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La Lys, a batalha que não existiu

Na contracorrente da exaltação patriótica e chauvinista das declarações oficiais em torno do centenário do 9 de abril de 1918, o historiador e jornalista António Louçã realizou um documentário onde mostra que a tão evocada batalha, na verdade, não existiu: o ataque alemão deixou a tropa portuguesa sem comando, rendendo-se em massa. Por Luis Leiria.
António Louçã: Nas vésperas do 9 de abril e nos meses seguintes houve 18 rebeliões e motins dos soldados portugueses. Foto de Luis Leiria
António Louçã: Nas vésperas do 9 de abril e nos meses seguintes houve 18 rebeliões e motins dos soldados portugueses. Foto de Luis Leiria

“Somos fortes mesmo nos momentos mais difíceis e acabamos por vencer sempre. Todos os que aqui estão – e muitos mais – sois todos vencedores”, disse o presidente Marcelo Rebelo de Sousa na cerimónia de evocação do centenário da batalha de La Lys, na I Guerra Mundial, um evento que causou 400 baixas às tropas portuguesas. Quem o ouvisse, pensaria que em La Lys a vitória foi lusa e os nossos militares se cobriram de glória. Mas não foi isso que aconteceu. Contra os arroubos patrioteiros, a História é implacável. La Lys foi um desastre militar português, sob qualquer ponto de vista. É isso que conta o historiador e jornalista António Louçã no documentário “La Lys, batalha centenária”, exibido no dia 5 de abril na RTP 1 e disponível aqui. Na verdade, nem de uma batalha propriamente dita se tratou, explica. “Porque uma batalha é um confronto militar em que há dois lados, com tropas que obedecem aos comandos respetivos. E neste caso, a tropa portuguesa não obedeceu ao seu comando, nem o seu comando tinha ordens para dar nem pôde dar-lhe.” A La Lys portuguesa, o 9 de abril, com nichos de resistência até o dia 10, foi um massacre. Houve sim uma batalha de La Lys, mas entre alemães e ingleses, que durou três semanas. 

Nesta entrevista ao Esquerda.net, António Louçã enquadra o episódio bélico na política da jovem República portuguesa, e descreve o clima de descontentamento e de rebelião que existia entre as tropas lusas. Fala ainda sobre o soldado Milhões, elevado à categoria de mito “porque num Corpo Expedicionário que tinha como uma das suas principais funções a propaganda da participação e da presença de Portugal na guerra, era essencial criar um herói”. O documentário, numa versão mais alargada e em dois episódios, com os títulos "La Lys e o deserto de lama" e "La Lys, outro Alcácer Quibir" voltou a ser emitido esta sexta 13 e sábado 14, na RTP 3.

O que levou a então jovem República portuguesa a envolver-se na I Guerra Mundial?

Partida de soldados portugueses para França. Foto de Joshua Benoliel
Partida de soldados portugueses para França. Foto de Joshua Benoliel, Arquivo Municipal de Lisboa.

A ideia de que Portugal entrou na guerra para ter um lugar à mesa das negociações da conferência de paz faz sentido, até porque se conhecia a tentação constante da Inglaterra de oferecer as colónias portuguesas como moeda de troca, no caso de se procurar, no final, uma solução de empate em que não houvesse uma clara vitória ou derrota militar de um dos lados. Uma moeda de troca de uma pequena potência colonial dava sempre jeito numa mesa de negociações, e a presença dessa potência à mesa da conferência de paz era evidentemente inoportuna, se a ideia fosse utilizar as suas colónias como moeda de troca.

Claro que a Primeira República portuguesa era uma república burguesa, colonialista, e portanto tinha essa preocupação, não queria perder as colónias. Mas, por outro lado, havia também uma motivação: o próprio reconhecimento da Primeira República. A implantação da República fora muito mal recebida pela Inglaterra, a principal aliada e mesmo a potência de quem Portugal tinha sido em diferentes ocasiões uma espécie de protetorado. Assim fazer-se aceitar como parceiro beligerante, mesmo parceiro de segunda categoria, era marcar alguns pontos nesse reconhecimento. Provavelmente terão sido esses dois os principais motivos para que vários governos da República tivessem diligenciado a entrada na guerra, mesmo quando a Inglaterra não queria. A Inglaterra muda finalmente de atitude quando a guerra submarina alemã começa a criar graves problemas à tonelagem disponível para a navegação britânica; a frota portuguesa poderia ser uma contribuição nesse sentido, e nomeadamente os navios alemães que estavam recolhidos em portos portugueses.

