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Fórum Socialismo: Futebol popular

No fim de semana de debates de 26 a 28 de agosto em Coimbra, João Santana da Silva e Rahul Kumar olham para o surgimento dos clubes desportivos populares nos últimos cem anos em Portugal e questionam o seu lugar na sociedade de hoje.
Foto Gustavo Veríssimo/Flickr

A poucos dias da realização do Fórum Socialismo 2022 - mais informações e programa aqui - o Esquerda.net publica alguns resumos das sessões que terão lugar em Coimbra de 26 a 28 de agosto.


Futebol popular

A Grande Guerra de 1914-1918 operou profundas transformações na Europa, algumas de ordem da estrutura do trabalho, modificando o lugar do tempo de lazer na sociedade. Renovam-se as formas de lazer, surgindo ou massificando-se a ida ao cinema, ao teatro ou ao futebol. A relação entre trabalho e desporto também contribuiu para o crescimento do futebol enquanto veículo de lazer, após muitas empresas desenvolverem uma secção desportiva nas suas estruturas, particularmente nas fábricas. A semente da popularização do futebol estava plantada, tendo germinado em diversos países e sendo mesmo necessário restringir esse crescimento.

Portugal, neste quadro, não foi exceção. O vigor associativo trazido pela I República a partir de 1910 e as novas ideias que circulavam na Europa sobre os benefícios do desporto para a produtividade e saúde dos trabalhadores – e já não apenas para as “classes ociosas” – criaram o ambiente perfeito para que se multiplicassem os locais em que se jogava futebol. A partir desse momento, num processo de “contágio” e mimese, foram surgindo grupos informais e pequenos clubes desportivos entre comunidades outrora afastadas dessa prática. Em 1919, surge a lei das 8 horas de trabalho no comércio e na indústria, libertando horas da vida de muitos trabalhadores, sobretudo os homens, para o envolvimento nestes novos eventos: os jogos de futebol. Seja como jogador ou como espectador, o operário passou a organizar a sua semana na expectativa dos jogos de futebol semanais.

Nas zonas mais urbanizadas, as comunidades organizavam-se em redor de pequenos clubes que fundavam nos seus bairros, cumprindo apenas os requisitos básicos legais para os formalizar. No caso da cidade de Lisboa, foi de tal forma o crescimento fora das entidades federativas que alguns destes clubes se juntaram para competir em novos organismos populares, como a Liga Operária de Desportos Atléticos e a Federação Socialista de Desportos Atléticos, criadas no início dos anos 20. Embora raramente motivados política ou ideologicamente, os intervenientes nestas competições desportivas tinham algo em comum: a vontade de participação nos lazeres que, anteriormente, pertenciam a uma elite e que as regras progressivamente mais estritas pareciam voltar a querer limitar. A par desse movimento de bases, a comunidade desportiva organizada aliou-se a médicos e militares que viam esse acesso alargado como perigoso para o desporto – cada vez mais praticado por elementos analfabetos, violentos e com poucos conhecimentos técnicos do jogo – e para os próprios atletas – trabalhando desde crianças e sem uma preparação física e uma aprendizagem metódica de conceitos básicos de ginástica. Os anos 30 e 40, com a imposição de regras, com uma vontade de organização dos lazeres e do desporto por parte do Estado Novo e com a criação da Direção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, levaram ao desaparecimento de muitos desses clubes que, por vezes em condições mínimas, ofereciam alternativas de desporto e sociabilidade nos bairros das cidades.

A partir de 25 de abril de 1974, o impulso associativo volta a sentir-se, sobretudo em vilas e cidades com poucos recursos e infraestruturas ou nos bairros operários das grandes cidades. O clube desportivo popular emulava, para o acesso ao desporto e aos espaços de lazer (incluindo os campos de jogo existentes ou os que se queria que existissem), o que as comissões de moradores faziam para o direito à habitação. Esse associativismo permitiu que os clubes revalidassem muitas das funções essenciais, que extravasavam o próprio desporto: era no clube que se encontrava um balneário para tomar duche (quando não existiam nas casas), que se encontrava jornal ou TV para saber da atualidade, se planeava ações coletivas, se tinha um ginásio ou uma equipa de futebol ou atletismo ou se fazia teatro. O movimento da corrida popular que, quase espontaneamente, surgiu em Lisboa reapropriava-se, simbolicamente, das ruas da cidade. O clube ajudava a aceder a uma cidadania plena através da prática desportiva e da participação associativa.

Sensivelmente na viragem do século, perde-se muito o hábito de frequentar o clube. Não só se consegue um conjunto de bens no espaço privado – desde o duche à televisão própria – como se acede à prática desportiva por outras vias, já não por via da comunidade, ou seja, o acesso ao desporto individualiza-se mais. Simultaneamente, as novas conceções do corpo levam à multiplicação dos ginásios e health clubs, oferecendo uma nova dimensão de consumo que permite esse acesso individualizado, substituindo uma prática desportiva através dos clubes. A própria mercadorização do futebol – principal motor da maioria dos clubes desportivos – obrigou à transformação dos clubes em empresas, formalizando uma mudança que já há muito se tinha operado.

Há lugar para um clube desportivo popular na atualidade? Ou será que, numa sociedade de consumo e com acesso a bens básicos, essa entidade perdeu a sua principal finalidade? E será que os próprios indivíduos conseguem conceber uma prática desportiva popular acessível a todos, sem a tónica na competição (isto é, privilegiar o acesso universal ao desporto com prejuízo da competitividade dos seus atletas e equipas)? Procuraremos refletir sobre estes aspetos.

João Santana da Silva e Rahul Kumar

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