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Mike Davis ainda é um bom contador de histórias

Escrevo os meus livros porque espero que as pessoas que os leem não precisem de doses de esperança ou finais felizes, mas que leiam para saber contra o que lutar, e lutem mesmo quando o combate parece sem esperança, diz Mike Davis em entrevista a Sam Dean.
Mike Davis. Pormenor de uma foto de Adam Perez/Los Angeles Times. Reproduzida pelo blogue da Boitempo.
Mike Davis. Pormenor de uma foto de Adam Perez/Los Angeles Times. Reproduzida pelo blogue da Boitempo.

No final de junho, escrevi a Mike Davis para ver se estaria disposto a dar uma entrevista. A sua resposta: “Se não se importa com a longa viagem até San Diego, ficarei feliz em conversar. Estou em estado terminal com um cancro do esófago metastático, mas ainda estou firme e em casa”.

Davis não tem papas na língua. No entanto, sabe como contar algumas histórias. Como esta: nascido em Fontana, criado em El Cajón, passou os anos 1960 na linha da frente de movimentos políticos radicais em Los Angeles, onde ingressou no Partido Comunista ao lado de Angela Davis. Em solidariedade, deu-lhe um carro: um chamativo Chevy de 1954. Um mês depois, numa reunião do Partido, perguntou o que achava, apenas para ouvir que a bateria supostamente tinha explodido e um mecânico “simpático” se tinha oferecido para ficar com ele gratuitamente.

Ou esta: em 1970, ele marchou nas linhas do piquete selvagem dos Teamsters [camionistas], [1] acompanhado por companheiros do sindicato com espingardas de cano serrado por baixo dos seus casacos e sob um sol escaldante de verão. Também teve que fugir da avalanche de xerifes que marchou no Parque Belvedere durante a Moratória Chicana. [2]

Mas o que colocou Davis no mapa cultural é a história de Los Angeles, descrita no seu best-seller de 1990, Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles. O livro, leitura obrigatória para quem quer entender a cidade, detalha a história de Los Angeles como uma máquina corrupta construída para enriquecer a sua elite, enquanto a sua polícia, supremacista e branca, serviu como cão de guarda para golpear, prender e matar desordeiros. Também alertou que outro iminente conflito, Watts 2.0, poderia estar no horizonte. Dezoito meses depois, em abril de 1992, a cidade entrou em convulsão. Davis parecia clarividente, embora dissesse que a raiva latente era evidente para qualquer um que saísse de dentro do próprio carro. Tornou-se uma celebridade menor. Também começou a trabalhar com os líderes das tréguas entre gangues defendendo o reinvestimento no sul de Los Angeles.

Seguiu-se uma série surpreendente de mais de uma dúzia de livros, variando de críticas e histórias do oeste americano a análises históricas abrangentes de como o desastre climático, o capitalismo e o colonialismo fizeram com que os pobres do mundo afundassem nas suas engrenagens e nos colocam perante as calamidades futuras (incluindo pandemias virais globais, previstas em The Monster Knocks on Our Door [O monstro bate às nossas portas], de 2005. Recentemente, voltou ao tema de Los Angeles com Set the night on fire: L. A. In the sixties [Incendiar a noite: L.A. nos anos 1960], de 2020, uma história enciclopédica de Los Angeles nos anos 1960 contada através dos movimentos sociais.

Cara a cara, Davis, de 76 anos, é muito engraçado, infalivelmente generoso e, acima de tudo, parece amar as pessoas. A sua casa está cheia de livros (ele lê “500 páginas por dia”), répteis de estimação e uma coleção de arte e objetos de esquerda que ele compartilha com a sua esposa, a artista e professora Alessandra Moctezuma. A nossa conversa durou do meio-dia ao pôr do sol. Davis presenteou-me com histórias de projetos inacabados e de foragidos que ele conheceu, de alunos perigosos (incendiários, perseguidores) e alunos em perigo (um príncipe fijiano foi esfaqueado durante um trabalho escolar que consistia em “passar a noite em Los Angeles” mas ele agradeceu-lhe por ter proposto o trabalho), e o que considera as suas verdadeiras paixões: a ecologia moribunda da Califórnia e as rochas ígneas que viajou pelo mundo para coletar e armazenar na sua garagem transformada em escritório. Esta entrevista foi condensada e editada.