A entrada de Portugal na guerra dá-se em que ano?

Dá-se em 1916. Mas havia guerra não declarada nas colónias, praticamente desde o início. Ocorreram combates, confrontos militares com as tropas alemãs em Angola e Moçambique.

A entrada de Portugal na guerra era vista como um gesto mais ou menos simbólico, ou era mais do que isso, um reforço militar?

O reforço militar não era significativo. Estamos a falar de uma guerra envolvendo milhões de soldados. A ofensiva alemã na frente ocidental na Primavera de 1918, o último grande esforço alemão para romper as linhas aliadas, envolve quatro milhões de soldados no lado alemão, 200 divisões. O Corpo Expedicionário Português em França teve 55 mil homens. Era de facto uma gota de água no oceano.

Trincheiras em La Lys Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=177961
Trincheiras em La Lys
Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=177961

E não só do ponto de vista quantitativo, também do ponto de vista qualitativo. Era uma tropa treinada à pressa, aquilo que se chamou o “milagre de Tancos” só tinha de extraordinário a rapidez e a improvisação com que as tropas foram preparadas para irem para a frente. A logística toda dependia da Inglaterra, grande parte do fardamento e a totalidade do armamento eram fornecidos pelos ingleses.

Era uma tropa que refletia o atraso do país e a improvisação e a precipitação com que foi preparada para esse conflito. Os ingleses, não por acaso, tinham um baixíssimo conceito da qualidade da tropa portuguesa e da contribuição que ela poderia representar. Nunca quiseram confiar-lhe um setor da frente, e quando isso foi politicamente indispensável, deram-lhe a guarda a um pântano. “Aqui não vai acontecer nada, os alemães não vão atacar num pântano, mesmo que consigam fazer algum ataque de infantaria aqui, que cheguem a romper as linhas, não conseguem depois trazer artilharia atrás dessa infantaria”. Já em 1917, quando o Corpo Expedicionário Português chega a França, começam a verificar-se as dificuldades para fazer alguma guerra de movimento, como às vezes fantasiavam os generais alemães. Tudo dependia dos cavalos, quase não tinham motorização das forças, o número de caminhões era irrisório. Por isso, dadas as dificuldades de arrastar a artilharia num pântano, raciocinavam os ingleses, aí não ia acontecer nada. Esse foi o grande erro.

Havia também um problema da motivação dos soldados portugueses…

Claro. Esse problema tinha que ver, desde logo, com o ambiente geral do país. Embora vários historiadores ponham em causa, penso que com fundamentos sólidos, aquela imagem que se tem da euforia generalizada nos primeiros dias da guerra na Alemanha e em França, onde toda a gente pensava que iria ser uma guerra curta e que se obteria uma vitória rapidamente, nem toda a gente pensava isso. De qualquer maneira, em Portugal a contestação foi maior, a adesão àquela euforia belicista que houve noutros países numa parte da população, aqui foi muito menor. Por razões diversas: a guerra aqui era atacada pela esquerda e pela direita, a Igreja tinha alguma tolerância em relação à ideia de uma guerra nas colónias, mas pouca ou nenhuma, ou mesmo uma hostilidade aberta em relação ao envio de uma tropa portuguesa para a Flandres. Os capelães militares enviados com as unidades são praticamente dissidentes da Igreja. Não são bem vistos.

Os monárquicos, em grande parte, eram contra a guerra, ou pelo menos estavam divididos. O Rei deposto no seu exílio inglês, claro, tinha de ser a favor da participação portuguesa, mas ele encontrava-se numa posição não muito confortável entre os monárquicos. E também existia uma posição contrária, muito forte do movimento operário, se possível muito mais forte do que nos países centrais do conflito, como a França, a Inglaterra, a Alemanha, onde o movimento operário se deixa paralisar logo no princípio pela social-democracia, enquanto que em Portugal há um movimento operário com outras características, a hegemonia anarco-sindicalista acaba por ter um papel diferente em relação à guerra, de hostilidade aberta. Existem jornais, como A Aurora, abertamente antiguerrista, que muitas vezes ia à censura e era publicado com apenas uma de oito colunas na primeira página, porque as outras tinham sido cortadas. E mesmo assim, alguns artigos que saíam eram violentíssimos contra a guerra.

