Extrema-direita

Ler bem para combater melhor

02 de fevereiro 2025 - 22:59

A extrema-direita do nosso tempo não é o fascismo histórico, não é um mero remake de Mussolini. É um fascismo que promove o mercado e se suporta em estratégias e tecnologias comunicacionais que permitem conformar o senso comum adequado a uma sociedade do medo que grita raiva contra os de baixo deixando os verdadeiros patifes em paz.

porJosé Manuel Pureza

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Fotografia via Comunidade Cultura e Arte
Fotografia via Comunidade Cultura e Arte

O livro Direitas velhas, direitas novas, de Enzo Traverso, termina assim: “Ninguém sabe ao certo como a situação vai evoluir. Mas é indiscutível que a nova extrema-direita constitui hoje uma ameaça iminente para uma democracia que se pretenda plural igualitária e participada. Precisamente, participar é discutir, intervir e responder. Oxalá não cheguemos tarde.”

É, portanto, um livro que assume um compromisso. Assume que o combate político e ideológico pela defesa da democracia contra a extrema-direita é essencial. Não podia ser de outra maneira, porque é escrito pelo Fernando Rosas, um historiador para quem rigor não rima com neutralidade, nem ciência pode bater certo com indolência. O rigor é um requisito para uma leitura certa da realidade e a leitura certa da realidade é indispensável para as lutas pela sua transformação.

Direitas velhas, direitas novas desenvolve-se em torno de uma tese: “Na realidade, o cerco à democracia política e social e à paz está em marcha por toda a Europa e bem para além dela. E o seu suporte político, como aconteceu no período entre as duas guerras do século XX, é a tendência para a aliança inexorável entre grande parte da direita tradicional com a nova extrema-direita para lhe ‘abrir caminho e radicalizar o ataque às resistências sociais e políticas. Não se pode, aliás, entender o fenómeno da emergência da extrema-direita neste primeiro quartel do século XXI fora da sua articulação funcional com as crises e os impasses do capitalismo neoliberal. Uma convergência entre direitas velhas e direitas novas que tende para o advento de um novo tipo de regimes autoritários, antidemocráticos e de apetência totalizante.” E mais adiante: “Parece-me que a démarche teórica realmente útil é a seguinte: procurar determinar as relações da viragem neoliberal do capitalismo em crise com a emergência da nova extrema-direita no primeiro quartel do século XXI. Ou seja, recolocar o avanço da direita extrema, herdeira transformada do fascismo, no quadro da nova crise dos sistemas liberais do Ocidente, isto é, do capitalismo neoliberal e das suas formas políticas em decomposição e em processo de deslegitimação”.

Como escreve Fernando Rosas, o fascismo não caiu do céu aos trambolhões, não é um borboletear ideológico de glamorosas elites intelectuais nem, muito menos, é fruto de um distúrbio psíquico dos seus chefes. Tudo evidente, não é? Não, não é. Basta atentarmos no debate mediatizado e no senso comum que ele formata acerca de Trump. O comentariado nacional olha para Trump como um excêntrico, um grosso, um desbragado. Ou seja, o que há de extremo em Trump é visto como uma questão de estilo, de idiossincrasia pessoal. As políticas, essas, são lidas pelos analistas como parte da agenda normal dos republicanos, mas nada demais, nem mesmo as deportações em massa. Que, com Trump, tenha subido ao poder a oligarquia dos algoritmos, a nata do capitalismo digital, é algo que é dito pelos politólogos de serviço como uma espécie de bizarria, Musk é só um extravagante ambicioso, Zuckerberg é um puto que venceu na vida e deixou a nossa tão melhor…

Esta visão preguiçosa, que não se quer dar ao trabalho de ler historicamente o fenómeno da ascensão da extrema-direita, de compreender os seus fundamentos, de perceber a relação entre eles e o campo de recrutamento social do novo fascismo – essa visão preguiçosa, dizia, gera respostas tíbias e equivocadas a esta realidade e alimenta-a. O que importa em Trump ou em Milei, em Abascal ou em Farage, em Meloni ou em Ventura não é a sua boçalidade nem a sua violência verbal. Isso é apenas a expressão de como os bufões se tornaram rostos cimeiros a política no tempo das redes sociais, como nos tem recordado o Francisco Louçã. Não, se queremos ser competentes na luta contra a ameaça que a ascensão da extrema-direita constitui para as democracias, o que temos de fazer é o que faz, neste livro, Fernando Rosas: situar essa ascensão como resultado da agressão social do capitalismo neoliberal à escala global e também como resultado da incapacidade deste capitalismo tardio em cumprir a missão para que foi pensado: trazer de volta os anos de ouro das altas taxas de lucro do capital e da hiper acumulação das elites. “Make America great again”, estão a ver?