 

Decidiu interromper os tratamentos de quimioterapia para o cancro do esófago. No que pensa no dia a dia?

Em primeiro lugar, tenho muitas distrações. Leio cerca de 500 páginas por dia – história militar, exploração – e à noite aconchego-me com os meus filhos e assisto a algumas séries policiais.

Sou um celta fatalista e tenho como exemplo a minha irmã mais velha e a minha mãe que morreram como soldados russos em Estalingrado. Pretendo não dececionar [a minha família], ser tão sólido quanto elas. Não estou deprimido. O que mais me preocupava no que diz respeito à morte – o meu pai teve uma morte particularmente agonizante, cujo trauma nunca me deixou completamente – era a ideia de que também poderia ser tão traumático para os meus filhos, que essa seria a memória deles de mim. Mas graças à lei da eutanásia assistida [da Califórnia], tenho controle sobre o ato final.

Mas acho que o que mais penso é que estou extraordinariamente furioso e zangado. Se tenho algum arrependimento é de não morrer em batalha ou numa barricada como eu sempre imaginei romanticamente, lutando.

 

Foi rotulado de “profeta da desgraça” após a publicação de Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles, no qual parecia antecipar as revoltas de 1992 em resposta ao veredicto de Rodney King.[3] Mas descreveu-se como neocatastrofista, no sentido mais estrito de acreditar que a história, da história geológica à história política humana, ocorre mais em saltos violentos, como terramotos e impactos de meteoritos e revoluções, do que através de mudanças graduais. Ainda se considera um catastrofista hoje?

Sim. Mas quero dizer catastrofista em dois sentidos. Um, em ressonância com Walter Benjamin, é a crença no surgimento repentino de oportunidades para saltar para um futuro quase utópico. Mas, claro, catastrófico também no outro sentido, em relação a eventos como pragas. Agora, nos meus últimos dias, sento-me aqui com admiração e leio o jornal, e as pessoas dizem que precisamos de mais carvão, precisamos de mais petróleo, um ano após o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas ter deixado claro que certamente estamos a entrar num mundo com um aumento de pelo menos três graus Celsius, o que é quase inimaginável. E o que tentei escrever e convencer as pessoas é que este é um genocídio planeado. Uma grande minoria, a mais pobre do planeta, está de alguma forma condenada.

E quanto à velha história de que, bem, vão pousar discos voadores e a humanidade vai-se unir numa causa comum, vejam os corpos empilhando-se nas fronteiras e os muros a serem construídos. Sem escolha, os refugiados ambientais morrerão.

 

O seu livro mais recente, Incendiar a noite, é sobre a história do movimento de Los Angeles na década de 1960, e como o Departamento de Polícia de Los Angeles e os Xerifes, junto com o FBI, reprimiram brutalmente grupos ativistas.

Na minha opinião, o DPLA (Departamento de Polícia de Los Angeles) é irreformável. Mas o Departamento dos Xerifes é absolutamente aterrorizante. Até certo ponto, sempre foram: nos anos 1970 participei da Moratória Chicana e do Parque Belvedere, em todos os grandes comícios do Lado Leste, quando os xerifes disparavam. Mas nunca estiveram tão selvagens ou completamente fora de controle como estão agora.

O problema é a cultura e o contexto. Os xerifes mais velhos, como muitos dos mais velhos [do Departamento de Polícia de Los Angeles], são simplesmente irreformáveis. A solução real é demiti-los em massa, assumir as academias, desfazer os seus gangues e, muito importante, exigir que a polícia more nas áreas que patrulham, ou pelo menos dentro dos limites da cidade. Não há como ter um Departamento de Polícia ou um Departamento de Xerifes decente numa cidade tão cheia de contradições económicas e de classe como Los Angeles. Esta não é uma razão para não reformar, mas é uma razão para ser realista quanto aos seus limites.

