Mike Davis: a apocalíptica “segunda natureza” da Califórnia

04 de outubro 2020 - 10:57

O fogo no Antropoceno tornou-se no equivalente físico de uma guerra nuclear sem fim.  Artigo de Mike Davis.

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Foto de incêndio florestal na Califórnia, via U. S. Department of Agriculture / Flickr.

No caminho para Las Vegas, e a 20 minutos da fronteira estadual, há uma saída da I-15 que conduz a uma estrada asfaltada de duas pistas chamada Cima Road. Esta é a modesta porta de entrada para uma das florestas mais mágicas da América do Norte: quilómetros e quilómetros de velhas árvores de Josué, uma espécie que cobre um campo de pequenos vulcões do Pleistoceno, conhecidos como Cima Dome, Cúpula de Cima. Os reis da floresta têm quatorze metros de altura e mil anos de antiguidade. Em meados de agosto, aproximadamente 1,3 milhões dessas impressionantes iúcas gigantes pereceram no incêndio da Cúpula, causado por um raio.

Esta não é a primeira vez que vemos o leste do deserto de Mojave em chamas. Em 2005, um incêndio queimou mais de 4 mil quilómetros quadrados de deserto, mas não penetrou na Cúpula, o coração da floresta. As plantas do deserto, ao contrário dos carvalhos da Califórnia e do chaparral, não estão adaptadas ao fogo, portanto, a sua recuperação é uma incógnita. O surgimento de uma erva invasiva conhecida como bromo vermelho criou um subsolo inflamável para as árvores de Josué e transformou o deserto de Mojave numa ecologia de fogo. (O invasor desempenhou esse papel na Grande Bacia, por décadas.) O aumento da frequência dos incêndios irá acelerar a mudança da vegetação e, por fim, colocar em risco a existência das árvores.

O fato de que os nossos desertos estejam a queimar-se é a expressão regional de uma tendência global: um planeta em chamas pelas mudanças climáticas que desencadeou uma perigosa transformação da ecologia das plantas e, portanto, das populações da fauna, do Ártico à Patagónia, de Montana à Mongólia. A Califórnia é um exemplo paradigmático desse ciclo vicioso, em que o calor extremo leva a incêndios extremos que impedem o rejuvenescimento natural e aceleram a transformação de paisagens icónicas em pastagens empobrecidas e encostas de montanhas sem árvores.

Em inícios deste século, os gestores hídricos e as autoridades encarregadas dos incêndios concentraram-se principalmente na ameaça de secas plurianuais causadas pela intensificação dos episódios de La Niña e a persistência das cúpulas de alta pressão, ambos potencialmente atribuíveis ao aquecimento antropogénico.

Os piores temores tornaram-se realidade na grande seca da década anterior, talvez a maior nos últimos 500 anos, que provocou a morte de milhões de carvalhos e pinheiros, que por sua vez forneceu combustível para as tempestades de fogo de 2018 e 2019.

As últimas catástrofes, no entanto, forçaram os cientistas a identificar um novo fenómeno, a "seca quente". Mesmo em anos com chuvas normais, o calor extremo do verão - a nova normalidade - está a causar uma perda em massa de água por evaporação nos reservatórios e comunidades vegetais. Se o inverno e o início da primavera são húmidos, podem encantar-nos com exuberantes exibições de plantas com flores, mas também produzem muita erva e ervas daninhas que depois assam na fornalha do verão e se tornam gatilhos de fogo quando os ventos demoníacos voltam.

O desenvolvimento imobiliário em zonas de risco de incêndio alto e extremo, onde foi construída a maior parte das novas moradias no estado, nos últimos vinte anos, também alimentou esta contrarrevolução botânica, já que o desmatamento e extração de madeira do chaparral abre novos caminhos para a mostarda-preta e os bromos, plantas incendiárias. A fórmula abreviada para um mega-incêndio é: arbustos mais árvores mortas ou afetadas pela seca.

A vegetação mediterrânica (a da Califórnia a oeste das serras e ao sul de Klamath) co-evoluiu acompanhada pelo fogo e, de facto, os carvalhos e a maioria das plantas chaparrais requerem fogos episódicos para se reproduzir. No entanto, o fogo extremo que agora é comum na Grécia, Espanha, Austrália e Califórnia está a destruir as adaptações do Holoceno e produzindo mudanças irreversíveis na biota. A única limitação real para incêndios florestais futuros é a massa de combustível disponível. Haverá mais áreas que se assemelham ao litoral de Malibu, onde os incêndios acontecem no mesmo setor a cada uma ou duas décadas, dependendo do período de oito a doze anos que leva para que arbustos de sálvia da Costa amadureçam.

No final dos anos 40 do século passado, as ruínas de Berlim tornaram-se um laboratório no qual cientistas naturais estudaram a sucessão vegetal, após três anos de incessantes bombardeamentos e explosivos incendiários. O que se esperava era que a vegetação original da região, os carvalhos e respetivos arbustos, fosse restabelecida rapidamente. Para seu horror, não foi assim. No seu lugar surgiram plantas exóticas, a maioria delas de fora da Alemanha, que ali se estabeleceram como as novas espécies dominantes.

Os botânicos continuaram as suas investigações até ao final da limpeza das últimas áreas bombardeadas, nos anos 1980. A persistência desta vegetação de zona morta e a incapacidade das plantas florestais da Pomerânia de se restabelecerem gerou um debate sobre a Natureza. Argumentou-se que o calor extremo das queimadas e a pulverização das estruturas de tijolos teriam criado um novo tipo de solo que convidou à colonização por parte de plantas como a "árvore do céu" (Ailanthus), que evoluiu em morenas de folhas de gelo do Pleistoceno. Uma guerra nuclear total, alertaram, poderia reproduzir essas mesmas condições em grande escala.

O fogo no Antropoceno tornou-se no equivalente físico de uma guerra nuclear sem fim. Após os incêndios do Sábado Negro, em Vitória [Austrália], no início de 2009, os cientistas australianos calcularam que a energia libertada foi equivalente à explosão de 1.500 bombas do tamanho da de Hiroshima. As atuais tempestades de fogo nos estados do Pacífico são muito maiores e o seu poder destrutivo deve ser comparado à megatonelagem de centenas de bombas de hidrogénio.

Dos escombros de nossos fogos, uma natureza nova e profundamente sinistra está emergindo em alta velocidade à custa de paisagens que outrora consideramos sagradas. Nossa imaginação mal consegue compreender a velocidade ou escala da catástrofe. Adeus Califórnia, adeus.

Nota:
Este texto foi publicado inicialmente no blog Rosa Luxemburg Stiftung NYC, com o título "California’s Apocalyptic‘ Second Nature". Tradução de Cepat. 

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