A censura da República...

Sim. Existia esse ambiente no país. E depois, os soldados que foram enviados para as trincheiras estavam submetidos a uma pressão terrível de fatores desmoralizantes. Passavam muito frio naquele pântano que lhes deram para guardar. Passavam muita fome e quando não passavam davam-lhes rações inglesas, de uma dieta a que não estavam habituados, comiam cascas de frutas e cascas de batatas que iam buscar a estrumeiras, como conta uma das testemunhas da nova versão alargada do documentário que vai agora sair, tinham fardamentos mal pensados, que se enchiam de piolhos – às vezes o piolho era para eles o inimigo principal que combatiam todos os dias – e tinham tempos de permanência na primeira linha muito superiores aos das outras tropas aliadas.

Retrato oficial de Sidónio Pais enquanto Presidente da República Portuguesa, da autoria de Henrique Medina, e patente na Galeria de Retratos Oficiais no Museu da Presidência.
Retrato oficial de Sidónio Pais enquanto Presidente da República Portuguesa, da autoria de Henrique Medina, e patente na Galeria de Retratos Oficiais no Museu da Presidência.

Porque a partir de certa altura, não há rotação das tropas, não são rendidas. Principalmente desde o golpe de Sidónio Pais, embora isso já tivesse começado antes. Começaram a escassear os navios para mandar tropas que rendessem as que lá estavam. O Sidónio cultivava a imagem de ser menos entusiasta da guerra, o que aliás lhe serviu para receber apoio dos anarco-sindicalistas, no início, porque pensavam que ele iria tirar Portugal da guerra. Não foi isso que ele fez, tirou foi os navios ao CEP. Como os ingleses lhos tinham tirado a ele, não fez qualquer pressão para que houvesse uma política para render as tropas, e portanto, quem lá estava lá ficava.

A agravar a isso tudo, muitos oficiais vinham de licença, ao contrário dos soldados, viajavam através da Espanha, de comboio, porque podiam pagar a viagem. E muitos deles não voltavam. Não por desertarem, mas por lhes ser permitido não voltar. O próprio Sidónio não tinha o apoio institucional tão organizado como o dos partidos políticos, precisava criar uma nomenclatura política que trabalhasse com ele, e recrutava-a em grande parte no Exército, e em boa parte entre esses oficiais que vinham de férias, ou que eram convocados para voltar. Assim, no momento do 9 de abril as unidades que se encontravam na frente estavam bastante desenquadradas. Unidades que deviam ser comandadas por um capitão estavam a mando de um sargento, unidades que deviam ser comandadas por um coronel eram dirigidas por um capitão…

Isso cria um caldo de cultura que leva a revoltas…

Exatamente. É um processo interessante porque vê-se que antes de se ter passado a vias de facto existiam sintomas muito claros. Havia os soldados que provocavam doenças em si próprios, que sabiam como misturar cinza com cerveja para ter febre, sabiam como comer terra para ter infeções, praticavam automutilações para terem baixa, escreviam muitas cartas que eram retidas pela censura, outras chegavam ao destino, não se sabe se por terem vindo com portador ou se passavam pela censura sem serem notadas, mas eram cartas violentíssimas e que chamavam todos os nomes aos oficiais, todos os nomes aos políticos.


Os Generais Tamagnini, Hacking e Gomes da Costa em 1918. Fotografia de domínio público.

Nos dois meses anteriores ao 9 de abril, quando já se estava a sentir plenamente o efeito desta falta de navios e de rotação das tropas e das licenças dos oficiais que contrastavam com a permanência longa dos soldados na frente, existiram dezenas de insubordinações, de motins de mais alto ou mais baixo nível. A historiadora Isabel Pestana Marques, que se debruçou sobre este assunto, diz que conseguiu contar nestes meses imediatamente anteriores e imediatamente posteriores ao 9 de abril, 18 casos de rebelião coletiva.

A mais importante ocorreu nos dias 4 e 5 de abril, quando uma brigada muito sacrificada tem a notícia de que ia ser novamente enviada para a frente, e recusou-se. Um dos batalhões dessa brigada armou-se e entrincheirou-se na aldeia. O comandante do CEP, o general Tamagnini de Abreu e Silva escreveu no seu diário: “Eles estão cheios de razão. Dizem que andam a ser enganados, que estão a ser abandonados sozinhos, que os oficiais vão para a retaguarda e eles ficam sempre aqui, que ninguém pensa neles, estão cheios de razão.” Qual a conclusão prática que o general Tamagnini tirou disto? “Cerquem-nos com canhões e ameacem de os bombardear se eles não se renderem.” E assim foi. Foram cercados com artilharia pesada, e renderam-se. Foram presos, alguns condenados a deportação. O caso que conheço é um rebelde condenado a seis anos de deportação por crime de sedição e revolta.

