A lógica política do imperialismo russo

25 de junho 2022 - 22:56

Putin oferece aos seus “clientes” que querem preservar regimes neo-patrimoniais ameaçados pelo descontentamento popular uma nova “Santa Aliança” anti-revolucionária como fez a Rússia czarista. Estes regimes dependem da coerção policial e militar em vez de projetos hegemónicos e a Rússia garante-lhes isso. Por Volodymyr Artiukh.

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Santa Aliança. O pacto monarquista firmado em 1815 entre Áustria, Prússia e Rússia.
Santa Aliança. O pacto monarquista firmado em 1815 entre Áustria, Prússia e Rússia.

Para além do meu trabalho de campo interrompido na Ucrânia (2021), esta contribuição para o debate sobre a guerra baseia-se no meu trabalho de campo na Bielorrússia (2015-2017) e nas minhas conclusões sobre como o regime “cesarista” de Lukashenko mudou, quando confrontado com desafios populares e geopolíticos, a sua "estratégia de revolução passiva" (Artiukh 2020, 2021), para usar o vocabulário de Gramsci. Com base no meu conhecimento da Ucrânia e da Bielorrússia, delineio a lógica política da expansão territorial agressiva da Rússia no contexto do declínio hegemónico dos EUA. Defendo que esta expansão, impulsionada pela lógica do legitimismo, através da qual a Rússia oferece aos seus potenciais clientes uma nova “Santa Aliança” anti-revolucionária, como fez a Rússia czarista no século XIX, gera um sistema de regimes "anti-Maidan" que partilham importantes pontos comuns culturais e políticos.

Esta lógica política, claramente formulada no discurso de Putin na ONU, em 2015, é a consequência de uma mudança na estratégia imperialista da Rússia. Segundo o economista político Ilya Matveev (2021), o imperialismo russo passou da lógica económica para a lógica territorial por volta de 2014, quando o Estado russo renunciou à estratégia de expansão dos interesses empresariais privados na Ucrânia e noutras repúblicas pós-soviéticas e começou a projetar o controlo político sobre estes territórios, mesmo à custa dos interesses do capital privado. O exemplo mais proeminente da nova estratégia foi a anexação da Crimeia e o apoio aos rebeldes pró-russos no Donbass. Contudo, a estratégia parece ser mais ampla e inclui a reativação de outros "conflitos congelados" (Geórgia 2008, possivelmente Moldávia), participação em conflitos internos (Ucrânia 2014, Bielorrússia 2020, Cazaquistão 2022), e prestação de serviços militares (Síria e vários países africanos).

O princípio central desta estratégia territorial legitimista foi a preservação dos regimes neo-patrimoniais ameaçados pelo descontentamento popular. Os pequenos estados separatistas do Donbass foram os primeiros de uma série de regimes que começaram a aparecer no espaço pós-soviético, desde 2014, em reação à ameaça real ou imaginada de protestos populares. Chamo a estas formas de governo "regimes anti-Maidan", referindo-me à sua narrativa inicial legitimadora de resistência aos protestos Maidan na Ucrânia. O que os une é o facto de serem reações a revoltas populistas, que encorajam a desmobilização em vez da mobilização das suas populações, e dependem da coerção policial e militar em vez de projetos hegemónicos. Como as elites ameaçadas aderiram a esta Santa Aliança, os seus regimes transformaram-se em conformidade: estes incluem a Síria de Assad, a Bielorrússia de Lukashenko, mais recentemente, o Cazaquistão e as regiões recentemente ocupadas da Ucrânia. Seguindo esta lógica até à sua casa, o próprio regime russo sofreu uma transformação num Estado policial autoritário com tendências pós-fascistas.

Este projeto deve ser rastreado até à crise orgânica continuada que eclodiu em 2008 e tornou possível a situação da véspera da sublevação de Maidan em 2013. Os protestos de Maidan na Ucrânia foram uma das mobilizações locais “ao nível mundais” (Kalb & Mollona, 2018) contra os regimes neoliberalizados e neo-patrimoniais sob a tensão da crise, melhor exemplificados pela Primavera Árabe. Emergindo na condensação territorializada das paixões políticas, tais revoltas radicaram em algo semelhante ao mito político de Sorel, capaz de criar uma divisão entre "nós" e "eles", mas incapaz de provocar mudanças duradouras devido à falta de quadros organizativos e de liderança. Por conseguinte, foram os grupos violentos mais radicais que aproveitaram tais movimentos, os condottieri contemporâneos que, no entanto, não encarnaram a vontade coletiva (Gopal, 2020).

