Mosteiro de Santa Clara-a-Nova. Um espaço tão rico em história como em património arquitetónico e relevância cultural. A construção deste mosteiro durou entre 1649 e 1696, numa resposta às constantes inundações a que o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha estava sujeito. As suas únicas funções foram religiosas até por volta de 1910, ano em que alguns dos seus espaços foram oferecidos e arrendados ao exército português. Esta fase durou cerca de 100 anos, apesar dos sinais de abandono, que começaram a aparecer ainda no século passado.
Estes mais de três séculos de vivências tão diversas, como a religiosa e a militar, podem estar no passado, mas estes “fantasmas” (a memória e marcas destes tempos) perduram e habitam todas as salas do mosteiro. Esta é uma das narrativas que, desde 2015, a Anozero – Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra tem vindo a explorar, de forma mais ou menos presente dependendo da temática escolhida para cada edição.
Este projeto começou por iniciativa do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC), numa tentativa de ocupar património público abandonado, com algo tão naturalmente humano como a arte. Ao longo das suas cinco edições e duas exposições individuais, foram exploradas temáticas como as feridas individuais e coletivas que da vida diária provêm, ou a forma como diferentes comunidades se unem sob influência da noite. Mas muitos dos aspetos que definem a Bienal mantiveram-se constantes ao longo dos anos: a arte deve surgir neste contexto como um diálogo entre artista, público, e espaço ocupado, sem esquecer as dimensões da arte que já conhecemos, quer seja o ativismo que converge em lutas como o feminismo, anti-imperialismo e anticapitalismo, quer seja uma forma de expressão cultural, bem assente na passada edição.
A verdade é que a cultura na cidade de Coimbra evoluiu em torno do epicentro que é o Mosteiro, e que ao longo dos anos se tornou mais e mais num símbolo internacional da arte contemporânea. É neste contexto que surge há vários anos a vontade privada de recuperar o Mosteiro e convertê-lo num empreendimento turístico de luxo, limpando-o destes “espetros do passado” e retirando da cidade um dos poucos espaços culturais que lhe restam.
Durante muito tempo, esta foi só uma vontade de poucos, escondida por uma opinião pública claramente opositora a esta ideia, e até por um executivo camarário que recusava as sucessivas tentativas de abertura de concurso público para a obra. Mas com a eleição de José Manuel Silva para Presidente da Câmara Municipal de Coimbra (pela coligação Somos Coimbra que para além de independentes, incluía o trio que compõe a AD – PSD, CDS e PPM), passou a ser claro que aquele espaço da Bienal estava com dias contados.
No final de 2023 foi anunciado o concurso público para recuperação e exploração do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, com data e caderno de encargos anunciados pelo Presidente da Câmara. Um artigo publicado no jornal A Cabra apresentou tanto o ponto de vista do Presidente, como o ponto de vista de Carlos Antunes, Diretor do CAPC e da Bienal, que passo agora a sintetizar. De um lado, José Manuel Silva afirma que (mais) um hotel desta infraestrutura é benéfico para o turismo, e por isso a economia de Coimbra, acrescentando que o caderno de encargos inclui a preservação de algumas salas para a realização da Bienal. Do outro lado da discussão, Carlos Antunes afirma que esta é mais uma tentativa de acentuar a massificação do turismo, em detrimento da criação de condições para tornar as cidades mais habitáveis neste caso pela remoção de aparelhos culturais, e que uma Bienal que não ocupa todos os espaços do Mosteiro e procura conviver com o turismo não teria a essência que a move.
Hoje, dia 27 de março de 2024, este processo aparenta estar definitivamente concluído. Após o vencedor do concurso ter sido anunciado e ter desistido, passando a oportunidade à segunda oferta, foi apresentado o projeto do hotel no Mosteiro. Projeto de uma empresa que também tomará conta do belíssimo Mosteiro do Lorvão, em Penacova, e acima de tudo, projeto cuja mira do empresário responsável está no «turista “norte-americano” a quem quer “vender histórias”», como este afirmou em comunicado ao Diário de Coimbra.
A verdade é que este é um reflexo do programa do PSD e da Aliança Democrática, um programa neoliberal que desresponsabiliza o estado de criar condições necessárias para que as suas cidadãs e cidadãos vivam uma vida boa. Quer isso implique cortes nos serviços públicos, quer isso implique vender os espaços que criam um sentido de comunidade forte (espaços culturais, sedes de associações, Repúblicas, etc.) aos especuladores imobiliários e grandes monopólios de turismo de luxo, direcionado apenas a turistas estrangeiros com posses, e não às pessoas residentes que apenas pretendem conhecer e difundir os elementos culturais tão únicos da sua cidade.
Neste clima insólito insere-se a quinta edição da bienal Anozero. Movida pelo título O FANTASMA DA LIBERDADE, que entre 6 de abril e 30 de junho convidará Coimbra a refletir sobre as interpretações que a liberdade pode assumir na arte contemporânea, sugerindo ainda a ideia de que, apesar de a liberdade estar presente em todos os aspetos da vida, esta se afasta do “real” com uma natureza fantasmagórica. Com o Mosteiro como epicentro natural, esta bienal ocupará outros espaços emblemáticos como o Jardim Botânico, Pátio das Escolas, Colégio das Artes, Sala da Cidade e os diversos polos do CAPC. Num último apelo à continuidade deste evento e numa edição que poderá ser a última, lança-se ainda o Manifesto a favor do Anozero – Bienal de Coimbra, que conta já com quase duas mil assinaturas de pessoas de todo o mundo e todos os setores, e que convido, desde já, toda a gente a assinar.
Uma Bienal de Arte Contemporânea é absolutamente necessária para Coimbra, e a sua livre realização não é de todo compatível com a interação com um empreendimento turístico. Limpar os “fantasmas”, as marcas de séculos de passado e ocupação opressoras por uma igreja inquisitorial e um exército colonialista, que já não representa Portugal, é limpar a essência da própria bienal enquanto fonte de diálogo político com estas realidades. E apesar de o futuro deste espaço parecer já traçado, não podemos desistir. Não podemos deixar que nos tirem o Mosteiro. Não podemos deixar que o “turista norte-americano” condicione a vivência das nossas comunidades. Por isso, como em todas as outras lutas, digamos: NÃO PASSARÃO!