Massacre de Wiriamu: “a luta pela memória rompeu o gigante apagão histórico”

16 de dezembro 2022 - 14:13

Pedro Filipe Soares assinalou a passagem de meio século desde o “massacre esquecido” que só recentemente tem sido reconhecido pelas autoridades portuguesas, sublinhando que reconhecê-lo “é o princípio do fim da narrativa colonialista portuguesa, mas há muito por fazer”. E algumas das vítimas contam o que aconteceu.

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Jorge Wiriyamu e Doquiria Gucinho junto ao memorial do massacre.Foto de ANDRÉ CATUEIRA/ LUSA.
Jorge Wiriyamu e Doquiria Gucinho junto ao memorial do massacre.Foto de ANDRÉ CATUEIRA/ LUSA.

Esta sexta-feira, passam exatamente 50 anos desde o massacre de Wiriamu, na província de Tete, em Moçambique, perpetrado pelo exército colonialista português, nomeadamente a 6ª Companhia de Comandos de Moçambique, que assassinou cerca de 400 civis.

O evento só recentemente foi reconhecido pelas autoridade portuguesas. Em setembro, o primeiro-ministro, em visita a Moçambique, pediu desculpas, considerando-o um “ato indesculpável que desonra a nossa História”. Esta sexta-feira, o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, num vídeo difundido na sua conta de Twitter, seguiu pelo mesmo caminho, afirmando que “devemos honrar as vítimas e também saudar os capitães de Abril que nos libertaram do regime que o cometeu”.

Wiriamu: O massacre esquecido

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Também na sua conta de Twitter, Pedro Filipe Soares fez questão de assinalar a efeméride escrevendo que “as vítimas dos massacres realizados na guerra colonial venceram o silêncio” e que “meio século depois, a luta pela memória rompeu o gigante apagão histórico”. Para ele, “reconhecer Wiriyamu é o princípio do fim da narrativa colonialista portuguesa, mas há muito por fazer”.

Voz às vítimas

Passado meio século, o testemunho direto das vítimas já só pode ser dado por poucas pessoas. A Lusa foi ouvi-las.

Uma delas é Doquiria Gucinho que ainda tem esses dias marcados no corpo através de uma cicatriz na perna direita. Fala numa “banhada de sangue” que começou quando estava sentada no pátio de sua casa e a aldeia foi cercada por cinco helicópteros e dois jatos de guerra. Fugiram para dentro de casa mas as tropas “iam matando as pessoas” ao mesmo tempo que ateavam fogo às palhotas. Depois, juntaram os sobreviventes e interrogaram-nos. O seu marido foi morto à sua frente por ter uma esferográfica no bolso da camisa, o que achavam que indiciaria que seria um dos chefes. Outros homens foram sendo executados em fila e “atiraram uma granada" para a zona onde estavam as mulheres. Foi aí que ficou ferida.

Vinte Gandar é outros dos sobreviventes. Estava na aldeia Jemusse, perto de Wiriamu, onde também militares entraram, descendo dos helicópteros através de cordas, e também procedendo a interrogatórios: “começaram a bater nas pessoas, levavam as mulheres, violavam-nas perante as outras”, houve quem fosse preso dentro de casa tendo esta sido queimada, houve quem fosse baleado quando tentou fugir.

Gandar foi apanhado com mais três jovens: “os três foram mortos e eu a ver”. A sua vez só não chegou porque no momento em que ia a ser executado chegou o comandante. Aproveitou uma distração e fugiu: “comecei a correr. Aqueles três soldados disparavam contra mim. Eu só via poeira à minha frente poeira. Nas orelhas, ouvia as balas. Quando caí, pensei que tinha sido atingido. Mas levantei-me, respirei e não senti nenhuma sensação de perder ar. Então tentei fugir ainda mais. Eles diziam, ‘olha, escapou o gajo’”. Mas muitos outros não escaparam porque a ordem que o comandante trouxera era para que fossem mortos os homens e reunidas as mulheres.

Em Wiriiamu o massacre não está apenas marcado em poucos corpos e muitas memórias. Faz também parte da paisagem da aldeia através de um memorial que foi reabilitado e inaugurado em 2017 no local onde foram descobertas três valas comuns. Ao seu lado, Jorge Wiriyamu, neto do régulo que deu nome à aldeia, conta que o avô, seis dos seus filhos e a sua terceira esposa foram mortos pelas tropas portuguesas em 1973 num ataque a uma base da Frelimo.