Está aqui

Intervenção militar no Rio de Janeiro: O Brasil afunda cada vez mais num Estado de Exceção

A intervenção militar jamais será a melhor solução para o grave problema de violência urbana que assola todos os estados do Brasil. Por Rômulo Góis
Um dos maiores absurdos dessa intervenção militar no Rio de Janeiro é a ciência da ineficácia da medida
Um dos maiores absurdos dessa intervenção militar no Rio de Janeiro é a ciência da ineficácia da medida

Desde o golpe parlamentar, jurídico e midiático que retirou da presidência Dilma Rousseff, o Brasil passou a afundar dia após dia num Estado de Exceção.

O país vive uma situação extremamente grave, onde direitos são suprimidos diariamente, não só pela implementação de uma agenda neoliberal muito agressiva, mas também pelo desrespeito sistemático de princípios básicos democráticos de direito pelos poderes constituídos numa panaceia de insegurança jurídica.

Este artigo não está escrito apenas para internacionalizar a luta e informar as nuances assustadoras e velozes da conjuntura interna brasileira, está escrito para todas e todos os cariocas, especialmente para todas as negras, os negros, faveladas, favelados, para todo proletariado e todas as comunidades do Rio de Janeiro.

É preciso listar estas condicionantes, pois as principais e primeiras vítimas da intervenção militar no Estado do Rio de Janeiro serão estes. Serão estas pessoas listadas.

Como se já não bastassem todas as agressões, exclusões, supressões sistemáticas, racismo estrutural e histórico contra os mesmos, agora sofrerão intervenção militar direta.

A intervenção que foi decretada não será contra o Estado do Rio de Janeiro. Será contra essa parte da população.

É impressionante como o tabuleiro político brasileiro se mexe e assusta. É preciso estar atento e forte, como cantava Gal Costa, mas não há tempo de Temer, pois o mesmo medo que tenta abater a população, é o medo utilizado pela grande mídia para justificar a todo custo uma intervenção militar extremamente reprovável sob inúmeros pontos de vistas. Medida que foi decidida por um governo corrupto, ilegítimo, que ataca diuturnamente a população, que não tem condições de governar sequer o país e que com ela retirou as funções de um governo estadual.

Temer foi humilhado no carnaval brasileiro esse ano, virou chacota, piada. Em todas as capitais e grandes carnavais do país, milhões de pessoas entoaram “Fora Temer”. Foi o hino do carnaval de 2018. Temer não conseguiu votos suficientes de parlamentares para aprovar a reforma da previdência, pois nenhum parlamentar votaria num ano eleitoral uma emenda à constituição de uma reforma detentora de 93% de desaprovação popular, uma das reformas mais drásticas do seu pacote de maldades neoliberais contra os trabalhadores.

Temer agora quer usar o Exército e seus soldados como peões num tabuleiro político para justificar seu marketing pessoal e sua nova narrativa política baseada na tal da “Ordem” que tem uma finalidade eleitoreira, a de capitalizar os votos do candidato de extrema-direita, o fascista Bolsonaro, que aparece na segunda colocação em várias projeções políticas, e que não foi escolhido como candidato pelo grande capital e pelos atores que golpearam a democracia, simplesmente por ser um Trump piorado à décima sem qualificação alguma.

Temer quer ter o direito nos últimos meses de governo de um jus sperniandi para tentar salvar seus comparsas e alçar um candidato a ser escolhido para seguir o script neoliberal em andamento. Temer sabe que todos aqueles que golpearam a democracia brasileira serão derrotados por qualquer projeto popular de esquerda nas urnas.

A população brasileira não aguenta mais e manifestou isso de um modo muito claro no carnaval, por mais caricato que seja, ocorreu uma clara viragem na correlação de forças políticas do Brasil no carnaval. Só no Brasil para acontecer isso.

Os partidos de direita brasileiros sabem: Não há candidato que vença um projeto popular de esquerda. Não há.

Um dos maiores absurdos dessa intervenção militar no Rio de Janeiro é a ciência da ineficácia da medida. As últimas intervenções feitas, que possuíam natureza diferente pois baseadas no decreto da GLO “Garantia da Lei e da Ordem”, uma aberração jurídica que desvia as funções das forças armadas para ocupar morros e favelas, só fizeram aumentar o “Efeito espalha baratas” e a “Síndrome do Bode”.

É preciso colocar em aspas essas expressões, porque assim foram denominados pela doutrina da segurança pública brasileira os principais efeitos observados pelas várias ocupações dos morros por forças militares. Os bandidos se espalharam para outras comunidades e outros estados ou simplesmente, como uma síndrome de bodes, desceram das favelas e depois subiram quando os mesmos foram desocupados.

O mais grave é que não existe planeamento para a intervenção, conforme discurso do general nomeado interventor Braga Netto.