Estes regimes neo-patrimoniais pós-desenvolvimentistas encontravam-se em diferentes fases de declínio e tinham relações diferentes com os seus vizinhos. Assim, os regimes tunisino e bielorrusso, podendo contar com os seus patrocinadores e tendo Estados mais fortes, puderam cooptar as revoltas na continuação das suas estratégias de revolução passiva. Outros sofreram a intervenção dos seus vizinhos, como no Bahrein, Iémen e Ucrânia. Outros ainda mergulharam numa guerra civil prolongada, como a Líbia ou a Síria, e tornaram-se campos de batalha para os imperialismos concorrentes norte-americano, turco e russo.

Ao contrário de um preconceito amplamente difundido, os Estados Unidos demonstraram o fracasso da sua hegemonia face a estas situações. Aqui uso "hegemonia" no sentido gramsciano-arrighiano, como um conjunto de instituições e ideologias sustentado pelo potencial uso de força credível que pode superar crises e alinhar os interesses das elites centrais e periféricas. Embora o Banco Central dos EUA tenha tido relativamente sucesso na atenuação da crise de 2008 na Europa, não conseguiu estabelecer a ordem na sua periferia (Tooze, 2019). Do mesmo modo, as operações militares americanas trouxeram consequências involuntárias. Quando este buraco hegemónico se abriu e os EUA mostraram a sua fraqueza, seguiu-se um “shitshow”, nas palavras de Obama, quando os concorrentes passaram imediatamente à ação, oferecendo-se para ajudar a restaurar a ordem.

Um concorrente hegemónico era a Rússia, um dos regimes neo-patrimoniais cujo declínio estava apenas a começar a manifestar-se. Os primeiros sinais deste declínio apareceram nos protestos da classe média urbana de 2011-2013 e foram rapidamente reprimidos. Uma vez que a dominação nas relações internacionais, segundo Gramsci, é uma extensão dos modos de dominação da classe dominante, o sistema russo de dependências internacionais neo-patrimoniais estava também a enfraquecer. A Rússia desenvolveu uma doutrina de apoio aos "regimes legítimos" contra a guerra híbrida travada pelo Ocidente (Göransson, 2021).

Rússia ofereceu uma Santa Aliança para o século XXI

Como alternativa à hesitante hegemonia americana baseada na "promoção da democracia", incluindo o apoio às revoltas populares, a Rússia apresentou a oferta de uma Santa Aliança para o século XXI. Em termos gramscianos, esta foi a oferta de uma preservação do bloco histórico baseada no domínio cesarista e não na hegemonia. Assim, face à hegemonia vacilante dos EUA, a Rússia ofereceu um sistema internacional de dominação sem hegemonia. Tal oferta resolveria duas tarefas: reforçar o domínio do regime interno russo e garantir a estabilidade dos regimes dos Estados que aderissem à Santa Aliança.

É assim que é possível olhar para os desenvolvimentos pós-Maidan. A queda de Yanukovych assinalou a fragilidade dos regimes neo-patrimoniais e assim ameaçou a Rússia como fornecedor de garantias de segurança depois de Yanukovych ter aceite a sua oferta no final de 2013. A fraca qualidade político-mítica da revolta de Maidan acabou numa divisão entre "nós" e "eles", alienando assim uma parte considerável da população da Ucrânia (Zhuravlev & Ishchenko, 2020). Previsivelmente, seguiu-se um período de condottierismo de extrema-direita que alargou ainda mais a divisão. A Europa estava desorientada e os EUA hesitavam em participar noutro "shitshow". A anexação da Crimeia e o desencadear da guerra civil na Ucrânia foi a aplicação lógica da doutrina do legitimismo. Este primeiro movimento foi tipicamente cesarista, uma operação especial da “guarda pretoriana” de Putin. O objetivo de aumentar a legitimidade doméstica foi atingido através do assim chamado efeito Crimeia, enquanto o objetivo de estabelecer uma ordem legítima na Ucrânia estava a desenrolar-se.

Os analistas russos esperavam que o governo pós-Maidan não fosse muito diferente do anterior e, por conseguinte, precisaria de um garante de segurança contra a ameaça separatista que a própria Rússia alimentava. Os líderes russos também sabiam que nem a UE, nem os EUA, estariam dispostos a tornar-se num tal garante em toda a medida que seria necessária. Por conseguinte, ofereceram o pacote dos chamados acordos de Minsk que era uma consagração militar-diplomática da vitória militar da Rússia sobre o fraco regime pós-Maidan. Os acordos de Minsk previam a presença de forças políticas e militares russas de facto dentro de um estado federal ucraniano que potencialmente ganharia a guerra civil que se seguiria (Koshiw, 2022). A UE não teve outra escolha senão tentar congelar a situação "sem guerra, sem paz", na esperança de que ela se resolvesse por si própria no futuro. Os EUA em grande parte mantiveram distância durante o interregno de Trump.

