Sob o lema “Nosso Futuro, Nossa Libertação”, o Bloco de Esquerda promove este fim de semana na Damaia, concelho da Amadora, um encontro antirracista com debates e conversas sobre o racismo estrutural e a violência de Estado, a participação política, a memória e o colonialismo, o pacto das migrações e a interseccionalidade das lutas (ver fotogaleria). Na abertura houve momentos de poesia e spoken word com Andreia Galvão e Santiago Mbamba Lima e discursos políticos com José Gusmão e Mariana Mortágua.
A coordenadora do Bloco começou por agradecer o trabalho dos militantes antirracistas na iniciativa e preparação deste encontro, lembrando que o antirracismo é um dos elementos fundadores do Bloco de Esquerda em 1999, com a participação de dirigentes antirracistas que formaram uma geração de militantes e trouxeram novos temas para o debate público.
No entanto, acrescentou, os anos decorridos mostraram que houve “uma transformação lenta e insuficiente” do debate interno sobre o antirracismo, em comparação com o dos temas ligados aos movimentos feminista e LGBT. Essa é a razão para Mariana Mortágua ter assumido este sábado a necessidade de fazer um “balanço crítico” deste trajeto e assumir que “existem no Bloco as mesmas estruturas excludentes que existem na sociedade e é preciso encarar isso de frente”.
Uma das insuficiências apontadas é que “falta no Bloco uma estrutura permanente de debate e ação antirracista” que consiga transvsersalizar o antirracismo em toda a ação do Bloco, prosseguiu Mariana Mortágua, defendendo um espaço “que permita contrariar o peso desproporcionadamente minoritário de migrantes e pessoas racializadas nos órgãos dirigentes do Bloco”.
A coordenadora do partido diz esperar que o encontro deste fim de semana sirva para criar esse “espaço permanente de trabalho e reflexão para encontrarmos novas formas de ação política que vão para além das meramente programáticas, com uma ligação muito mais próxima com o movimento antirracista e que nos permita ter mais debate, mais protagonistas e mais militantes ativos no movimento”. E dessa forma abrir “uma nova etapa da relação do Bloco com o antirracismo”, a prosseguir já em setembro com a realização de uma conferência em “para poder falar sobre estes temas da forma mais aberta possível”.
“Papel de Portugal no tráfico de pessoas escravizadas não é uma vírgula na nossa história”
No plano político geral do debate sobre o racismo na sociedade, Mariana Mortágua defendeu que o primeiro passo deve ser o reconhecimento de que “o papel que Portugal teve no tráfico de pessoas escravizadas não é uma vírgula na nossa história” e reconhecer o contributo português na construção daquilo que hoje é a ideia de raça. O racismo enquanto estrutura de poder e desigualdade “é uma invenção para desumanizar e justificar a escravatura e o tráfico de pessoas escravizadas. E Portugal teve um papel fundador nesse processo. Essa é a nossa história e a nossa responsabilidade histórica no racismo atual”, apontou.
Por outro lado, “o nosso passado mais recente, que ainda é o nosso presente, é a negação nacional deste papel”, com a criação pela ditadura da “ideia absurda do lusotropicalismo, de um colonialismo português benévolo quando todos os factos históricos desmentem essa ideia”, que não foi ultrapassada com o 25 de Abril. “Por alguma razão entendeu-se que o fim da guerra colonial e a revolução democrática tinha acabado automaticamente com o racismo e com as questões que Portugal tinha de resolver com o seu assado. Isso só contribuiu para alimentar o negacionismo e um dos grandes falhanços - agora que celebramos os 50 anos da Revolução - é precisamente reconhecer esse passado de racismo, colonialismo e escravatura e o papel que os movimentos de libertação tiveram para que acontecesse o 25 de Abril”, prosseguiu.
Além de “contrariar este manto de negação coletiva”, reconhecendo esta história e pedindo desculpa às vítimas, pois “o Estado português enquanto representante desta comunidade histórica tem essa responsabilidade”, Mariana Mortágua defendeu que é preciso pensar “a nossa cultura e educação, não admitindo narrativas únicas”. E isso passa por contextualizar o que existe no espaço público - das estátuas aos museus - e “criar novos exercícios de tradução da história com leituras mais complexas e realistas” em vez da leitura parcial presente nos manuais escolares, pois “não pode ser só a narrativa do colonizador mas também dos colonizados que foram apagados da história” que deve ser ouvida. Além disso, reconhecer o passado significa “políticas de cooperação e desenvolvimento com os países e comunidades que ainda hoje sofrem as consequências desse passado”.
Mariana Mortágua destacou o muito que há por fazer nas políticas públicas de combate ao racismo e discriminação em Portugal, em matérias como o acesso à habitação e “a uma justiça que possa ser verdadeiramente igual”, referindo este setor onde mais trabalho há pela frente e que todos os anos envergonha o país no que diz respeito aos casos de violência policial contra pessoas racializadas.