Estratégias de política radical e resistência estética

06 de setembro 2014 - 0:05
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Fotos de Truth is Concrete, retirado de steirischerherbst/flickr

Como conceber estratégias artísticas na política e estratégias políticas na arte?
O presente ensaio1 é resultante da participação de Chantal Mouffe no
Truth is Concrete, um acampamento e maratona 24/7 decorrido em Graz, entre 21/09 e 28/09/2012, em torno de estratégias artísticas na política e estratégias políticas na arte. Artigo de Chantal Mouffe*, traduzido por Rui Matoso para esquerda.net

Como conceber estratégias artísticas na política e estratégias políticas na arte? É claro que colocar uma pergunta deste tipo pressupõe descartar a ideia de que os artistas e os trabalhadores da cultura já não podem desempenhar um papel fundamental na sociedade, porque se tornaram uma parte necessária da produção capitalista. De acordo com este ponto de vista, a produção simbólica é agora um objetivo central do capitalismo e, por meio do desenvolvimento das indústrias criativas, as pessoas tornaram-se totalmente subjugadas ao controle do capital. Não só os consumidores, mas também produtores culturais foram transformados em funções passivas do sistema capitalista. São prisioneiros da indústria cultural dominada pelas multinacionais da comunicação e do entretenimento. Se isto for verdade, não haverá, evidentemente, necessidade de examinar as possíveis modalidades de resistência estética.

Penso que podemos, portanto, ter por certo que os participantes no Truth is Concrete irá rejeitar este diagnóstico pessimista. É provável que a maioria deles, apesar de reconhecer as profundas transformações trazidas pela atual fase pós-fordista do capitalismo, vai argumentar que essas novas formas de produção permitem novos tipos de resistências para as quais as práticas artísticas podem dar um contributo decisivo. É quando se trata de encarar as formas que essas resistências devem tomar, que vamos encontrar divergências importantes. Examinar a natureza dessas divergências poderá, portanto, ajudar-nos a esclarecer os pressupostos do nosso encontro.

Penso que uma das principais divergências que vamos enfrentar diz respeito aos espaços em que as resistências devem ser implantados, e do tipo de relação a ser estabelecida com as instituições. Devem as práticas artísticas críticas estar envolvidas com as atuais instituições, com o objetivo de transformá-las ou devem abandoná-las por completo? Uma abordagem influente defende o que podemos designar como uma estratégia de retirada, alegando que as instituições do mundo da arte tornaram-se cúmplices do capitalismo e que elas já não podem fornecer um espaço para práticas artísticas críticas. Sob condições pós-fordistas, os artistas que trabalham dentro do sistema são totalmente instrumentalizados e transformados em empreendedores, sendo obrigados a contribuir para a reprodução do sistema. Resistências ainda são possíveis, mas só se forem localizadas fora das instituições.

É interessante notar que esta posição, que é característica de uma variedade de pessoas influenciadas pela tradição Autonomista2, reconhece o crescimento da indústria cultural já apontada por Adorno e Horkheimer, mas interpreta-a de maneira muito diferente. Adorno e Horkheimer viram o desenvolvimento da indústria cultural como o momento em que o modo de produção fordista finalmente conseguiu entrar no campo da cultura. Para eles, esta evolução representou uma nova etapa na mercantilização e subjugação da sociedade de acordo com os requisitos da produção capitalista. Adorno via a arte como o único lugar onde a autonomia ainda era possível. É essa possibilidade que a visão pessimista, mencionada anteriormente, declara como tendo agora sido eliminada pelos avanços do processo de mercantilização. Os teóricos pós-operaistas, influenciados pelo movimento da Autonomia Italiana, que destacou o papel pró-ativo das lutas dos trabalhadores no desenvolvimento do capitalismo, veem a transição do fordismo ao pós-fordismo de uma maneira muito diferente. Paolo Virno, por exemplo, afirma que as indústrias culturais têm desempenhado um papel importante no processo de transição entre fordismo e pós-fordismo. É onde novas práticas de produção surgiram, levando à superação do fordismo. Estas práticas representam, segundo Virno, a matriz do pós-fordismo. De facto, com o desenvolvimento do trabalho imaterial no capitalismo avançado, o processo de trabalho tornou-se performativo e mobiliza os requisitos mais universais da espécie: perceção, linguagem, memória e sentimentos. A produção contemporânea é agora "virtuosa", e o trabalho produtivo, na sua totalidade, apropria-se das características específicas das artes performativas. Esta transformação abre caminho para novas formas de relações sociais em que a arte e o trabalho existem sob novas configurações. Sob as condições pós-fordistas, o objetivo das práticas artísticas críticas deve ser o de contribuir para o desenvolvimento de novas relações sociais, possibilitadas pelas transformações dos processos de trabalho. A sua principal tarefa é a produção de novas subjetividades e a elaboração de novos mundos que criam as condições para a auto-organização do novo sujeito social coletivo que os pós-operaistas designam como multitude3.