 

Passou grande parte da sua vida na linha de frente das lutas por justiça social e mudança política, do CORE [Congresso da Igualdade Racial] e SDS [Estudantes por uma Sociedade Democrática], no início, até ao ativismo laboral e movimentos de solidariedade internacional em anos posteriores. O ato de se organizar parece ser baseado na esperança de mudar o mundo, mas os seus livros pintam um quadro sombrio: colapso ecológico, corrupção política, supremacia branca, contínua impiedade para com os pobres do mundo. Como mantém a esperança?

Para ser franco, não acho que a esperança seja uma categoria científica. E não acho que as pessoas lutam ou mantém os seus rumos por esperança. Acho que as pessoas fazem isso por amor e raiva. Toda a gente pergunta: não tens esperança? Não acreditas na esperança? Para mim, isso não é uma questão de racionalidade. Tento escrever da forma mais honesta e realista possível. E sabe, vejo coisas más. Vejo uma cidade que se está a deteriorar por baixo. Vejo as paisagens que são tão importantes para mim, como um californiano que está a morrer, irremediavelmente mudadas. Vejo o fascismo. Escrevo os meus livros porque espero que as pessoas que os leem não precisem de doses de esperança ou finais felizes, mas que leiam para saber contra o que lutar e lutem mesmo quando o combate parece sem esperança.

 

Nas entrevistas de 2020, expressou algum otimismo sobre a energia que viu nas ruas durante os protestos do Black Lives Matter. Dois anos depois, onde está essa energia?

Tenho idade suficiente para dizer com alguma autoridade que esta geração é diferente de qualquer outra geração do pós-guerra. A combinação de ver os seus direitos retirados, por um lado, e enfrentar a perda de capacidade económica, por outro, radicalizou-os e deu às lutas, que alguns denunciam como políticas identitárias, uma força muito material.

Os jovens importam-se com o seu futuro. Antes de me ter aposentado do ensino na [Universidade da Califórnia] Riverside, não consigo contar quantas conversas tive com jovens que estavam simplesmente a agonizar. Eram os primeiros a ir para a faculdade na sua família e, de repente, os seus pais perdiam os empregos e eles não sabiam para onde se virar, porque tantas expectativas e tantos sacrifícios tinham sido feitos para eles entraram na faculdade que, de alguma forma, isso se iria dar certo. E isso não estava a acontecer

Mas o maior problema político na América, agora, é a desmoralização de dezenas de milhares, provavelmente centenas de milhares de jovens ativistas. Parte do problema é a falta de estrutura organizacional, principalmente organizações de organizadores. Não há liderança que conduza o caminho.

Quero dizer que sou um apoiante de Bernie Sanders, mas a campanha de Sanders manteve essa ideia de que usamos movimentos para construir política eleitoral e política eleitoral para construir movimentos. Se olhar para a história dos movimentos populares em relação à política eleitoral, isso quase nunca foi verdade. Quero dizer, Bernie e Alexandria Ocasio-Cortez e assim por diante, estão em todas as linhas de piquete e estão sempre a favor da causa correta, mas permitiram que o movimento nas ruas se dissipasse, e os jovens estão muito desmoralizados.

 

O que poderia estar a acontecer diferentemente?

Porque a direita, a extrema-direita, é dona das ruas e não a esquerda? Não é como na Europa, onde em muitos países o ativismo juvenil está inativo ou em declínio. Existem milhões de pessoas iguais [ao meu filho de 18 anos] mas quem lhe diz onde lutar ou o que fazer?

Quem te convida para uma reunião? Em vez disso, tudo o que recebem, e o que eu recebo todos os dias, são dez solicitações dos democratas pedindo-me para apoiar os seus candidatos. Eu voto nesses candidatos. Acho que temos que apoiá-los, mas o movimento é mais importante. E esquecemos o uso da desobediência civil disciplinada e agressiva, mas não violenta.

Por exemplo, as mudanças climáticas. Deveríamos estar sentados na sede de todas as companhias de petróleo, todos os dias da semana. Poder-se-ia facilmente organizar uma campanha nacional. Temos toneladas de pessoas que estão dispostas a serem presas, que estão muito dispostas a fazê-lo. Ninguém está a organizar isso.

