Passaram doze anos desde a morte de Gisberta Salce Júnior. Dela sabemos que era uma mulher trans, imigrada do Brasil, possivelmente para fugir às horríveis estatísticas de crimes transfóbicos observadas no país. Num contexto em que a maioria dos crimes de ódio não são classificados enquanto tal, ainda assim o Brasil é o país do mundo onde ocorrem mais homicídios transfóbicos e onde a esperança média de vida das pessoas trans é de apenas 35 anos, valor em muito inferior à média de 75 anos da restante população.
Cinco anos antes da entrada em vigor da atual lei da identidade de género, Gisberta encontrava-se em situação irregular em Portugal, desempregada e sem documentos que coincidissem com a sua identidade. Sem emprego e sem dinheiro, entrou em situação de sem abrigo. É fácil perceber a lógica do beco sem saída. Embora o acesso à saúde por pessoas em situação irregular esteja consagrado, este torna-se mais difícil nestas situações e, sem acesso ao Serviço Nacional de Saúde não há tratamento hormonal e mudança de nome nos documentos. Sem acesso ao tratamento hormonal e mudança de nome, não há emprego. A bola de neve ganha rapidamente contornos elevados quando se vive numa situação de exclusão e de discriminação.
Gisberta estava a viver num prédio cuja construção tinha sido abandonada. Perto desse prédio funcionava a Oficina de São José, uma instituição católica que acolhia rapazes retirados às suas famílias (a Oficina encerrou, anos depois, após um escândalo de abusos sexuais e desvio de dinheiro), onde estavam onze dos catorze jovens que ao longo de vários dias a agrediram, molestaram sexualmente e mataram. A história da sua morte é já bastante conhecida. A Gisberta é, pelas piores razões, o símbolo da transfobia em Portugal e a comunidade LGBT procura recordá-la anualmente.
Nos últimos anos têm surgido em Portugal novas associações e coletivos que reconhecem a especificidade das reivindicações da população trans e a importância de as priorizar. Em declarações ao esquerda.net, Eduarda Santos, representante do Grupo Transexual Portugal, recorda que a violência de que as pessoas trans são alvo é ainda uma realidade bem presente em todo o mundo e que “com a eleição de Trump nos E.U.A. e de outros similares, particularmente na Europa de Leste, notou-se um agravamento das agressões e homicídios de pessoas trans”. A perseguição a esta população está a sofrer um agravamento também noutras zonas do globo, como “na Indonésia, onde recentemente na província de Aceh as pessoas trans foram proibidas de trabalharem em cabeleireiros”. A nível internacional, a ativista recorda também “os níveis inaceitáveis de violência contra as mulheres trans no Brasil e a que a comunidade trans internacional não tem, talvez, dado a importância devida”. Também Daniela Bento, do GRIT - Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transsexualidade da ILGA Portugal, destaca os “retrocessos políticos em vários pontos do mundo” e o seu impacto “nas comunidades socialmente mais fragilizadas e vulneráveis a vários tipos de violência”. Lembra também que é ainda muito elevado o número de países onde é necessária a “esterilização compulsória para que pessoas trans vejam a sua identidade reconhecida”.
A TransMissão: Associação Trans e Não-Binária considera que um dos maiores desafios do ativismo trans passa pela “inclusão das pessoas não-binárias e o reconhecimento das suas lutas, necessidades e dificuldades próprias”. Vasco, representante da associação, destaca igualmente que é preciso lutar “contra a exclusão das pessoas trans do feminismo”, algo que considera ser perpetuado por “TERFs [trans exclusionary radical feminists], feministas radicais e outras pessoas bioessencialistas”.

A população transexual e transgénero em Portugal continua, na prática, sem acesso a cirurgias no Serviço Nacional de Saúde. Nem sequer o artigo 13º da Constituição da República Portuguesa protege a população da discriminação em função da identidade de género.
“Em Portugal esperamos por uma lei que vise a autodeterminação, dando às pessoas o poder de saberem quem são sem qualquer requisito médico. Mas é necessário continuar a trabalhar para assegurar cuidados de saúde eficazes, eficientes e dignos a todas as pessoas que deles necessitam”, afirma Daniela Bento. A ativista refere que é importante “continuar a lutar por um sistema de saúde, judicial e educativo que respeite dignamente a vida destas pessoas”. São destacadas também as identidades não binárias – aquelas que vão além do masculino e feminino – e a necessidade de estas serem legalmente reconhecidas, bem como da inclusão de menores de idade nas reivindicações políticas pela autodeterminação.
Todos os ativistas concordam na necessidade de despatologizar as identidades trans. “A nível de cirurgias continua-se a depender dos preconceitos que cada médico tem, visto o lobby médico ser muito poderoso”, aponta o Grupo Transexual Portugal.
Eduarda Santos chama a atenção para a necessidade de se ouvir todos os movimentos e não exclusivamente uma ou outra associação. “Existe presentemente uma preocupante partidarização dos direitos trans, em que cada partido ouve exclusivamente os grupos ou associações que gravitam na sua esfera de influência, não ouvindo as que são independentes”, critica a ativista, lembrando a necessidade de incluir essa pluralidade de posicionamentos na construção de propostas de lei.
Também a educação sexual nas escolas continua a ignorar a realidade da população lésbica, gay, bissexual e trans. Eduarda Santos considera que a inclusão destas identidades nos currículos de educação sexual nas escolas é indispensável “para se iniciar o processo de eliminação da homofobia e da transfobia, pois não vale a pena fazerem-se leis contra a discriminação quando não se educa para esse fim”. “É preciso lutar e quebrar os silêncios, quebrar a transfobia internalizada e promover um mundo mais justo. Lutaremos para que as nossas vozes se façam ouvir" e que se aplique de facto o lema 'nada sobre nós, sem nós'”, remata Daniela Bento.