Mas isso não fica por aí. Claro que com a derrota do 9 de abril, o CEP praticamente deixou de existir como corpo de exército e deixou de ter a seu cargo um setor da frente. Mas, depois do Verão, quando já se aproximava o final da guerra, o comandante que veio substituir o Tamagnini à frente do CEP, um general, por sinal, monárquico, Tomás Garcia Rosado, quis que Portugal chegasse ao fim da guerra com este trunfo político de ser novamente um corpo de exército e de ter novamente tropas de combate, não apenas tropas de engenharia, e determinou que fossem novamente enviadas tropas para a frente.

Houve então uma unidade que assaltou o paiol, armou-se, entrincheirou-se, bombardeou o alojamento do oficial, e foi atacada por unidades criadas ad-hoc, especiais, somente compostas por sargentos e oficiais, que causaram 14 mortes. Digamos que isto foi já depois do 9 de abril, mas foi também uma das suas consequências e um prolongamento do ambiente que existia.

Vamos então à batalha propriamente dita, se assim se pode chamar…

Prisioneiros portugueses
Prisioneiros portugueses. "Quando chegaram, aparecemos de braços no ar e dissemos ‘somos bons prisioneiros’. E os alemães entraram e pediram-nos cigarros e nós demos.”

Eu acho que não se pode chamar. Porque uma batalha é um confronto militar em que há dois lados, com tropas que obedecem aos comandos respetivos. E neste caso, a tropa portuguesa não obedeceu ao seu comando, nem o seu comando tinha ordens para dar nem pôde dar-lhe. Porquê? Porque o bombardeamento foi impressionante da parte alemã, que juntou recursos de artilharia muito importantes. Numa frente que não tinha mais do que 12 quilómetros, juntou 1.500 bocas de fogo. É fazer as contas de quantos em quantos metros havia um canhão a disparar [dá em média um canhão a cada oito metros]. E nas primeiras horas da madrugada de 8 para 9 de abril lançou quase 1,5 milhão de granadas sobre a frente portuguesa. Lançou-as primeiro para a retaguarda. Nas primeiras linhas eles ouvem, pensam que é mais um bombardeamento e não ligam muito porque o grande bombardeamento está a acontecer lá atrás, para cortar as comunicações, para atingir a logística, os depósitos, a artilharia que estava toda bem identificada e referenciada pelos alemães, e depois vem rolando, de trás para a frente, e aí sim, começa a cair sobre as trincheiras e foi uma coisa absolutamente traumática. Os soldados que estão ali não podem fazer nada a não ser fazer figas para que não lhes caia nada em cima. É mais uma situação desmoralizante.

No documentário aparece o relato de um soldado que em poucos segundos fica enterrado pela terra levantada por uma granada, e a outra desenterra-o…

A avançada das tropas germânicas. Fotograma do documentário.
A avançada das tropas germânicas. Fotograma do documentário.