Fernando Rosas mostra neste livro que, tal como o velho fascismo foi a resposta dos de cima à crise do capitalismo liberal do início do século XX, também o novo fascismo dos nossos dias é a resposta dos de cima ao declínio do que designa por “trinténio dourado” de meados de 40 a meados de 70. Esses trinta gloriosos – marcados pela criação do Estado Social, com prestações sociais e serviços públicos universais, com políticas de pleno emprego e com direitos laborais atenuadores das assimetrias de poder entre as classes – tiveram como pressuposto uma rápida acumulação, elevadas taxas de lucro, aumento do produto e altos níveis de inovação com impacto na vida de vastas amadas sociais (o automóvel, os eletrodomésticos, etc.). Além disso, o trinténio dourado assentou num quadro político em que aos Estados era reconhecida uma forte capacidade de intervencionismo e de regulação interna, desde logo em matéria de circulação de capitais.

Tudo isso, bem o sabemos, começou a ruir no chamado choque petrolífero da década de 70, fonte de uma inflação com níveis nunca registados e expressão de um mundo em que a velha exploração colonial dera lugar a um novo mapa, menos amigo das generosas rentabilidades do capital nas metrópoles. A emergência da fase neoliberal do capitalismo, a partir dos anos 80, facilitada pelo fim do medo do comunismo e das mobilizações dos trabalhadores e pela rendição da social-democracia, foi a resposta das elites capitalistas a essa crise de acumulação e das taxas de lucro. Fernando Rosas descreve com precisão este quadro: “O fator decisivo para a viragem estratégica do capitalismo (…) será o fim da capacidade de manter o nível de acumulação baseado até aí numa elevada rentabilidade dos capitais das economias mais desenvolvidas. O modelo assente no consumo de massas, no pleno emprego, no elevado investimento na promoção da investigação científica e tecnológica e na sustentação do Estado Social corroeu as taxas de lucro e originou uma onda longa de crescimento medíocre, conjugado com inflação – aquilo a que se chamou estagflação. Colapsava assim o discurso ideológico (…) baseado na crença de que era possível harmonizar duradouramente o incentivo à propensão ao consumo (…) com um investimento garantidor de uma taxa de lucro ou de uma eficácia marginal do capital atraentes para os seus detentores.”

Sabemos o que tem sido a resposta neoliberal a esta crise do capitalismo. Mas sabemos também que 40 anos de receita neoliberal não devolveram às elites capitalistas as condições de que haviam gozado no trinténio dourado: “A crise permanece: a taxa média de lucro desde meados dos anos setenta até hoje – salvo nos setores de ponta das novas tecnologias – tem sido menor e mais oscilante do que no período do pós-guerra, e sobretudo a acumulação permanece deficiente.” Por isso, “as elites europeias entendem (…) que o continuado arrastar da estagnação sistémica se deve às resistências sociais e políticas generalizadas aos efeitos regressivos das políticas neoliberais. E, perante tal impasse, a tendência deste capitalismo tardio é para adotar políticas duras de caráter austeritário e privatizador que rompam as resiliências.”

É neste quadro, como resposta a este impasse, que a extrema-direita se reconfigura a partir dos primeiros anos deste século e ganha uma força social e política totalmente diferente da que havia disposto antes, em clima de grupusculização e de marginalidade política. A extrema-direita do nosso tempo não é o fascismo histórico, não é um mero remake de Mussolini. É um fascismo que promove o mercado e se suporta em estratégias e tecnologias comunicacionais que permitem conformar o senso comum adequado a uma sociedade do medo que grita raiva contra os de baixo deixando os verdadeiros patifes em paz. Mas, não sendo uma simples continuidade do fascismo histórico, o novo fascismo comunga com aquele essa missão de trazer de volta a “golden age” (soa-vos?) do lucro infinito, sem entraves laborais ou ambientais e sobretudo sem um Estado que entrave os negócios dos de cima, antes os promova.

Para terminar, volto ao começo deste comentário. Não combateremos eficazmente a ameaça do novo fascismo se não o soubermos situar historicamente. Reflexões factualmente informadas como a deste livro destroem o alibi de não sabermos de onde vem o crescimento da extrema-direita e que propósitos serve. Por isso, tem de ser claro que o combate contra a extrema-direita, ou é um combate anticapitalista ou não o será. Assim levaremos a sério a advertência de George Orwell incluída neste livro: “Quando os fascistas regressarem, virão com guarda-chuva bem enrolado debaixo do braço e chapéu de coco”.

José Manuel Pureza
Sobre o/a autor(a)

José Manuel Pureza

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda