Na sequência de dois anos de investigação promovida pela Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da Polícia Judiciária (PJ), baseada em dezenas de testemunhos, relatórios médicos e cruzamento de informações recolhidas, o Ministério Público (MP) acusa agora dezoito agentes da PSP, entre os quais um chefe, de crimes de tortura, sequestro, injúria e ofensa à integridade física qualificada, agravados pelo ódio e discriminação racial contra seis jovens da Cova da Moura, na Amadora.
Segundo avança o Diário de Notícias, alguns dos polícias são também acusados de crimes de falsificação de relatórios, de autos de notícia e de testemunho, e a uma subcomissária e uma agente são ainda imputados os crimes de omissão de auxílio e denúncia. O MP aponta que na esquadra todos os agentes participaram ou colaboraram com os crimes.
As conclusões da investigação da UNCT vêm contradizer as da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI), que determinou o arquivamento do inquérito ao caso e de sete dos nove processos disciplinares abertos, sinalizando "inexistir prova dos factos geradores da factualidade em causa". Somente dois agentes foram alvo de penalizações, tendo um sido suspenso seis meses e outro transferido.
O MP mandou arquivar todos os processos dos polícias contra os jovens, que chegaram a ser constituídos arguidos por alegadamente terem tentado invadir a esquadra. Os seis moradores da Cova da Moura chegaram a ficar sujeitos a termo de identidade e residência (TIR) indiciados pelos crimes de resistência e coação contra funcionário, injúria, dano, tirada de presos e ofensa à integridade física.
Acontecimentos remontam a fevereiro de 2015
Ao início da tarde de 5 de fevereiro de 2015, uma patrulha da PSP da esquadra de Alfragide realizou uma operação de rotina no bairro da Cova da Moura. Nessa ação, a PSP deteve um jovem e agrediu-o violentamente, apesar de ele não ter oferecido resistência. A agressão foi presenciada por muitas pessoas, que protestaram contra a ação da polícia. Bruno Lopes foi encostado a uma parede, de braços e pernas abertos. Os agentes disseram-lhe "estás a rir de quê, macaco? Encosta-te aí à parede!". Após ser espancado violentamente, o jovem caiu no chão a sangrar da boca e do nariz.
Perante os protestos, os agentes da PSP reagiram violentamente, perseguindo os moradores com cassetetes e disparos de balas de borracha.
Zulmira Coelho, da associação Moinho da Juventude, disse na altura à Lusa que a polícia efetuou disparos em resposta às queixas de alguns moradores.
Uma mulher de 35 anos, que se encontrava a estender roupa no primeiro andar de uma casa foi "atingida com três tiros de borracha, no peito, na coxa e na face, de raspão", afirmou Zulmira Coelho, que acompanhou a vítima ao Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa.
Agressões violentas dentro da esquadra de Alfragide
Seis amigos de Bruno Lopes, entre os quais Flávio Almada, conhecido como “rapper” LBC, e Celso Barros, dirigentes da Associação Moinho da Juventude, que desenvolve vários projetos de inclusão social no bairro, dirigiram-se à esquadra.
Conforme adianta o MP, os agentes começaram a agredir os jovens sem qualquer justificação. Dois deles ainda conseguiram fugir. Flávio, Celso, Paulo e Miguel e ainda um quinto elemento, Rui Moniz, que estava a sair de uma loja de telemóveis, foram arrastados para dentro da esquadra.
Foram algemados e atirados para o chão, sendo alvo de pontapés, socos, bofetadas, pisadelas, tiros com balas de borracha: "Vão morrer todos, pretos de merda!", exclamou um dos polícias. "Não sabem como odeio a vossa raça. Quero exterminar-vos a todos desta terra. É preciso fazer a vossa deportação. Se eu mandasse vocês seriam todos esterilizados", afirmava outro agente. Um terceiro vociferava: "É melhor irem para o ISIS", "vocês vão desaparecer, vocês, a vossa raça e o vosso bairro de merda!".
Rui Moniz, que sofreu um AVC quando tinha 9 anos e padece de uma paralisia na mão direita, clamava por ajuda, mas, em vez disso, foi cada vez mais agredido e humilhado: "Então não morreste (do AVC)? Agora vai dar-te um que vais morrer. Ainda por cima és pretoguês filho da puta!". "Não é nada comigo", respondeu, por sua vez, uma agente a quem Rui Moniz suplicava por auxílio.
Bruno, Flávio, Celso, Rui, Miguel e Paulo permaneceram detidos durante dois dias, durante os quais foram humilhados e sujeitos a enorme violência física e psicológica. Só no dia 7 de fevereiro foram presentes ao juiz de instrução criminal.
"Estado esteve tempo demais cego e surdo sobre a existência do racismo dentro das instituições"
Em declarações à TSF, Mamadou Ba, dirigente da Associação SOS Racismo, afirmou que “é importante ter acontecido finalmente esta acusação”.
Mamadou Ba sublinhou, contudo, que “agora é preciso não festejar tão cedo": "É preciso deixar serenamente que a justiça faça o seu trabalho. É um passo importante para a afirmação da justiça e para o conceito da igualdade da justiça para todos. Agora aguardo com expectativa. Houve vários casos em que, primeiro, houve acusação, inclusive em que houve mortes na mão da polícia, e a polícia acabou por ser ilibada”, frisou.
Já em declarações à Antena 1, Mamadou Ba sinalizou que “finalmente pode abrir-se um precedente para que as vítimas de racismo não tenham medo de recorrer à justiça, porque terão a certeza de que as suas queixas não cairão em saco roto, e porque a instituição das forças de segurança pública deixará de estar numa espécie de biombo da impunidade quando pratica racismo”.
“Em todo o espaço público é preciso ordem, mas a ordem tem de começar primeiro pela observância dos códigos de procedimento das forças de segurança”, afirmou o dirigente associativo.
Segundo Mamadou Ba, “é preciso desfazer esse mito de que os bairros são perigosos”, já que “toda a narrativa sobre a perigosidade dos bairros é para sustentar efetivamente a atuação desproporcionada e o uso e abuso da violência policial por parte das forças de segurança”.
“É uma boa notícia, é sinal de que Portugal é um país democrático e que há justiça”
Para a coordenadora da associação Moinho da Juventude, Isabel Monteiro, a acusação do Ministério Público contra 18 agentes da PSP por agressões a jovens da Cova da Moura “é uma boa notícia, é sinal de que Portugal é um país democrático e que há justiça”.
Isabel Monteiro sinalizou que, após os acontecimentos de 2015, a situação “melhorou um bocadinho”, porque em algumas intervenções as autoridades “tiveram mais cuidado, mais tato”. A dirigente associativa acrescentou, contudo, que, “além desse caso de fevereiro de 2015, já tivemos vários casos em que fazíamos queixas de atuação da polícia e os processos foram arquivados”, como foi o caso de um homem “com um braço partido, que foi espancado” em 2016.
Isabel Monteiro referiu que o Moinho da Juventude mantém contacto mais assíduo com a esquadra da Damaia, que tem agentes que fizeram serviço de proximidade, frisando que a instituição “não está contra a polícia”.
“Eles que venham, mas que atuem como deve ser. Se a pessoa fez alguma coisa eles identificam a pessoa e levam a pessoa, [mas] eles antes de identificarem, antes de perguntarem à pessoa o que se passa, começam a bater. Isso não é uma maneira correta [de atuar] ”, vincou.