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Extrema-direita: “Comparações históricas são sempre perigosas”

No passado dia 24 de setembro decorreu a apresentação do livro "Novas e velhas extremas-direitas", que contou com a presença de Cecília Honório e João Mineiro, coordenadores da obra, e do economista Francisco Louçã. Este é um livro “contra a normalização da extrema-direita”. Por Mariana Carneiro.

O livro “Novas e Velhas Extremas-Direitas”, que nasceu do colóquio organizado pela Cultra em parceria com o Observatório da Extrema Direita e o Instituto de História Contemporânea, e contou com o apoio da Transform Europe, reúne os contributos de treze autores.

Conforme assinalaram Cecília Honório e João Mineiro, coordenadores da obra, durante a sua apresentação, que decorreu no dia 24 de setembro na Casa do Brasil, em Lisboa, este é um livro contra a normalização da extrema-direita.

De acordo com Cecília Honório, existiu o propósito de criar um “espaço de visibilidade a uma investigação alternativa” que confronte o “mainstream colonizado e mediatizado no espaço da direita política”.

A autora destacou que surgiu a “necessidade de nos descolarmos simultaneamente quer de um entendimento desta extrema-direita como uma mera réplica do passado, quer do seu entendimento como um fenómeno passageiro, ocasional e irrelevante”, defendendo que a extrema-direita é “resultado da nova crise do sistema liberal, do neoliberalismo, e é uma excrescência das políticas do centro”.

“A extrema-direita não é um fenómeno residual assimilável pelas virtudes do centro. Pelo contrário, a extrema-direita e o seu crescimento têm sido fruto e resultado e consequência das políticas desse mesmo centro, nomeadamente as consequências profundas da austeridade, do esvaziamento do Estado Social, das cedências das sociais-democracias ao neoliberalismo ao longo das décadas”, reforçou João Mineiro.

“Toda essa circunstância criou um conjunto de fenómenos sociais, de ressentimento, de insegurança, de desproteção, de precarização, de mercantilização absoluta da vida que é o caldo social e cultural onde muita desta extrema-direita vai buscar força social”, acrescentou.

Francisco Louçã explicou que o livro “parte de três hipóteses interpretativas sobre a nova extrema-direita”: “se se trata de uma repetição dos anos 30, ou seja, de um fascismo a caminho, de um ovo da serpente, estando nós agora numa fase preliminar desse caminho”; se está em causa “um fenómeno circunstancial, uma espécie de modismo”; ou se estamos perante “um fenómeno normal, da pluralidade e diversidade das opiniões”, que é a posição de Riccardo Marchi, investigador em ciência política que trabalha no ISCTE, e que tem escrito livros a normalizar o Chega.

“Estas três hipóteses são bons quadros para discutir caminhos muito diferentes de interpretação”, apontou o economista.

“Os autores escolhem a perceção, e eu creio que fazem bem, de que este é um fenómeno novo”, apontou Francisco Louçã. “Tem, no entanto, muitas características, até na simbologia, na iconografia e mesmo nas referências, que se assemelham a alguns fascismos. Mas não sendo o mesmo, o conceito fascismo é desadequado”, continuou.

Louçã referiu que “o contexto é tão distinto que o paralelo histórico deve ser sempre tratado com muito cuidado”. “Não resulta esta radicalização da existência de uma revolução, como a de 1917, não resulta de uma catástrofe social como a Grande Depressão de 1929 que, nos anos 30, eleva o desemprego até 25% num contexto em que a pobreza é total para quem não tem proteção social, e não há proteção social nos países europeus durante esse período”, frisou.

Por outro lado, acrescentou Louçã, “há muita repetição, muita iconografia repetida, há muito a ideia que vem do populismo da relação entre o chefe e a massa, do fim das intermediações, do fim da circunstância política, do fim da coisa política e das estruturas da democracia tradicional. Isso tudo vem do populismo”.

“Esta extrema-direita, como o fascismo, procura esgotar a esfera pública (o termo é dos autores) e acentuar a morte da política. E a isso podemos chamar autoritarismo. Claro que o termo é um termo armadilhado, como foi no passado, o termo totalitarismo. Autoritarismo é um termo genérico, pode servir bem, mas talvez classifique muito pouco. De qualquer forma, este é o debate que o texto situa”, referiu.

O professor de economia falou sobre o contributo de Manuel Loff neste livro, detalhando que o autor “trata este ressurgimento da extrema-direita como um neofascismo, ou seja, um novo fascismo na continuidade do fascismo anterior”.

“Fá-lo com dois argumentos, ponderáveis. O primeiro é que há elementos fortes de continuidade na forma de organização do combate político, dos seus intuitos (…) Segundo Loff, não é o facto de serem situacionistas ou conviventes com o regime que os distingue daqueles que o queriam derrubar e que o diziam explicitamente nos anos 30. A proximidade é maior do que a diferença”, clarificou Louçã.

“O segundo argumento é interessante, mas mais instrumental, que é que se não é fascismo, como é que vai existir uma aliança antifascismo se eles não são fascistas. O argumento é um pouco forçado porque pode haver uma aliança anti-autoritária, uma aliança democrática, uma aliança social de respeito pelos direitos sociais contra quem se lhes opõe”, continuou o economista.

