Moçambique: Frelimo enfrenta contestação face a “megafraude” em eleições autárquicas

25 de outubro 2023 - 20:36

Oposição contesta resultados provisórios das eleições autárquicas de 11 de outubro e os tribunais e o Conselho Constitucional reconhecem irregularidades. Consórcio eleitoral da sociedade civil denuncia que o processo “não foi transparente, íntegro e imparcial”.

PARTILHAR
Manifestantes protestam contra os resultados das sextas eleições autárquicas em Moçambique, reclamando vitória da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), em Maputo. Foto de LUÍSA NHANTUMBO, Lusa.

Esta terça-feira, o governo de Moçambique apelou à serenidade face às marchas organizadas pelos partidos da oposição, especialmente a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), que realizou neste dia a sua sexta marcha na capital, Maputo, para contestar os resultados das eleições autárquicas de 11 de outubro e denunciar uma “megafraude” na votação.

Filimão Suaze, porta-voz do executivo moçambicano, afirmou que “o processo está a decorrer normalmente” e que, “desde que sejam feitas dentro da lei, as marchas são muito normais dentro do nosso quadro legal”. O governo da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) considera que as eleições autárquicas foram pacíficas e que não deve haver contestação dos resultados finais. Nesse sentido, o responsável governamental apelou à calma e à paciência de todas as forças que participaram no escrutínio até ao anúncio dos resultados finais.

Tribunais e Conselho Constitucional reconhecem irregularidades

Em Maputo, os tribunais distritais cancelaram a votação em determinadas assembleias de voto, identificando inúmeras irregularidades, entra as quais a falsificação de avisos.

Em Chokwé, província de Gaza, o respetivo tribunal distrital invalidou as eleições autárquicas. No entanto, o Conselho Constitucional (CC) moçambicano considerou esta terça-feira nulo o despacho, esclarecendo que a Constituição da República lhe atribui, em exclusividade, a competência de validar os resultados das eleições. Ainda assim, o CC reconhece a existência de irregularidades denunciadas pela oposição, que serão analisadas em "processo próprio". A par de Chokwé, pelo menos mais quatro tribunais distritais confirmaram irregularidades nas eleições e ordenaram a repetição de vários atos eleitorais. Em alguns destes casos, os órgãos eleitorais e a Frelimo apresentaram recursos junto do CC para contestar as sentenças, acórdãos e despachos dos tribunais distritais.

A par de determinar que a decisão de anular ou ordenar a repetição de eleições não cabe aos tribunais distritais, o CC clarificou que esse poder, que lhe é atribuído, só poderá ser exercido quando a Comissão Nacional de Eleições finalizar o apuramento geral dos resultados, o que deverá acontecer esta quinta-feira.

Renamo irá “lutar até ao fim”, MDM pede justiça eleitoral

Por sua vez, o candidato da Renamo a presidente da Câmara de Maputo, citado pelo jornal diário independente moçambicano O País, ameaça boicotar as eleições presidenciais e legislativas do próximo ano, caso não sejam publicados aquilo que considera “os resultados reais” das eleições autárquicas.

 

Venâncio Mondlane garantiu que o partido não aceitará quaisquer resultados diferentes daqueles que foram apurados mediante as contagens paralelas de votos realizadas pela própria Renamo e pelos observadores do “Mais Integridade”, coligação eleitoral da sociedade civil. Mondlane alertou, inclusive, que a Renamo irá “lutar até ao fim, ao lado do povo, para alcançar a verdade eleitoral” e que “o povo está disposto a fazer isso”. O representante do maior partido da oposição instou ainda a Procuradoria-Geral da República (PGR) a prender e processar todos os envolvidos em fraude eleitoral, e exortou a Comissão Nacional de Eleições (CNE) a retirá-los de todos os cargos do aparelho eleitoral, substituindo-os por outros, escolhidos por consenso.

 

Os “resultados intermédios” divulgados pelas comissões eleitorais distritais atribuem a vitória à Frelimo em 64 dos 65 municípios. A oposição só ganha na Beira, com o Movimento Democrático de Moçambique (MDM) a liderar neste município. No entanto, as contagens paralelas apontam que a Renamo venceu em grandes cidades como Maputo, Matola e Quelimane.

 

Na quarta-feira da semana passada, o MDM exigiu a recontagem de votos ou a segunda volta em algumas autarquias, acusando o STAE e a CNE de serem responsáveis por todas as irregularidades registadas: “A Comissão Nacional de Eleições não tem capacidade para gerir o processo eleitoral. Precisamos de uma CNE que faça gestão e administração. Tem de se rever o pacote eleitoral, porque o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE) não se está a submeter à CNE”, vincou o presidente do partido.

Lutero Simango reiterou que, onde não há clareza dos resultados, deve ser repetida a votação e, onde não há certeza, os votos devem ser recontados com recurso aos editais originais.

Entretanto, o terceiro maior partido do Parlamento moçambicano na Beira submeteu um recurso no Conselho Constitucional para reclamar votos alegadamente desviados a favor da Frelimo neste município.

O MDM reclama a reposição da "verdade eleitoral", acusando a Comissão Distrital de Eleições da Beira de ter desviados votos a favor da Frelimo.

"Nós não concordamos com os resultados aqui anunciados. Nós fizemos o nosso apuramento e tínhamos por volta de 68% de votos, ao contrário de que ouvimos", afirmou Domingos de Albuquerque, mandatário do MDM. "São nove por cento de votos retirados do MDM. Então, é isto que nos fez interpor recurso ao Conselho Constitucional, na expectativa de vermos reposta a legalidade. A CED na cidade da Beira atribuiu 24 mil votos à Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique]. Nós não sabemos de onde saíram, para dizer que houve votos fantasmas a favor do partido Frelimo", continuou.

