Está aqui

Irão: Manifestantes desafiam hijab como símbolo religioso e político

Morte de Mahsa Amini pela polícia religiosa em Teerão desencadeou protestos em vários pontos do país. Manifestantes estão a ser brutalmente reprimidos, com mais de duas centenas de feridos, 250 presos e pelo menos três mortos. Jovem tinha sido detida por usar hijab incorretamente.
Foto de Clemens Bilan, EPA/Lusa.

Na terça-feira da semana passada, Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos, foi detida enquanto passeava pela capital iraniana com a sua família e rapidamente levada numa carrinha pela polícia religiosa do Irão. As autoridades disseram ao seu irmão que Mahsa seria libertada dentro de uma hora, após lhe ser dada uma lição de "reeducação" sobre a obrigação de usar o hijab (lenço islâmico). Horas depois, a jovem foi transportada para uma unidade de cuidados intensivos no Hospital Kasra, no norte de Teerão. Na sexta-feira, a televisão estatal acabou por anunciar a sua morte, após um coma de três dias.

Várias imagens que circulam nas redes sociais iranianas mostram Mahsa Amini numa cama, entubada. A jovem exibe vários traumatismos no rosto e aparenta ter o nariz partido. De acordo com o Mediapart, o irmão de Mahsa confirmou ao site IranWire que o “seu rosto estava inchado e as suas pernas estavam cheias de hematomas”.

Segundo a versão oficial, a jovem “não teve contato físico” com os guardas e morreu de ataque cardíaco. Mas a família de Mahsa negou essa versão, afirmando que ela gozava de perfeita saúde antes da sua prisão. Mahsa Amini foi enterrada na sua cidade natal de Saqhez, na província do Curdistão, no sábado. O seu funeral provocou um protesto em frente ao gabinete do governador local com gritos de "morte ao ditador" e "o hijab matou-a". Dezenas de mulheres iranianas tiraram os hijabs e acenaram-nos em solidariedade.

A multidão foi dispersada com bombas de gás lacrimogéneo pela polícia que, segundo várias testemunhas, também disparou balas reais, ferindo várias pessoas.

Protestos multiplicam-se e são ferozmente reprimidos

A morte da jovem causou uma onda de indignação em todo o Irão, com particular incidência nas grandes cidades e no Curdistão, em particular na cidade de Sanandaj, tradicionalmente muito hostil à República Islâmica por causa da repressão de que foi alvo no passado. A província do Curdistão foi também palco de uma greve geral na segunda-feira. As mulheres têm tomado um papel preponderante nos protestos.

Na cidade sagrada de Mashhad, de onde o presidente Ebrahim Raisi é originário, foram organizadas marchas, e na Universidade de Teerão os alunos mobilizaram-se ao som de palavras de ordem como "Adalat, Azadi, Hejab ekhtiari" ("Justiça, liberdade, o véu é opcional”). Na Faculdade de Belas Artes de Teerão, cartazes ostentavam frases como “Não queremos morrer”.

As forças de segurança têm respondido aos protestos com extrema violência, utilizando gás lacrimogéneo, balas reais, canhões de água, e recorrendo a perseguições e espancamentos. Na região do Curdistão, no noroeste do país, a ação policial é particularmente mais violenta e fatal.

Desde o funeral de Mahsa, já se registaram mais de duas centenas de feridos, 250 presos e, pelo menos, três mortos. De acordo com o The Guardian, o grupo curdo de direitos humanos Hengaw, com sede na Noruega, disse que as mortes tiveram lugar nas cidades de Divandareh, Saqqez e Dehglan. Já a Kurdistan Human Rights Network avança com a referência a seis mortes.

Na noite de terça-feira, o governador da província do Curdistão admitiu que três pessoas foram mortas nos protestos organizados em diferentes localidades. No entanto, falou de mortes "suspeitas" e de um "complô instigado pelo inimigo", dizendo que uma das vítimas havia sido atingida por um tipo de munição não utilizada pelas forças de segurança iranianas.

A plataforma NetBlocks, que supervisiona a conectividade da internet dos utentes e a censura na rede, informou que o acesso à internet foi restringido em vários pontos do país.

Declarações de repúdio ganham força

"Estamos a assistir a uma reação por todo o país, tal como aconteceu com George Floyd, num momento de consciencialização nacional que não pode mais suportar a violência da classe dominante sobre os cidadãos", afirmou Hadi Ghaemi, diretor executivo do Centro de Direitos Humanos do Irão, grupo sediado em Nova Iorque.