Exatamente. É o maqueiro Ricardo, um caso citado pelo coronel Luis Alves Fraga. Resumindo em poucas palavras a história da chamada batalha de La Lys, é um bombardeamento intenso que causa a maior parte dos 400 mortos portugueses. Feito este, começa a avançar a infantaria alemã. Avança a tropa regular e as tropas de assalto. Essas são as que vão à frente e entram pelos flancos, pelas costuras da 2ª divisão portuguesa e a 40ª divisão britânica, que está a norte, e depois voltam para trás e atacam muitas vezes as trincheiras portuguesas por trás, dado que entraram facilmente pelos flancos. A batalha resume-se, portanto, a muitas mortes no bombardeamento, entra a infantaria, quem pode foge, quem não pode fugir rende-se. Por isso existe um número desmesurado de prisioneiros portugueses. A relação normal entre mortos e prisioneiros na I Guerra, neste tipo de combates, era de um morto para quatro prisioneiros, aqui foi de um morto para 16 prisioneiros. Os historiadores alemães que entrevistámos dizem que podia existir um certo preconceito contra aquela tropa portuguesa, um deles até utiliza a expressão “crianças-soldados”. E o outro, um historiador da Academia Militar, diz: “Há relatórios que dizem: ‘chegámos às trincheiras e o que lá encontrámos foram soldados completamente assustados que até nos deram um bocado de pena’” E dizem outra coisa. Numa batalha como estas, é arriscado render-se. Mas os soldados portugueses que puderam correram esse risco. E saíram-se bem, porque de facto os alemães não vinham com uma sanha extraordinária, que é o que muitas vezes acontece quando se vê morrer os companheiros ao lado e portanto vai-se com um espírito mais retaliatório. Aqui não houve nada disso, não houve reação da parte portuguesa e portanto quem se rendeu foi geralmente bem tratado no momento da rendição. Um outro soldado, o António Santos, a certa altura do seu diário escreve: “O problema era que havia um tiroteio muito grande e nós não nos atrevíamos a subir ao parapeito da trincheira para nos rendermos. Então ficámos ali muito encolhidinhos à espera que viessem os alemães. E quando chegaram, aparecemos de braços no ar e dissemos ‘somos bons prisioneiros’. E os alemães entraram e pediram-nos cigarros e nós demos.” E pronto. Assim foi o ato da captura deles.

Existem depois alguns nichos de resistência. Mas são nichos muito esporádicos e isolados, em Haute Maison, Lacouture, insuficientes para se poder dizer que isto foi uma batalha. Foram escaramuças no meio de um caos generalizado em que não há qualquer reação coordenada das tropas portuguesas. Cada um faz por si aquilo que lhe parece melhor.

Não deixa de ser interessante ver o que sobreviveu ao corte total das comunicações telefónicas por causa desse bombardeamento. Ficaram a existir três formas de comunicação. Uma, os very lights, que só podiam servir para indicar o sítio onde seria bom que a artilharia disparasse; outro eram os estafetas, mandados da frente para a retaguarda com recados e a pedir instruções. Quase nenhum chegou: ou foram mortos ou desertaram. E a terceira eram os pombos-correio!

Estreia agora um filme sobre o soldado Milhões, apresentado como um herói português. Qual é a história desse homem?

Aníbal Augusto Milhais, o soldado Milhões. Foto de J. Fernandes, Biblioteca Nacional de Portugal, domínio público.
Aníbal Augusto Milhais, o soldado Milhões. Foto de J. Fernandes, Biblioteca Nacional de Portugal, domínio público.

Aníbal Augusto Milhais, o soldado Milhões, é o único soldado raso que tem a mais alta condecoração, a Torre e Espada. A alcunha ficou-lhe porque o comandante lhe disse: “Tu és Milhais, mas vales milhões.” Ele não se encontrava nas primeiras linhas, estava mais atrás, próximo de Lacouture, e o primeiro reflexo que teve, segundo o próprio conta, foi retirar. Na retirada, quando chegou a Lacouture, aí permaneceu, foi mudando de sítio, tinha uma metralhadora pesada Lewis e enfrentou as tropas que lhe apareceram. Disse que eram alemães. Disse também numa entrevista à RTP de 1967 que eram soldados alemães disfarçados de portugueses, que tinham tirado os uniformes a prisioneiros portugueses para se disfarçarem. Por isso, não disparou contra eles. Foi perguntar a uns escoceses que ali estavam há mais tempo, e estes disseram que eram portugueses. Mas depois viu-os com uns capacetes e uns motociclos que o levaram a crer que eram alemães. Disparou então sobre eles com a metralhadora e fez uma mortandade. Durante vários episódios de confronto, disparou sobre essas forças.

Esta história é um bocado difícil de esclarecer. Por um lado não há prisioneiros portugueses que digam que lhes tiraram o uniforme. Tiraram-lhes relógios, botas, muita coisa. Mas não há testemunhos a dizerem isso. Há o caso de um que diz que lhe tiraram o capote. Mas o capote é para a defesa do frio, não é o que se leva para o combate. Por outro lado, todos os historiadores a quem fiz esta pergunta elementar: era costume, é possível, é plausível que as tropas alemãs se tenham disfarçado com uniformes portugueses?, todos me dizem que não. O historiador militar português, os dois historiadores alemães afirmam que isso é completamente impossível, que é o tipo de coisa que naquela altura não se fazia de modo nenhum, e que se a ideia tivesse sido proposta seria certamente rejeitada, porque num combate com aquelas características esse artifício iria levar a que houvesse tropas alemãs a dispararem sobre tropas alemãs. Portanto, admitem que o Milhões se tenha enganado e tenha disparado sobre soldados que realmente eram portugueses, ou soldados que ele não distinguiu bem o que é que eram. Ou que tenha pensado que eram uniformes portugueses e afinal não eram… há várias hipóteses para explicar.

