Está aqui

Lóbi farmacêutico impediu investigação sobre os coronavírus em 2018

Duas ONG acusam as grandes farmacêuticas de terem bloqueado a investigação científica em áreas que necessitavam de financiamento, entre elas a “prevenção de epidemias” (como as dos coronavírus), tendo privilegiado projetos em áreas “comercialmente mais rentáveis”.
"O que está em jogo aqui é a captura corporativa de grandes áreas da política e dos orçamentos de pesquisa da UE, às custas das necessidades públicas, da nossa saúde e da saúde do nosso planeta", destacou Martin Pigeon, do Corporate Europe Observatory.
"O que está em jogo aqui é a captura corporativa de grandes áreas da política e dos orçamentos de pesquisa da UE, às custas das necessidades públicas, da nossa saúde e da saúde do nosso planeta", destacou Martin Pigeon, do Corporate Europe Observatory. Fotografia de Paulete Matos.

A acusação é feita por duas organizações não governamentais (ONG), a Global Health Advocates e Corporate Europe Observatory. Estas acusam as grandes empresas farmacêuticas de terem impedido uma investigação proposta por Bruxelas aos coronavírus em 2018.

“Estamos indignados por encontrar provas de que o lóbi da indústria farmacêutica EFPIA [European Federation of Pharmaceutical Industries and Associations] não só não considerou o financiamento da bioprevenção (ou seja, estar pronto para responder a epidemias como a causada pelo novo coronavírus, covid-19), como se opôs a que a mesma fosse incluída nos trabalhos da IMI [Iniciativa de Inovação Médica] quando essa possibilidade foi levantada pela Comissão Europeia em 2018”, lê-se nas conclusões de um estudo a que a agência Lusa teve acesso.

A EFPIA inclui grandes empresas farmacêuticas envolvidas em parcerias público-privadas (PPP) com a União Europeia. 

De acordo com uma fonte oficial da Comissão Europeia contactada pela agência Lusa, está a ser investida "uma verba significativa de dinheiro em pesquisa e inovação na saúde, nas alterações demográficas e no bem-estar, assim como na sustentabilidade ambiental e na ação climática, com o foco nos desafios da sociedade e atacando as necessidades médicas e ambientais”. 

As ONG Global Health Advocates e Corporate Europe Observatory divulgaram esta segunda-feira o “Em nome da Inovação”, um amplo documento que no capítulo “Mais privada do que pública: como as grandes farmacêuticas dominam a Iniciativa de Inovação Médica” denuncia os ganhos de 2,6 mil milhões de euros obtidos pela indústria farmacêutica que vieram do orçamento público de investigação da UE. Este valor diz respeito ao período entre 2008 e 2020, “mas até agora falhou em investir significativamente em áreas de pesquisa onde o financiamento é urgentemente necessário”. 

As ONG enumeram várias áreas a necessitar de maior financiamento e que foram negligenciadas, entre elas "a prevenção para epidemias (incluindo as causadas pelos coronavírus), o VIH/sida, e as doenças tropicais relacionadas com a pobreza”. Porém, "a indústria farmacêutica usou sobretudo o orçamento para financiar projetos em áreas que eram comercialmente mais rentáveis”. 

Desde 2003, ano de surgimento do SARS, “um primo chegado do novo coronavírus”, que os investigadores têm apelado à aceleração do desenvolvimento de tecnologias médicas que permitam o combate a este tipo de vírus. 

"Na verdade, já houve um 'candidato promissor para tratar coronavírus em 2016', mas não captou a atenção das grandes farmacêuticas para mais desenvolvimentos", acusam as duas organizações sem fins lucrativos.

As organizações vão mais longe e acrescentam: "Só agora, com uma pandemia global em curso e quando existem fundos públicos mobilizados para combatê-la, é que a indústria está a mostrar vontade de ajudar a desenvolver vacinas e tratamentos".

Tratamento semelhante já tinha sido dado à ébola, que só obteve atenção ao nível da investigação científica quando se tornou uma epidemia, em 2014, e após o surgimento de financiamento da UE. 

"Esse caso mostra como intervenções tardias quando uma epidemia já está em andamento são muito menos úteis do que o tipo de bioprevenção que a indústria rejeitou", vincaram.

Em declarações à agência Lusa, Martin Pigeon, do Corporate Europe Observatory, defende que pela defesa do interesse público "já é tempo de a política de investigação e inovação da UE receber o escrutínio político e os debates que merece”. 

"O que está em jogo aqui é a captura corporativa de grandes áreas da política e dos orçamentos de pesquisa da UE, às custas das necessidades públicas, da nossa saúde e da saúde do nosso planeta", destacou.

"O financiamento público da pesquisa e inovação é um investimento na produção de conhecimento e ferramentas para o futuro, e, num momento de crise em curso, acertar esses investimentos é mais crucial do que nunca”, concluiu Pigeon.

Termos relacionados #SomosTodosSNS, Sociedade
(...)