 

Disse que a desobediência civil agressiva – e não violenta – é necessária. Mas e a violência política? Escreveu um livro sobre a história do carro-bomba, The Buddha Car [O Carro de Buda]. Também viveu as duas revoltas de Los Angeles, era amigo dos Panteras Negras, morou em Belfast durante o conflito. [4] Está surpreendido que não haja mais violência política nos EUA?

Recordo-me, no auge do medo dos Panteras Negras, de dizer às pessoas: o incrível é que haja tão pouca violência de negros contra brancos na história americana, em comparação com a violência implacável de brancos contra negros.

Mas não temos visto o tipo de violência que vem da direita, nem vemos – porque não fomos suficientemente perigosos recentemente – o que acontecerá quando todos os novos poderes de vigilância repressiva, toda a legislação antiterrorismo, atacar os movimentos progressistas. A reação dos democratas à guerra contra o terrorismo, na maioria dos projetos de lei, tem sido remodelar um pouco as arestas, mas nunca tentar desmantelá-los.

 

Escreveu recentemente sobre a megalomania por trás da invasão da Ucrânia por Putin, concluindo: “Nunca tanto poder económico, mediático e militar se fundiram em tão poucas mãos. Elas deveriam nos fazer homenagear os túmulos dos heróis Aleksandr Ilitch Uliánov, Alexander Berkman e o incomparável Sholem Schwarzbard”. Eram todos assassinos ou tentaram assassinar pessoas, não?

Estudou o Sholem? Ele matou o grande herói do movimento de independência da Ucrânia [Symon Petliura]. Matou-o numa rua de Paris e um júri de Paris considerou-o inocente assim que ouviram a história dos pogroms e coisas assim. Mais ou menos como o júri de Angela Davis. Um grande personagem.

Um dos principais projetos de livros que nunca terminei, embora tenha sido entrevistado sobre ele e tenha sido publicado como um livro independente em francês, foi um projeto chamado Heroes of Hell [Heróis do inferno] que analisa a revolução violenta no século XIX e início do século XX. Os bolcheviques sempre se opuseram a atos de violência individuais porque a Rússia tinha muita experiência disso antes da revolução; o argumento leninista era que a ação de massa substituiu o ato heroico, o indivíduo heroico sacrificado pela classe. Fazia muito sentido.

Para mim, a violência política é algo que deve ser julgado muito mais racionalmente do que moralmente. E há casos: após a morte de Franco, a transição franquista para preservar o regime já estava preparada. Carrero Blanco foi o sucessor ungido de Franco e um grupo explodiu o seu carro sobre uma catedral. Isso perturbou totalmente a sucessão e possibilitou uma relativa democratização. Do lado negativo, sabemos que se Fanni Kaplan não tivesse atirado em Lenine talvez não houvesse Estaline. Para mim é uma questão em aberto que depende do contexto e das condições.

Eu, aliás, nunca apoiei os Weathermen. [5] Na verdade, odeio profundamente os Weathermen. Essas pessoas fizeram exatamente o que os polícias teriam feito e agora reinventaram a história para se tornarem heróis. Para mim, são apenas crianças ricas, junto com algumas crianças comuns, reproduzindo o “Zabriskie Point” [6] para si mesmas.

 

Não decidiu ir para a faculdade até aos 30 anos e o seu primeiro livro, Prisoners of American Dream [Prisioneiros do sonho americano] foi lançado quando você tinha 40 anos. Sempre quis escrever?

Não. Aprender a escrever é a coisa mais difícil que já fiz. Às vezes eu tinha que datilografar uma resma inteira de papel numa máquina de escrever elétrica só para formular a primeira frase. Foi absolutamente brutal.

 

E porque quis aprender?

Porque fui um fracasso miserável como organizador e palestrante. O primeiro discurso que fiz foi um comício anti-guerra em Stanford, em 1965. Estava a trabalhar em algum projeto maluco do SDS [Estudantes para uma Sociedade Democrática] em Oakland. Consegui afugentar três quartos da multidão em cerca de cinco minutos. Passei anos em pequenos grupos tentando-me reagrupar com grupos ainda menores, indo a todos os comícios, tentando isto e aquilo. E a escrita tornou-se a única habilidade útil para a atividade política, para o movimento.

