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“Exactamente errados” na frente orçamental?

A política orçamental já é muito restritiva e o país pouco ganha em torná-la ainda mais restritiva do que o estritamente necessário. Artigo de Ricardo Cabral no blogue Tudo Menos Economia.
Mário Centeno, Mourinho Félix e Jeroen Dijsselbloem
Mário Centeno, Mourinho Félix e Jeroen Dijsselbloem na reunião do Eurogrupo em janeiro de 2017. Foto IUnião Europeia ©

Num post de Abril de 2016, sobre as contas públicas nacionais, argumentei que o défice público poderia mesmo ficar abaixo dos 2% do PIB. Fazer projecções para o ano, com base na execução dos três primeiros meses, envolve sempre elevado grau de incerteza, é certo. E, deparei-me, na altura, com um profundo cepticismo. Parece-me que, nessa altura, nem mesmo o Governo acreditava que a execução orçamental iria correr bem.

Hoje sabe-se que, embora em parte consequência dos resultados, não recorrentes, do PERES (perdão fiscal), o défice terá ficado muito próximo dos 2% do PIB.

Este valor do défice de 2016 tem várias implicações.

Primeiro, afigura-se que CE, FMI, OCDE, BdP, Unidade Técnica de Apoio Orçamental, Conselho de Finanças Públicas e Ministério das Finanças, têm todos grandes dificuldades em prever o futuro, como não poderia deixar de ser. E é certo que se trata de décimas de um ponto percentual do PIB. Mas, trata-se de uma discussão acerca de algumas centenas de milhões de euros, num orçamento de 82,5 mil milhões de euros de despesa! E, impressiona que, poucos meses antes do fim do ano, não exista a noção sobre se se vai ou não cumprir o objectivo para o défice. Com quase todas aquelas entidades acima referidas (excepto naturalmente o Ministério das Finanças, que o deixa implícito nas suas análises, mas compreensivelmente sem se comprometer completamente) a sustentar que o objectivo para o défice não seria cumprido.

Segundo, os pequenos desvios na execução orçamental são naturais e resultam sobretudo dos estabilizadores automáticos embutidos na economia (impostos, subsídios de desemprego, etc). Se a economia cresce mais do que o esperado, o défice público cai mais do que o esperado. Se a economia cresce menos do que o esperado o défice público aumenta mais do que o esperado. Ou seja, os resultados da política orçamental são de sentido contrário aos da actividade económica, i.e., são contracíclicos.

Ora, a actual política económica da zona euro – e, em particular, os vários “pacotes” de legislação implementados através de acordos intergovernamentais – consiste em reagir a desvios negativos na execução orçamental com medidas adicionais de consolidação orçamental (austeridade) ou, em última instância, com sanções e multas. Isto é, é uma política económica procíclica. Coloca o Estado a implementar política orçamental restritiva quando a actividade económica se deteriora, o que faz muito pouco sentido como bem se sabe.

Terceiro, o resultado vem confirmar que a política orçamental portuguesa e mesmo europeia é assimétrica. Só se toleram desvios num único sentido. Se o défice tivesse derrapado no sentido contrário, lá estaria a Comissão Europeia a exigir medidas de austeridade adicionais. Como o défice derrapou no sentido “certo”, não se vê a Comissão Europeia a exigir medidas de aumento da despesa pública…

Poder-se-ia argumentar que a Comissão Europeia já tinha moderado o objectivo para o défice público de 2,2% para 2,5% do PIB. E que o registo de um défice de 2% ou 2,1% do PIB não é substantivamente diferente do défice de 2,2% do PIB originalmente definido como meta pela Comissão Europeia. Mas o certo é que um défice de 2% ou 2,1% do PIB representa, pelo menos, cerca de 900 milhões de euros de investimento público adicional (contabilizando o IVA) que poderia ter sido realizado pelo Governo em 2016, face ao objectivo traçado pela Comissão Europeia (2,5% do PIB).

A política orçamental em Portugal continua a ser extremamente restritiva, como sugerem, por exemplo, as elevadas taxas de desemprego jovem (28% no 4T2016) e o elevado saldo primário, o qual superou os 4 mil milhões de euros. Pelo que tal investimento público adicional seria importante e faria a diferença para muitos.

Por conseguinte, afigura-se que o Governo deveria ter projectos de investimento público em carteira, para essa circunstância: por um lado, porque existe muito investimento em infraestrutura e equipamento, há muito adiado por falta de recursos, que é necessário mais tarde ou mais cedo fazer; por outro lado, porque a política orçamental já é muito restritiva e o país pouco ganha em torná-la ainda mais restritiva do que o estritamente necessário. Esses projectos de investimento público, cada um, de algumas décimas de pontos percentuais, deveriam ser contingentes à execução orçamental.

Embora se tenha presente que o Governo e o Ministro das Finanças pretendiam, com o valor do défice de 2016, garantir a saída do PDE e que o resultado obtido é importante do ponto de vista da percepção do País bem como da dita “credibilidade” do Governo, afinal de contas, como defendia Keynes, nestas matérias do défice público, é muito preferível estar aproximadamente certo (~2,5% do PIB), do que exactamente errado (2,0% ou 2,1% do PIB).


Artigo de Ricardo Cabral no blogue Tudo Menos Economia.

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