As críticas surgem, inclusive, da comunidade religiosa do país se tem insurgido. O grande aiatola Asadollah Bayat-Zanjani condenou a morte de Mahsa Amini e a ação da polícia, que foi "contra a lei, contra a religião e contra o bom-senso". "As mulheres no Irão devem ter o direito de usar o que quiserem", frisou. Duas figuras altamente respeitadas da cidade sagrada de Qom, os grandes aiatolas Sayyed Moussa Zandjani e Sayyed Mostapha Mohaghegh Damad, ficaram comovidos com a morte de Mahsa Amini, o que equivale a criticar o regime.

Várias figuras políticas também ousaram atacar o líder da revolução islâmica, o aiatola Ali Khamenei, cuja crítica é punível com prisão. "O que o líder supremo tem a dizer sobre o tratamento da polícia iraniana a Mahsa Amini, quando denunciou com razão a polícia dos EUA no caso George Floyd?, escreveu o ex-deputado reformista Mahmoud Sadeghi na sua conta de Twitter.

Já o famoso realizador iraniano Asghar Farhadi, grande prémio do festival de Cannes em 2021, descreveu a morte da jovem iraniana como um “crime”.

Os protestos também se focam no presidente iraniano, Ebrahim Raisi, que está atualmente em Nova Iorque para discursar pela primeira vez na assembleia geral da ONU. Grupos de direitos humanos estão a protestar contra a sua presença e a apresentar ações legais.

A União Europeia referiu ser "imperativo que as autoridades iranianas garantam que os direitos fundamentais dos seus cidadãos sejam respeitados e que aqueles que se encontram sob qualquer forma de detenção não sejam sujeitos a qualquer forma de maus-tratos".

Em Genebra, o Gabinete de Direitos Humanos da ONU alertou que a polícia religiosa do Irão está a expandir as suas patrulhas nos últimos meses, visando mulheres por não usarem adequadamente o hijab. Nada Al-Nashif, alta comissária interina da ONU para os direitos humanos, citada pelo elDiario.es, afirmou que “a trágica morte de Mahsa Amini e as alegações de tortura e maus-tratos devem ser investigadas de forma imediata, imparcial e eficaz por uma autoridade competente independente”.

A organização Human Rights Watch também exigiu na terça-feira “responsabilidades” pela “repressão com gases lacrimógenos e força letal” contra os manifestantes. “Mahsa Amini nunca deveria ter sido detida. A abusiva 'polícia da moral' do Irão deve ser abolida e as leis sobre o hijab obrigatório e outras que violam os direitos das mulheres devem ser eliminadas imediatamente”, defendeu Tara Sepehri Far.

Regras cada vez mais opressoras

Uma diretiva de 5 de julho reforça ainda mais a obrigatoriedade do uso do hijab, ao impor um véu que cobre não apenas o cabelo, mas também o pescoço e os ombros. Um “dia nacional do hijab e da castidade” chegou a ser decretado e celebrado, pela primeira vez, em 12 de julho. No mês seguinte, a 15 de agosto, um decreto assinado pelo presidente Raisi prevê punições ainda mais severas para quem violar o código de vestimenta, seja no espaço público ou nas redes sociais.

Foi ainda adotado todo um conjunto de regulamentos para fortalecer a aplicação das leis islâmicas. As funcionárias públicas podem ser demitidas se as suas fotos de perfil nas redes sociais forem consideradas imodestas, e qualquer mulher iraniana que publicar fotos sem véu pode ser privada de certos direitos sociais por um período de 6 meses a um ano. A entrada em bancos e administrações pode até ser proibida para qualquer mulher iraniana que não respeite as novas regras.

Ainda assim, a professora de sociologia e diretora do Centro de Ensino, Documentação e Pesquisa para Estudos Feministas da Universidade Paris-Cité, Azadeh Kian, explicou ao Libération que “mais e mais mulheres se atrevem a não usá-lo [ao hijab] em público, e não apenas usá-lo mal, especialmente nas grandes cidades: Teerão, Shiraz e até Isfahan, que é mais conservadora”. A especialista em movimentos de emancipação feminina no Irão assinalou que os manifestantes estão atualmente a desafiar o hijab como um símbolo religioso e político.

Termos relacionados Internacional
(...)