 

De acordo com o edital do apuramento distrital intermédio apresentado na Beira pelo presidente da Comissão Distrital de Eleições, Otávio Paulo, o MDM reuniu 112.963 votos (58,16%), seguido da Frelimo, com 73.302 votos (37,74%), e da Renamo, com 7.045 votos (3,63%).

Consórcio eleitoral da sociedade civil descreve “pandemónio eleitoral”

O consórcio “Mais Integridade”, constituído por seis organizações da sociedade civil - CESC, FAMOD, Solidariedade, MISA Moçambique, Comissão Episcopal de Justiça e Paz da Igreja Católica e Centro de Integridade Pública (CIP), que o lidera - avançou que os dias que se seguiram às eleições de dia 11 de outubro foram marcados por um verdadeiro “pandemónio eleitoral”, com “violência, manifestações, baleamentos, detenções, agressões e silêncio dos órgãos eleitoral”.

O “Mais Integridade” observou o processo eleitoral desde o recenseamento, passando pela campanha eleitoral, processo de votação, contagem de votos e subsequente apuramento dos resultados. Para o processo de votação, o consórcio realizou, inclusive, uma contagem paralela de votos em 16 autarquias e acompanhou o ato em todas as 65 autarquias com um
total de 1.238 observadores e 65 correspondentes. Os seus observadores foram denunciando inúmeras irregularidades, denúncias estas que podem, inclusive, ser consultadas na página Portal de Eleições do CIP.

Processo “não foi transparente, íntegro e imparcial”

A 14 de outubro, o “Mais Integridade” divulgou um comunicado de imprensa, intitulado “O Roteiro da Fraude, como foi que a Frelimo manipulou os resultados das eleições autárquicas 2023” em que, com base na sua observação e evidências recolhidas nas mesas de voto, assinala que eleições
autárquicas de 11 de outubro “não foram transparentes, íntegras e imparciais”.

 

O consórcio registou “um nível elevado de fraude e má conduta por parte das autoridades eleitorais, dos membros das mesas de voto e dos brigadistas do recenseamento eleitoral”. E refere que “uma fraude particularmente grave surgiu durante o processo de contagem, em que os editais foram adulterados”. O “Mais Integridade” dá ainda conta do “uso abusivo da força pelas Forcas de Defesa e Segurança para intimidar e expulsar observadores e delegados de candidatura dos partidos da oposição das Mesas de Voto e desviar urnas para locais desconhecidos diferentes daqueles onde deveria decorrer o apuramento”. Bem como da atuação de agentes das forças de segurança que “agiram em defesa e apoio de uma formação política no poder e usaram excessivamente da força contra eleitores nos diferentes Municípios observados”.

No documento são detalhadas, ao pormenor, várias das ações levadas a cabo pela Frelimo, seus representantes e apoiantes, em alguns momentos em conluio com o próprio Secretariado Técnico de Administração Eleitoral beneficiar o partido no poder nestas eleições.

O consórcio eleitoral escreve, por fim, que existem “indícios mais do que suficientes para afirmar que o processo de apuramento das eleições autárquicas de 2023 não foi transparente, íntegro e imparcial” e apela à CNE para que “seja transparente e apresente as planilhas de todas as mesas e os respetivos editais”, e convide “os partidos que concorreram a apresentar os seus editais, porque só assim poder-se-á devolver a dignidade ao processo”.

O “Mais Integridade” insta a CNE a “repor a verdade da escolha dos munícipes de Chiure, que votaram no partido Renamo (50%) dos votos” e a “definir a linha de comando e do enforcement das decisões da Comissão Nacional de eleições e acabar com o poder discricionário não só das comissões provinciais e distritais, STAE’s provinciais e Distritais, mas também dos presidentes das Mesas de voto que tomam decisões arbitrarias contrárias a lei, sem que sejam questionados por ninguém”.

O consórcio quer ainda que a CNE credencie “as organizações para observar todo o processo eleitoral e permitir que estas emitam credenciais para seus próprios observadores a luz desta autorização emitida pela autoridade eleitoral”, bem como que as Forcas de Defesa e Segurança se abstenham de “operar ao serviço de uma das forcas partidárias em competição e assumir uma postura neutra e imparcial para o bem do processo eleitoral moçambicano”.

Apelos à reposição da legalidade multiplicam-se

Na semana passada, os bispos católicos de Moçambique fizeram um apelo para que a justiça reponha a legalidade dos processos eleitorais. De acordo com o Conselho Episcopal de Moçambique, “não há legalidade sem verdade”.

Ainda antes do CC se pronunciar no sentido de determinar que a decisão de anular ou ordenar a repetição de eleições não cabe aos tribunais distritais, a Ordem dos Advogados de Moçambique emitiu um comunicado para manifestar a sua “satisfação com o funcionamento tempestivo do poder judicial neste processo eleitoral autárquico em curso”. Segundo a Ordem, isto representa, “um exercício equilibrado de poderes e dissuadindo práticas que possam distorcer a democracia e a vida em sociedade”.

Numa carta datada do passado domingo, o Conselho Anglicano de Moçambique (CAM) alertou os órgãos eleitorais e, especialmente, o seu bispo Dom Carlos Matsinhe, que dirige a Comissão Nacional de Eleições, para a necessidade de “observância da Lei Eleitoral e a prática de verdade”. Os bispos anglicanos justificam o apelo com o argumento de que “o povo moçambicano, os eleitores esperam de vós a honestidade, integridade, transparência, respeito e a verdade”.

 

Termos relacionados: InternacionalMoçambique