Tal ponto de vista acerca do papel das práticas artísticas caminha paralelamente com uma conceção de política radical formulada em termos de êxodo. Esta estratégia de êxodo vem tendo diferentes versões, de acordo com a forma como o futuro da multitude é perspetivado, mas todas elas afirmam que as estruturas tradicionais de poder organizadas em torno do Estado e da democracia representativa tornaram-se irrelevantes e que vão desaparecer progressivamente. Daí a crença de que a multitude pode ignorar as estruturas de poder existentes e concentrar os seus esforços na construção de formas sociais alternativas fora da rede de poder do Estado. Qualquer colaboração com os canais tradicionais de política, como partidos e sindicatos, devem ser evitados. O modelo maioritário de sociedade, organizada em torno de um Estado, deve ser abandonado em favor de um outro modelo de organização apresentado como mais universal. O qual terá a forma de uma unidade fornecida por lugares mentais comuns, hábitos cognitivo-linguísticos e o intelecto geral4.

Para além desta estratégia de retirada das instituições, há uma outra estratégia que é a que eu pretendo defender, uma estratégia de engajamento com as instituições. Esta estratégia é informada por uma abordagem teórica que traz à tona o caráter discursivo do social e revela como é através de uma multiplicidade de práticas discursivas que "nosso mundo" é construído, uma construção que é sempre o resultado de uma hegemonia particular. Esta abordagem teórica revela que a sociedade está sempre politicamente instituída e que o "social" é o domínio das práticas políticas sedimentadas, práticas que escondem os atos originários da sua instituição política contingente. Tal como a articulação temporária e precária de práticas contingentes, cada ordem é a expressão de uma estrutura particular de relações de poder. O que é em determinado momento aceite como a ordem natural é sempre o resultado de práticas hegemónicas sedimentadas. As coisas poderiam ter sido sempre de outra forma e cada ordem funda-se na exclusão de outras possibilidades. É por isso que [a ordem] é sempre suscetível de ser desafiada por práticas contra-hegemónicas que tentarão desarticulá-la de modo a estabelecer uma hegemonia diferente.

Considero que esta abordagem é particularmente fértil para apreender as relações entre arte e política, e para visualização de estratégias artísticas na política e de estratégias políticas na arte, porque destaca o facto de que o confronto hegemónico não se limita às instituições políticas tradicionais, mas que ocorre também na multiplicidade de lugares onde a hegemonia é construída, ou seja, o domínio do que se costuma chamar "sociedade civil". Este é o lugar onde, como António Gramsci argumentou, uma conceção particular do mundo é estabelecida e um conhecimento específico da realidade é definido, a que ele se refere como o "senso comum", um terreno sobre o qual as formas específicas de subjetividade são construídas. Gramsci também enfatizou a centralidade das práticas culturais e artísticas na formação e difusão do "senso comum", destacando o papel decisivo desempenhado por essas práticas na reprodução ou desarticulação de uma determinada hegemonia.

Do ponto de vista da abordagem hegemónica, as práticas artísticas têm uma relação necessária com a política, porque, ou contribuem para a reprodução do "senso comum" que cristaliza uma determinada hegemonia, ou o desestabiliza. As práticas artísticas críticas são aquelas que, de várias maneiras, desempenham um papel no processo de desarticulação / rearticulação que caracteriza a política contra-hegemónica. Esta política contra-hegemónica pretende atingir as instituições que petrificam a hegemonia dominante, a fim de provocar transformações profundas na forma como elas funcionam. Essa estratégia de "guerra de posição" (Gramsci) é composta por uma diversidade de práticas e intervenções que operam numa multiplicidade de espaços: económicos, legislativos, políticos e culturais. O domínio da cultura desempenha um papel crucial nesta guerra de posição, porque, como vimos, este é um dos terrenos onde o "senso comum" é construído e as subjetividades são construídas. Na atual conjuntura, com o papel decisivo desempenhado pelas indústrias da cultura no processo capitalista de reprodução, o terreno cultural e artístico tornou-se de importância estratégica. A produção artística e cultural é de facto fundamental para a valorização do capital. Isto deve-se à crescente dependência do capitalismo pós-fordista das técnicas [e tecnologias] semióticas [capitalismo semiótico5 / capitalismo cognitivo6], a fim de criar os modos de subjetivação que são necessárias à sua reprodução. Como Foucault destacou, na produção moderna, o controle das almas é crucial no governo dos afetos e das paixões. As formas de exploração características dos tempos em que o trabalho manual era dominante foram substituídos por novas formas, que agora exigem constantemente a criação de novas necessidades e desejos incessantes dirigidos à aquisição e consumo de bens. Para manter a sua hegemonia, o sistema capitalista precisa de mobilizar permanentemente, através das suas mais diversas instituições, os desejos das pessoas e dar forma às identidades e categorias culturais, para assim ocupar uma posição-chave neste processo. Encontramos aqui uma estratégia muito diferente da de "retirada de instituições", defendida pelo primeiro conceito que nós examinámos. As práticas artísticas críticas não contribuem para a luta contra-hegemónica abandonando o terreno institucional, mas apenas envolvendo-se nele com o objetivo de fomentar a dissensão e criar uma multiplicidade de espaços agonísticos, onde o consenso dominante é desafiado e onde novos modos de identificação são disponibilizados.