 

Quem influenciou mais a sua forma de escrever? O que leu que lhe fez querer escrever?

Eu nunca li muita ficção, então a pouca que li foi muito influente, começando com As Vinhas da Ira. A linguagem bíblica e a cadência de Steinbeck. Então a New Left Review foi uma influência inicial na minha escrita e uma influência negativa de certa forma.

Uma das minhas influências literárias e intelectuais mais profundas foi o marxista galês Gwyn Williams. Ele tinha saído do grupo de historiadores comunistas, [tinha sido] o primeiro a escrever um artigo em inglês sobre Gramsci, mas acima de tudo ele tinha esse domínio da história galesa em tantos níveis diferentes. Então, até certo ponto, eu queria que Los Angeles fosse…

 

O seu País de Gales?

Sim! E, claro, na história natural, a grande influência sobre mim foi o meu amigo Steve Pyne. Ele é o historiador do fogo, e simplesmente um ótimo personagem no geral. Era bombeiro e foi para Stanford com uma bolsa de basebol. Peguei o seu livro quando estava com muitas saudades de Londres e li a sua história social do fogo na América. E, de repente, eu queria escrever a história ambiental de Los Angeles como uma história política e social.

Mas o verdadeiro núcleo da minha escrita era contar histórias. Disse a um dos meus colegas de Riverside que não sou escritor, mas sou um ótimo contador de histórias. E estive perto de alguns dos melhores contadores de histórias do planeta. Sabe, nos pubs de Belfast e nos bares de lenhadores de Butte, Montana, ouvi ótimas histórias.

 

Quais são algumas das reações mais surpreendentes que viu ao seu trabalho?

Após o lançamento de Cidade de quartzo, tornei-me amigo íntimo de Kevin Starr. Começámos a debater. Ele era tão charmoso e envolvente que comecei a vê-lo para almoçar com a sua mulher e ele era um frequentador regular do Bohemian Grove. [7] Então, ele convidou-me para o Bohemian Grove.

 

A sério?

Eu disse-lhe: “O quê? Eles nunca me deixariam entrar no Bohemian Grove num milhão de anos”. Ele respondeu: “Ah, sim, vão. O único problema é que nunca poderá filmar ou escrever sobre ele”. Então eu disse: “Que pena”. Os meus amigos ficaram chateados comigo. Todos queriam que eu fosse ao Bohemian Grove. Mas tudo o que acontece lá é George Shultz e um bando de bilionários correndo por aí, fazendo xixi em sequoias como crianças de 7 anos. Recusei outros convites que realmente irritaram os meus amigos. Recebi um convite para ir ao Vaticano.

 

Quem o convidou para o Vaticano?

O Gabinete do [Papa] Francisco. Por causa do meu livro Planeta Favela. E eu decidi não ir.

 

Antes de terminarmos, há alguma, não sei, exortação, apelo à ação, que queira compartilhar?

Ah, não. Eu resisti a várias coisas, uma delas é a ideia literária de que tens que escrever algo profundo sobre o teu próprio fim. Não tenho intenção de fazê-lo, nem qualquer compulsão para escrever algo falso-heroico. Quando a minha irmã mais velha morreu, eu tinha a certeza de que ia morrer também. Embora não soubesse que seria do mesmo cancro que ela teve. E escrevi dois poemas que mais ou menos resumem minha visão de vida, poemas simples. Ficarão para mais tarde.

Acho que as pessoas que leem as minhas coisas entendem muito bem. Uma das razões pelas quais esta “ajuda para morrer” é importante para mim é que também garante que eu não perca o meu senso de humor. Mas o que a minha irmã mais velha me ensinou quando recebeu o veredito final – e ela foi tão direta e corajosa quanto em tudo em sua vida – foi que esta é uma oportunidade de ensinar os seus filhos a não ter medo disso. Ficar triste, mas não temer.

