos, Manuel Rosa e António Campos Rosado.

Em 2018, o Centro Internacional de Arte José de Guimarães mostrou a “Constelação Cutileiro”, com curadoria de Nuno Faria e Filipa Oliveira, que mostrou o impacto do escultor na arte contemporânea portuguesa, através de artistas como Charrua, Joaquim Bravo, Álvaro Lapa, António Palolo, Manuel Rosa, José Pedro Croft.

“Uma espécie de cartografia celeste da geometria das relações, afetos e interações" de que João Cutileiro, "espécie de astro solar, foi o ponto referencial e o campo magnético de uma conjugação energética”, sublinhou a apresentação da mostra vimaranense, regista a Agência Lusa.

"João Cutileiro abriu um modo novo de encarar a prática escultórica em Portugal, baseada numa abordagem performativa, iminentemente ‘matérica’, oscilando entre forma e informe, remetendo para motivos ou arquétipos da história ou da pré-história da escultura, num diálogo entre épocas e geografias diversas", pode ler-se no catálogo.

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