Há quatro anos, a esquerda finlandesa estava satisfeita. Durante décadas, a Finlândia tinha sido conduzida por governos que, em nome da eficiência e da globalização, se distanciaram lenta mas firmemente do marco das negociações laborais, da propriedade estatal e do planeamento que sustentava o Estado Providência.
O sistema social e de cuidados de saúde estava a ruir e o cansaço era patente em todos os serviços públicos. O crescimento económico era lento e as taxas de natalidade estavam em declínio. A classe política e mediática da Finlândia reivindicava há muito tempo que a única resposta era o neoliberalismo.
Depois, pareceu haver outro caminho. Em 2019, um novo governo de centro-esquerda prometeu reformas sociais e ambientais de longo alcance, incluindo o rejuvenescimento do Estado Providência e um compromisso ousado com as emissões "net zero" até 2035.
A tarefa coube ao primeiro-ministro Antti Rinne, um sindicalista experiente, que liderou uma coligação composta pelos sociais-democratas de Rinne, os Verdes ambientalistas, o Centro agrário, a Aliança de Esquerda, e o Partido do Povo Sueco.
Mas, menos de um ano após as eleições, Rinne foi-se embora, demitindo-se na sequência de uma greve postal a nível nacional que o colocou contra o movimento sindical que serviu de base ao seu poder. No seu lugar, Sanna Marin iria em breve enfrentar uma série de testes intensos: a pandemia da covid-19 devastou o país e a guerra na Ucrânia alterou a situação de segurança em toda a Europa.
O historial do governo de Marin no cumprimento da sua agenda foi mitigado, e as divisões entre os partidos da coligação em temas internacionais ofuscaram frequentemente as suas conquistas.
Crises Gémeas
Durante a pandemia, a Finlândia evitou os confinamentos mais rigorosos comuns em grande parte da Europa, enquanto bos parte do sistema de saúde finlandês adotou uma abordagem cuidadosa para implementar restrições e a necessidade de vacinações para todos os grupos. A abordagem foi bem sucedida durante um ano e meio: a vida diária era relativamente livre de intervenções sanitárias públicas e as mortes pandémicas permaneceram baixas.
Isto não iria, e talvez não pudesse, durar. Após o outono de 2021, o excesso de mortes na Finlândia foi, em média, mais elevado do que no resto da Europa. Os críticos afirmaram que as restrições tinham sido levantadas demasiado cedo, e outros culparam o programa de vacinação e a decisão de não oferecer segundas doses de reforço aos maiores de sessenta anos.
Depois, em fevereiro de 2022, a invasão russa da Ucrânia provocou uma reação nacional imediata, atingindo os limites mais profundos da consciência histórica finlandesa. Impensável nas últimas décadas, a ameaça de uma grande nação que procurava conquistar o seu vizinho mais pequeno pairava sobre a sociedade e a vida política finlandesas.
Mesmo antes da guerra, a opinião pública tinha começado a deslocar-se para a adesão à NATO e a invasão da Rússia apenas acelerou esta tendência. Marin, que tinha anteriormente declarado a improbabilidade do seu governo levar a Finlândia para a NATO, depressa passou a defender a união militar - e a cortar os laços comerciais de décadas com a Rússia.
Dos partidos da coligação governamental, apenas a Aliança de Esquerda se opôs à adesão à NATO; outros partidos insistiram em avançar a toda a velocidade, e ontem, a adesão da Finlândia à aliança militar foi confirmada. Quaisquer que sejam as consequências das eleições, esta é uma questão em que não se esperam mudanças políticas.
Reforma do Estado-Providência
Foi na política interna que o Governo de Marin provocou a maior controvérsia. Sucessivos governos tentaram e falharam na reforma dos sectores da saúde e da assistência social da Finlândia, e o seu não foi diferente. Embora as reformas tenham respondido a alguns destes desafios, a fraca prestação de serviços básicos nas áreas rurais da Finlândia e a disfunção dos cuidados de saúde em Helsínquia, caracterizada por problemas de longa data nas maternidades da capital, continuaram.
O Governo tentou melhorar os cuidados de saúde principalmente através de reorganizações estruturais, com a transferência de mais poderes dos municípios para regiões maiores com conselhos eleitos, o que ajudou a aumentar o grau de coordenação entre os sectores da saúde e da assistência social anteriormente desligados entre si.
Em teoria, as reformas foram positivas e voltaram às melhores tradições do Estado Providência - criando um forte enquadramento público para encorajar o desenvolvimento humano que incumbia ao Estado e não aos prestadores privados. Na prática, o sistema não dispunha do financiamento necessário para produzir melhorias reais. O Governo não conseguiu nem aumentar significativamente o financiamento central nem dar às regiões maiores poderes fiscais. Como resultado, as reformas ficaram a meio.
Problemas semelhantes afetaram as políticas educativas centrais do país. Por iniciativa da Aliança de Esquerda, que dirigia o Ministério da Educação, a idade da escolaridade obrigatória foi aumentada de dezassete para dezoito anos. Com o objetivo de combater a marginalização social, esta reforma visava proporcionar a todos os jovens a oportunidade de prosseguir a sua educação.