“O fenómeno novo merece atenção por si próprio”

Fernando Rosas, em contrapartida, “tem uma visão um pouco intermédia em relação àquela que a Cecília Honório e o João Mineiro apresentam e a do Manuel Loff, porque tende a sublinhar muitos elementos de comparação com os anos 30, se bem que trate este autoritarismo como o resultante de uma segunda crise epocal do neoliberalismo”, avançou Louçã.

Sobre o elemento de comparação relativo à utilização da oligarquia, Francisco Louçã afirmou que “é difícil dizê-lo em Portugal, porque estamos no início desse fenómeno, e cinco mil euros dados pelo filho do Humberto Pedrosa não é ainda representativo da burguesia ou das grandes empresas financiarem o Chega, apesar de o partido ter uma campanha multimilionária. Essa relação é, porventura, ainda precoce”.

O economista salientou, por outro lado, que a mesma “foi muito importante noutros países e pode ser muito importante num contexto tão orgânico como o da Itália, por exemplo, em que Salvini representa a burguesia histórica do norte de Itália e uma parte importante da sua história política”.

“E, portanto, na opinião do Fernando Rosas, esta crise sistémica suscita esta emergência. Porventura, com todos estes elementos tão importantes, o fenómeno novo merece atenção por si próprio. E talvez tenhamos de, mais do que buscar os elementos de comparação, perceber o que é adequável hoje em dia e o que é que determina estas correntes. Até porque as comparações históricas são sempre perigosas. Somos vítimas do passado, qualquer comparação histórica tem um destino marcado. Quando nos comparamos com os anos 30, sabemos o que aconteceu depois dos anos 30, não há duas hipóteses. Só aconteceu aquilo: a Guerra Mundial e a vitória do fascismo. Portanto, qualquer analogia histórica é prisioneira de um trajeto muito curto, porque não tem alternativas. O presente e o futuro é que têm alternativas”, disse Louçã.

“Tecnologias de intoxicação são tão importantes para os novos populismos”

Francisco Louçã afirmou estar certo de que, “se os autores completassem hoje a sua obra, tratariam de outros temas além daqueles que abordam, como por exemplo as tecnologias de intoxicação e os órgãos viciantes e organizadores de bolhas e culturas de ódio, que são tão importantes para os novos populismos e para a emergência destes poderes”.

De acordo com Louçã, os mesmos “foram decisivos no caso do Trump, mais decisivos ainda no caso do Bolsonaro e são importantes no caso do Chega, com 20 mil perfis falsos no Facebook”.

“É um exército. Tem significado para aquilo que se faz numa guerra, assustar o adversário, mobilizar as tropas e conseguir criar confusão. É a regra do Carl von Clausewitz no tempo da era digital”, realçou.

O economista deixou ainda uma referência a outros autores, como José Manuel Pureza e Daniel Pinéu, que escrevem sobre “nativismo e supremacismo, o reforço da ordem desigual”, um tema que “José Manuel Sobral também continua, com o estudo que faz sobre Trump e o nacionalismo. Portanto, o supremacismo como uma identidade”.

“O supremacismo ou o nacionalismo supremacista é uma identidade. É uma forma de identitarismo muito bem sucedida. E que leva aos extremos. Como vimos, o único grande capital eleitoral e simbólico que Ventura tem, e a que recorre sempre que está aflito, são os ciganos. É a fronteira de ódio mais fácil para enunciar o supremacismo”, enfatizou Francisco Louçã.

Louçã deixou uma nota sobre esta questão, no sentido de que “o debate sobre se as identidades fazem ou não parte de uma estratégia da esquerda tem de ser sempre ponderado por um sucesso pesado que é o triunfo identitário que forma a direita e a extrema-direita”.

Já Andrea Peniche “trata de um aspeto pouco discutido mas que merece muita atenção, que é a utilização, por este discurso identitário, do combate à chamada ideologia de género e ao politicamente correto. Isso tem ganho algum peso”, apontou ainda o economista.

Para Francisco Louçã, é incontestável que este é “um debate que tem de continuar”. A redescoberta de “uma dimensão de extrema direita que é fortíssima” deixa-nos, pelo menos, “a obrigação de perceber que o que pensámos durante muito tempo, numa espécie de auto-contentamento, de que Portugal era uma exceção, é tudo falso”, defendeu Louçã.

“Há uma base cultural, uma base referencial, uma base histórica e, sobretudo, campos novos de criação de agruras sociais que permitem que haja fenómenos deste tipo. Se eles são mais duradouros ou não, isso só a história o diz. Todo o passado está cheio de populistas que desapareceram. Nós conhecemos os populistas bem-sucedidos, mas os populistas mal sucedidos são imensos”, vincou o economista.

“É difícil fazer previsões, mas nem interessa muito fazê-las”, defendeu Louçã. E rematou: “O que interessa é saber onde é que têm de se colocar as forças das mobilizações democráticas, antifascistas, anti-autoritárias, e que estas possam trazer uma identidade aberta em que a população se possa reconhecer e que faça uma esquerda forte para representar as aspirações sociais”.

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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