A entrevista à RTP do soldado Milhões em 1967. Fotograma do documentário.
A entrevista à RTP do soldado Milhões em 1967. Fotograma do documentário.

Agora, é verdade que, para uma batalha que não existiu, onde apenas houve alguns nichos de resistência, num corpo expedicionário que tinha como uma das suas principais funções a propaganda da participação e da presença de Portugal, era essencial criar um herói. Penso que essa foi a explicação para que a história do soldado Milhões não tivesse sido analisada de uma forma mais sólida e crítica. Ele foi certamente uma pessoa que manteve alguma presença de espírito, mas não sei se a terá mantido toda. Houve muitos soldados que perderam a consciência, que ficaram em estado de choque, que não souberam contar o que aconteceu nesse dia, e o Milhões conta. Agora, se ele conseguiu analisar as coisas todas que lhe estavam a acontecer, é mais duvidoso.

Apesar de ser condecorado, ele depois tem uma história triste, não é?

É. Até é curioso que o Milhões tenha sido condecorado pelos atos mais controversos que praticou, porque há uma outra história que não é valorizada no quadro da atribuição da condecoração e me parece muito mais meritória. Quando já vai a fugir, depois de ter disparado e matado toda a gente que tinha para matar e procura chegar ao comando do seu batalhão, a certa altura passa por uma casa em ruínas e ouve um choro de criança. Vai lá e encontra uma criança pequena, pega nela às costas e continua a caminhada, até uma outra aldeia onde estão duas jovens que lhe perguntam donde é que vem. Ele explica, diz onde encontrou a criança e as duas jovens pedem-lhe para ficarem com a miúda porque afirmam conhecê-la. E ele entrega-a, segue a retirada e chega ao comando da sua unidade.

Claro que do ponto de vista da propaganda política que se queria fazer era muito mais importante matar alemães do que salvar crianças. E foi isso que sempre se associou com mais força à história do Milhões. Ele recebeu a Torre e Espada, ainda no governo do Sidónio, foi o Gomes da Costa que o condecorou pessoalmente, prestando-lhe uma grande homenagem, e depois voltou para a sua vida pobre e miserável de sempre, em Valongo, que foi rebatizada para Valongo de Milhais, mas ele continuou pobre e teve de emigrar para o Brasil. Lá foi apoiado pela comunidade portuguesa emigrante, que achou indecente um herói da guerra estar ali a fugir da pobreza, deu-lhe algum dinheiro que lhe permitiu voltar e continuar a viver uma vida pobre, modesta, até o final.

Já nos anos 60, durante a guerra colonial, o Estado Novo, que nunca tinha sido entusiasta da propaganda sobre a I Guerra Mundial, porque era a guerra da República, foi buscar outra vez o Milhões e apareceram então as entrevistas na Emissora Nacional, na RTP, em que ele conta a história dos alemães disfarçados com uniforme de portugueses.

Tem algum sentido esta onda patriótica em torno de La Lys?

Creio que tem uma função política que é, por um lado, fazer alguma propaganda da unidade europeia, que continua a ser uma das bandeiras destes governos todos, esquecendo que a unidade europeia daquela altura era a unidade de uma parte da Europa contra a outra. Foi esse, aliás, um dos temas presentes nos discursos, nas intervenções e nos comentários avulsos que fizeram tanto Marcelo Rebelo de Sousa como António Costa, nesta comemoração que houve em Paris. Além disso, é uma forma de confortar um certo chauvinismo, é algo que está na onda, da vaga nacionalista que existe um pouco por todo o lado. Quer dizer: é ao mesmo tempo pôr os ovos no cesto do Brexit e no anti-Brexit; pôr os ovos em todos os cestos e fazer propaganda europeísta e chauvinista ao mesmo tempo. Não procura compreender o que foi esse descalabro de La Lys há cem anos. Porque todas as narrativas oficiais que têm transpirado nestas comemorações, na verdade o que fazem é diluir a história. Não têm qualquer rigor histórico.

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