Estas ambições são louváveis, mas o Governo também herdou um legado de cortes orçamentais na Educação, que não conseguiu reverter totalmente. O sistema educativo finlandês, frequentemente no topo das tabelas de desempenho internacional e famoso pelas suas refeições escolares gratuitas, há muito que é uma questão de orgulho nacional. Relatórios sobre o declínio dos resultados escolares revelaram-se assim prejudiciais.
Apesar da presença dos sociais-democratas e da Aliança de Esquerda, com base no movimento laboral, o desempenho do Governo em matéria de direitos laborais nem sempre atingiu a sua meta. Da recusa em satisfazer as exigências salariais das enfermeiras durante a pandemia até à provocação de uma greve postal nacional, passando pelo fracasso mais geral em fazer avançar os direitos laborais, tudo isso contribuiu para afastar os apoiantes da classe trabalhadora para benefício dos populistas de direita.
A "Viragem Verde"
As políticas climáticas dos partidos governamentais e a hábil retórica da direita contra a "viragem verde" são essenciais para se compreender o fracasso eleitoral do Governo. O objetivo de alcançar a neutralidade carbónica até 2035 de uma forma socialmente responsável criou divisões profundas.
O Partido do Centro, apoiado pelo agronegócio finlandês, opôs-se a medidas para reduzir a utilização de energia da turfa para a produção de eletricidade e limitar a desflorestação. A viragem da esquerda finlandesa na sua oposição à energia nuclear e o ato de equilibrismo dos social-democratas entre os objetivos ambientais e a abordagem "empregos-primeiro" das empresas e partes do movimento sindical não conseguiram colmatar esta lacuna.
Enquanto alguns dos conflitos refletiam choques de interesses, outros eram disputas mesquinhas ou motivadas pelo medo da crítica de direita do Partido do Centro. As pressões económicas resultantes da guerra na Ucrânia levaram a que o programa ambiental se tornasse ainda mais precário.
Com o aumento da inflação a fazer disparar os preços dos combustíveis e dos alimentos, o impulso para a justiça ambiental tornou-se difícil de justificar, visto por alguns como uma forma de eco-austeridade - como os Verdes, que se despenharam nas eleições, descobriram da pior maneira.
O problema da dívida
A crise económica afetou profundamente as eleições de outra forma, empurrando a questão da dívida nacional para o topo da agenda.
A esfera política finlandesa tem um medo profundo, quase primário, da dívida. E a dívida é algo difícil de evitar quando há uma pandemia e uma guerra - ou quando se tenta promulgar reformas de longo alcance para reforçar o Estado Providência.
A Coligação Nacional, o partido pró-mercado e socialmente liberal que irá quase certamente chefiar o próximo Governo, capitalizou com isso, ganhando o apoio da classe média temente à dívida ao enfatizar a sua responsabilidade fiscal. O Partido dos Finlandeses, populista de direita, possivelmente decidido a desempenhar um papel importante na coligação, aproveitou-se do ressentimento rural contra a legislação ambiental, defendendo a necessidade de cortes nas despesas governamentais, culpando a imigração pelo crime e prometendo penas mais duras.
Perspetivas da esquerda
Depois de tudo isto, Marin, que hoje anunciou a sua intenção de se demitir do cargo de líder do partido, ainda pode contabilizar como uma vitória que os Social-Democratas tenham conseguido aumentar a sua votação, embora boa parte desses votos se fiquem a dever ao voto tático de eleitores de outros partidos, bem como à sua projeção internacional.
Os Verdes e o Centro já esperavam perdas eleitorais devido ao falhanço das suas reformas-bandeira, embora seja a Aliança de Esquerda, o partido mais à esquerda nestas eleições, a ficar mais chocado ao obter o pior resultado de sempre - baixou para apenas onze deputados.
O próximo governo finlandês pode vir a ser o mais à direita das últimas décadas, juntando os neoliberais aos populistas de direita. Esse cenário combinaria uma agenda de austeridade dura com a revogação de legislação ambiental e ataques aos requerentes de asilo e aos direitos humanos. Outra alternativa seria os Social-Democratas juntarem-se à Coligação Nacional num governo "azul-vermelho" - a opção favorita de muita da elite finlandesa, pois daria ao neoliberalismo uma imagem mais moderna, amigável e profissional.
A esquerda finlandesa debate-se com alguns problemas difíceis. Esta era a formação governamental mais à esquerda no quadro da esfera parlamentar, chefiada pela primeira-ministra mais à esquerda entre as figuras disponíveis - e foi rejeitada por uma viragem para a direita populista. Uma das razões para isso foi a de promover reformas ambiciosas sem providenciar os meios para as financiar, por exemplo pela via fiscal.
Contudo, muitos fatores contribuíram para a derrota e não há soluções fáceis. Sem dúvida, a esquerda ira reagir a estes desafios de formas diferentes. Alguns passarão a defender moderação ou juntar todas as forças sob o teto dos Social-Democratas. Outros irão concentrar-se no ativismo de rua e no trabalho fora da esfera parlamentar.
Uma questão complicada é a de saber se a esquerda estará de facto a tornar-se um partido urbano com formação superior, oferecendo visões utópicas ao mesmo tempo que desvaloriza a concretização de medidas tangíveis de melhoria na vida das pessoas. Sem responder a esta questão, o ascenso da direita provavelmente continuará.
Tatu Ahponen é membro do Conselho Nacional da Aliança de Esquerda. Artigo publicado na Jacobin a 6 de abril de 2023. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.