Sou apenas uma pessoa comum passando pelo que toda pessoa comum acaba por passar em circunstâncias que não são especialmente trágicas. Exceto, talvez, por alguns da família.

Mas não é preciso fazer declarações ponderadas. Tem sido mais divertido assistir aos Golden State Warriors [8] a jogar, ou séries de mistério escandinavas, ou ler livros e, acima de tudo, relaxar e sair com a família. Tenho muita sorte de estar cercado por todo o amor que tenho aqui.


Notas da tradução
[1] Aqui, Mike refere-se à Irmandade Internacional de Teamsters (IBT), também conhecida como Sindicato dos Teamsters. Trata-se de um sindicato dos Estados Unidos e no Canadá formado em 1903 através da fusão do sindicato The Team Drivers International e do sindicato Teamsters National Union.

[2] Marcha histórica em oposição à Guerra do Vietname. Aconteceu em 29 de agosto de 1970, protagonizada por descendentes dos povos nauas, um dos principais grupos culturais da Mesoamérica. Dos enviados para o combate, 10% dos cidadãos dos estados do sudoeste do país eram mexicanos-americanos e 20% deles morreram no Vietname. O protesto foi fortemente reprimido por forças policiais, mesmo contando com mais de trinta mil pessoas nas ruas de Los Angeles.

[3] Rodney King foi um motorista de táxi americano conhecido por ter sido brutalmente agredido por vários polícias de Los Angeles em 3 de março de 1991, depois de ser perseguido enquanto estava em liberdade condicional por roubo. Morreu em junho de 2012 num afogamento acidental.

[4] Sam Dean refere-se ao confronto armado nacionalista inter-étnico que ocorreu na Irlanda do Norte, de 1968 a 1998. O conflito foi protagonizado pelos protestantes da Irlanda do Norte, de um lado, que buscavam preservar laços com o Reino Unido. Do outro, estavam os republicanos irlandeses do IRA (Exército Republicano Irlandês).

[5] Organização de esquerda radical fundada em 1969 no campus Ann Arbor da Universidade de Michigan. Operou até ao ano de 1977.

[6] Zabriskie Point é um filme de Michelangelo Antonioni lançado em 1970 que mostra o movimento da contracultura dos EUA na época. O nome refere-se ao marco natural Zabriskie Point, no Vale da Morte, na Califórnia, EUA, local onde ocorreram algumas filmagens.

[7] Bohemian Grove é um acampamento localizado em Monte Rio, na Califórnia, pertencente a um clube masculino privado com sede em São Francisco. No dia primeiro de julho de cada ano, o acampamento recebe, durante duas semanas, alguns dos homens mais poderosos do mundo. Desde 1899, recebe apenas os membros masculinos recrutados principalmente na elite política, económica, artística e mediática dos Estados Unidos. Como medida da exclusividade do clube, o sócio é informado que a lista de espera é de 15 a 20 anos.

[8] Equipa de basquetebol da Califórnia pertencente à NBA (National Basketball Association).


Sam Dean é um repórter de negócios do Los Angeles Times que cobre o setor de tecnologia no sul da Califórnia. Trabalhou anteriormente como redator de artigos para várias publicações, incluindo Newsweek, The Verge, 538 e Lucky Peach.


Mike Davis nasceu na cidade de Fontana, Califórnia, em 1946. Abandonou os estudos precocemente, aos dezasseis anos, devido a uma grave doença do pai. Trabalhou como açougueiro, motorista de camiões e militou no Partido Comunista da Califórnia meridional antes de regressar às salas de aulas. Aos 28 anos, ingressou na Universidade da Califórnia de Los Angeles para estudar economia e história. Atualmente, mora em San Diego, é um distinguished professor no departamento de Escrita Criativa da Universidade da Califórnia, em Riverside, e integra o conselho editorial da New Left Review. Autor de vários livros, entre eles Ecologia do medo, Holocaustos coloniais, O monstro bate à nossa porta, Planeta Favela, Apologia dos bárbaros e Cidade de Quartzo.


Entrevista publicada originalmente no Los Angeles Times em 25 de julho de 2022. Texto traduzido por Marcelo Bamonte para o blogue da Boitempo. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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