No entanto, as autoridades de Kiev e os herdeiros dos condottieri de Maidan lutaram com unhas e dentes para evitar esta situação. Impuseram o consenso pós-Maidan, tirando partido da brecha aberta pelas paixões políticas de Maidan e apoiadas pelos condottieri. Com alguma ajuda limitada da UE e dos EUA, as autoridades de Kiev conseguiram restabelecer as instituições estatais e reconstruir o exército. O Ocidente não teve outra escolha senão aceitar o novo cesarismo de Kiev. Desta vez, a Rússia decidiu esperar enquanto desenvolvia as repúblicas separatistas no Donbass, como um posto avançado para a batalha que se avizinhava.

Nessa altura, as auto-denominadas Repúblicas Populares do Luganks e de Donetks (LNR/DNR), mantidas unidas por um perpétuo estado de emergência e duras repressões contra ativistas políticos, culturais e laborais dissidentes, tornaram-se numa zona cinzenta controlada por agências públicas e privadas russas (Savelyeva, 2022). Tendo consolidado a sua soberania sobre o posto avançado anti-Maidan no Donbass, a Rússia reivindicou um sucesso indiscutível na Síria, re-impondo o domínio de Assad sobre a maior parte do país e enterrando os restos da revolta de 2011. Finalmente, a Bielorrússia pós-2020, que passou de um populismo autoritário para um Estado policial totalmente ditatorial foi sem dúvida o caso mais bem sucedido da assistência internacional da Rússia no seio da Santa Aliança. À semelhança da liderança das LNR/DNR, Lukashenko construiu a sua legitimidade pós-protesto como um salvador de metralhadora em punho face a uma tentativa de golpe de Estado de inspiração ocidental, que foi explicitamente comparada à Maidan na Ucrânia. O apoio político, mediático e económico da Rússia não só conseguiu estabilizar o regime de Lukashenko como também amarrá-lo à Rússia, assegurando assim uma base militar.

Ucrânia era a única questão pendente na Santa Aliança

Esta série de sucessos no contexto dos fracassos dos Estados Unidos e da Europa, encorajou as elites russas. Enquanto a Rússia restaurava o poder de Assad na Síria, exportava os seus serviços para vários países africanos e suprimia os protestos em casa, os EUA estavam atolados no "shitshow" de Trump, a nível interno, quase perdendo aliados da Nato, anunciando um centramento na Ásia e sendo miseravelmente derrotados na retirada do Afeganistão. A única questão pendente para a Santa Aliança era a Ucrânia. Desde o início da década de 2020, a Rússia começou a integrar os pequenos estados separatistas do Donbass na esfera ideológica, económica e política russa, ao mesmo tempo que pressionava as autoridades ucranianas a implementar rapidamente a parte política dos acordos de Minsk.

Após um breve namoro com Putin, o governo de Zelensky compreendeu que não poderia restabelecer a soberania sobre as regiões separatistas se o processo de Minsk fosse supervisionado pela Rússia e enquanto os nacionalistas ucranianos questionavam esta política internamente. As ações da Rússia insinuavam a possibilidade de integrar plenamente estes mini-Estados na Rússia, seguindo o exemplo da Crimeia ou utilizando-os como posto avançado do "mundo russo", tal como proclamado na doutrina ideológica destas repúblicas no início da década de 2020. Segundo alguns analistas, este é o momento em que as autoridades russas começaram a preparar-se para a eventualidade de uma operação militar completa contra a Ucrânia. Os passos seguintes foram apenas uma questão de tempo e oportunidade.

Esta oportunidade surgiu em finais de 2021 ou princípios de 2022. Convergiram muitos fatores que enfraqueceriam o Ocidente e dinamizariam a Rússia. E as elites russas compreenderam isto. Os EUA e a Europa não só foram atingidos pela pandemia, como também passavam por transições políticas: o novo e fraco presidente nos EUA, que continuava a viragem para a Ásia, o novo chanceler na Alemanha e a proximidade de eleições em França. As coisas estavam a correr muito melhor para a Rússia: a Bielorrússia estava sob o controlo seguro da Rússia como símbolo da Santa Aliança, a economia da Rússia estabilizou e acumulou os maiores recursos da sua história, a operação especial ultra-rápida no Cazaquistão provaria que a Rússia era um garante de segurança fiável. Consequentemente, a Rússia anunciou o seu assalto com uma primeira ameaça de guerra, em Abril de 2021, que aparentemente abriu um diálogo estratégico de segurança entre os EUA e a Rússia. Depois disso, Putin e Medvedev escreveram textos sobre a Ucrânia e Zelensky que eram essencialmente um ultimato: ou a Ucrânia seria destruída como Estado ou seria remodelada de acordo com a vontade russa.