Mais grave ainda é querer através do Decreto, descaracterizar a natureza civil da função pública a ser desenvolvida pelas forças armadas, que será de policiamento ostensivo, para natureza militar. O Decreto assinado por Temer quer transferir a competência para julgamento dos possíveis erros e crimes cometidos pelos militares nas operações (que serão inúmeros) para Justiça Militar.

Juridicamente, a Constituição brasileira prevê que se um militar cometer um crime contra um cidadão, este deve ser julgado por um juiz da justiça comum, por um tribunal civil. O Decreto tenta reverter essa situação e passa a fazer com que o militar seja julgado por um tribunal militar. O velho julgamento dos militares pelos militares. Eles sabem da incapacidade do exército em exercer a função de polícia ostensiva e querem um salvo conduto para matar e transferir o julgamento dos assassinatos para os quartéis. Militar julgando militar por crimes e mortes. Lembram de algum período da história brasileira ou mundial no qual isso ocorria? A democracia brasileira ainda existe?

A intervenção militar jamais será a melhor solução para o grave problema de violência urbana que assola todos os estados do Brasil. Soluções existem, mas nunca serão soluções simples ou mágicas, principalmente para problemas complexos. Pode-se, por exemplo, repensar e reformular a gestão da segurança pública e o papel da polícia na sociedade, com a garantia de um trabalho adequado para os mesmos, com natureza civil, com valorização da carreira e condições dignas para exercício de uma função tão difícil e importante para a sociedade; pode-se investir num trabalho mais articulado entre as polícias estaduais e federais, de prevenção e com mais inteligência e maior transparência nas suas ações; deve-se promover ações concretas para desarticular o tráfico de drogas e prender também os traficantes que porventura estão em Brasília, pois o narcotráfico tem braços políticos; pode-se repensar a política proibicionista de drogas e focar num novo paradigma voltado para saúde pública, para redução de danos, prevenção e informação sobre o uso das mesmas (Portugal é exemplo mundial); Pode-se substituir parte do gasto milionário que demandará a intervenção militar para o incentivo de programas sociais, educativos e culturais para as/os jovens que vivem em comunidade sensíveis.

A longo prazo, pode soar clichê, mas nunca será, só a educação salva, só a educação salvará o Brasil. O investimento maciço em educação.

É preciso realmente perceber e denunciar o que está acontecendo. Chegou a hora de pedir asilo a outras nações?

O Comando Geral das Forças Armadas disse que queria "garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade". A Comissão da Verdade investigou casos de tortura e mortes durante o período da ditadura militar

O Comando Geral das Forças Armadas, através do General Villas Bôas, em depoimento público sobre a intervenção militar disse que queria "garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade".

A Comissão da Verdade investigou casos de tortura e mortes durante o período da ditadura militar.

A Intervenção Militar decretada prevê o uso de mandados judiciais de busca e apreensão coletivos, o mesmo General disse: "Mas tudo vai depender da Justiça e é feito com o acompanhamento do Ministério Público". Esse depoimento demonstra uma clara tentativa de proteção com o Princípio da Legalidade, como se num estado de exceção ou numa ditadura, o Poder Judiciário não endossasse medidas inconstitucionais, como se os nazis não tivessem dito no Tribunal de Nuremberga que tinham agido dentro da legalidade.

A Intervenção quer garantir que o Exército possa entrar e devassar toda e quaisquer casa, todas as casas de um bairro ou de uma zona, qualquer casa de qualquer pessoa, de qualquer cidadão. Isso acaba com características básicas e consequentemente com a constitucionalidade do uso desse instrumento jurídico: a delimitação e a pessoalidade do mesmo. Imaginem o que vão fazer nas casas quando invadirem... Todos devem ter suas casas devassadas?

O que significa esse discurso do Comandante Geral das Forças Armadas?

É um indicativo e um recado político para que os militares possam fazer tudo e que querem fazer tudo, mas que a verdade não deverá ser revelada ou investigada depois. Mesmo que morram inocentes, que torturem pessoas, eles querem garantia para agir sem o risco de uma Comissão da Verdade.

Por isso apelo aos cariocas: não corra amiga, não corra amigo, não corra!

Por que preta, preto, pobre e favelado correndo no Brasil nunca foi tratado como “pessoa de bem” e em épocas de intervenção militar no terceiro maior estado do país existirá uma chance enorme dessas mesmas pessoas começarem a serem mortas sistematicamente.

Escrevo duas últimas coisas: Não se sintam só, não sintam medo. A correlação de forças começou a virar agora e a tendência é crescer. Não podemos permitir que o estado das coisas continue assim. Há de ter muita luta.


Por Rômulo Góis, doutor pela Universidade Nova de Lisboa, Ativista pelo Coletivo Andorinha – Frente democrática brasileira em Lisboa, pelo PSOL e pelo Bloco de Esquerda.

Termos relacionados Comunidade
(...)