Quero deixar claro que não estou a argumentar a favor de uma conceção puramente institucional da política ou a relegar as práticas artísticas críticas para o domínio tradicional do mundo da arte, mas para uma articulação dos diferentes modos de intervenção numa multiplicidade de lugares. Existe uma grande variedade de formas possíveis para fazer emergir espaços agonísticos onde o consenso dominante possa ser desafiado, os quais podem surgir dentro e fora das instituições. A abordagem hegemónica visa uma política radical enquanto articulação entre a política parlamentar e as lutas extra-parlamentares, e tem como objetivo estabelecer sinergias entre partidos e movimentos sociais. No domínio específico das práticas artísticas, tal abordagem incentiva a diversidade de intervenções, dentro e fora do mundo tradicional da arte. Desafiando a visão de que as instituições não podem ser transformadas e que só se podem desenvolver resistências bem sucedidas fora delas, salientando a necessidade de se combinar as estratégias políticas na arte e estratégias artísticas na política. Na nossa atualidade pós-política, em que o discurso dominante tenta obstruir a própria possibilidade de uma alternativa à ordem atual, todas as práticas que possam contribuir para a subversão e a desestabilização do consenso neoliberal hegemónico são bem-vindas. Os museus, por exemplo, podem, sob certas condições, proporcionar espaços para uma confrontação agonística, e é um erro acreditar que os artistas que optam por trabalhar com eles não podem desempenhar um papel crítico e que são automaticamente recuperados pelo sistema. Acredito fortemente que, ao examinar a relação entre arte e política, é necessário adotar uma perspetiva pluralista. Embora afirmando a validade contínua das formas artísticas tradicionais, a abordagem que eu defendo também reconhece a importância das várias formas de ativismo artístico que recentemente floresceram. Colocando meios estéticos ao serviço do ativismo político, este "artivismo" pode ser visto como um movimento contra-hegemónico e contra a apropriação capitalista da estética, a fim de garantir o seu processo de valorização. Nas suas múltiplas manifestações, o "artivismo" pode certamente ajudar a subverter o senso comum pós-político, e fomentar a criação de novas subjetividades. Por exemplo, vários modos de intervenção artivista, influenciadas pela estratégia situacionista de "detournement", como o Yes Men, são muito eficazes em interromper a imagem de suavidade que o capitalismo corporativo tenta impor, trazendo à tona o seu carácter repressivo. Pode-se também mencionar uma variedade de lutas urbanas como Reclaimg The Streets em Inglaterra, o Tute Bianche em Itália, as campanhas anti-publicidade em França ou o Nike Ground em Viena - existe uma grande variedade de tipos de práticas artistico-ativistas e modos de comunicação de guerrilha.

Isso leva-nos a outro ponto de discussão: como acabei de deixar claro, de acordo com a abordagem hegemónica, estratégias artísticas na política e estratégias políticas da arte são legítimas e importantes. Elas podem desempenhar um papel decisivo no fomento da contestação agonística e contribuir para o surgimento de novas subjetividades. No entanto, também afirma que as práticas artísticas críticas, independentemente da forma como são concebidas, não são substitutos para as práticas políticas e que nunca serão capazes de, isoladamente, criarem uma nova ordem hegemónica. Na construção dessa nova ordem, o momento estritamente político não pode ser evitado. O sucesso da política radical exige novas subjetividades políticas, mas isso representa apenas uma dimensão vital na “guerra de posição”. Mas muitas outras medidas precisam ser tomadas para ser bem sucedida na criação de uma nova hegemonia, e a longa marcha através das instituições políticas não pode ser evitada.

Artigo de Chantal Mouffe, traduzido por Rui Matoso para esquerda.net


Nota do Tradutor: Agradeço à professora Chantal Mouffe a autorização expressa para publicação desta tradução.

1 O original encontra-se publicado em http://truthisconcrete.org/texts/?p=19

5 NdT: Para uma aproximação à produção artística no contexto do capitalismo semiótico-cognitivo, vide pf https://www.academia.edu/6497234/Perturbacoes_Criticas_no_Capitalismo_Semiotico-Cognitivo_Aproximacao_aos_Tactical_Media

6 NdT: Yann Moulier Boutang, Cognitive Capitalism (2012) http://marxandphilosophy.org.uk/reviewofbooks/reviews/2013/765


[caption align="right"] Chantal Mouffe, foto de Heinrich-Böll-Stiftung/flickr[/caption]

* Chantal Mouffe é ensaísta no domínio da política e professora de Teoria Política na Universidade de Westminster. Lecionou em várias universidades na Europa, América do Norte e América Latina, e ocupou posições de pesquisa em Harvard, Cornell, da Universidade da Califórnia, o Instituto de Estudos Avançados de Princeton, e o Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris. Entre 1989 e 1995 foi Diretora do Programa de no Colégio Internacional de Filosofia em Paris.