Zelensky estava provavelmente consciente do perigo que se aproximava, por isso intensificou a limpeza no domínio político interno e tentou melhorar ao máximo o exército enquanto se agarrava ainda ao cessar-fogo no Donbass. Esperava encontrar o equilíbrio no caminho estreito que tinha pela frente. Entretanto, a Rússia emitiu outro ultimato, em Dezembro de 2021, exigindo a retirada das infraestruturas da NATO dos antigos países do Pacto de Varsóvia, bem como a proibição da adesão de novos membros. Tal como o ultimato da Áustria à Sérvia em 1914, o ultimato de Putin também não estava destinado a ser cumprido. Após alguns contratempos iniciais, o exército russo continuou a ocupar território ucraniano para além da LNR/DNR, mantendo deliberadamente vagos os objetivos políticos da guerra.

Três meses depois do início da guerra, os territórios recentemente ocupados no sul da Ucrânia são controlados através de métodos desenvolvidos por outros regimes anti-Maidan, principalmente a Bielorússia e as LNR/DNR. A repressão tremendamente bem sucedida de Lukashenko contra quem protestou contra os resultados injustos das eleições de 2020 baseou-se numa brutalidade policial sem precedentes, em longas penas de prisão e desmoralização dos dissidentes. Tendo abandonado o seu populismo caraterístico, Lukashenko demonstrou que só a força bruta poderia funcionar se as pessoas fossem suficientemente atomizadas nas cidades e fábricas.

Um Estado policial com tendências pós-fascistas

As primeiras manifestações de massas contra a ocupação russa dispersaram-se à medida que a Rússia reforçava a sua capacidade policial na retaguarda do exército invasor. Há relatos de ativistas políticos a serem raptados e torturados, repetindo a experiência de Donbass. Um dos métodos utilizados na Bielorrússia, a gravação sistemática em vídeo de auto-denúncias forçadas, foi recentemente repetido em Kherson, onde pessoas descontentes com a ocupação foram forçadas a pedir desculpa frente à câmara e a dizer que "completaram um curso de desnazificação". Isto não é acompanhado por qualquer narrativa ideológica coerente; em vez disso, os meios de comunicação social russos projetam uma mistura selvagem de símbolos soviéticos, czaristas e vagamente fascistas cujo único objetivo é intimidar e mostrar que a resistência é fútil (Artiukh, 2022).

Enquanto construía o sistema de regimes anti-Maidan, a Rússia também se transformou de uma "democracia controlada" num Estado policial com tendências pós-fascistas impondo uma mistura pós-moderna de ideologias que não se destinam a convencer verdadeiramente as massas (Budraitskis, 2022). Se os EUA presidiram à emergência do mundo pós-soviético através da promoção dos manuais neoliberais e falhando em conseguir criar um paradigma de segurança hegemónico, a estratégia anti-Maidan da Rússia trouxe o fim da era pós-soviética ao destruir todos os resquícios da civilização soviética que os Estados sucessores mantiveram. Por um lado, existe uma "descomunização" simbólica: da destruição literal de monumentos na Ucrânia à zombificação de símbolos soviéticos que se tornaram símbolos das conquistas coloniais da Rússia. Por outro lado, a "descomunização" política e económica: a deslegitimação das fronteiras das antigas repúblicas e a destruição dos centros de industrialização soviética no Donbass, Mariupol ou Kharkov. O longo declínio da pax pós-soviética está quase a terminar.


Volodymyr Artiukh é investigador de pós-doutoramento no COMPAS com o projeto "Vazio: Viver no capitalismo e na Democracia depois do (Pós) Socialismo". Obteve o doutoramento em Sociologia e Antropologia Social na Universidade da Europa Central, em 2020, com uma dissertação sobre trabalho e controlo burocrático na Bielorrússia. Os seus interesses de investigação incluem a Antropologia do trabalho e da migração nos países pós-soviéticos, a Antropologia do populismo e o estudo da hegemonia na Europa de Leste.

Publicado originalmente em Sin Permiso.Traduzido por António José André para Esquerda.net.