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A análise sistemática e comparativa das intersecções entre religião, género e política numa altura em que os populismos alastram por diversas regiões do mundo constitui um desafio crescente para as ciências sociais. As campanhas contra a “ideologia de género” têm sido uma das facetas mais visíveis destas interseções. Como sabemos, o conceito tem servido essencialmente para articular oposição à igualdade de género, aos direitos reprodutivos da mulher, à educação sexual nas escolas e aos direitos das pessoas LGBTQ em áreas como o casamento, a adoção, a maternidade de substituição e as tecnologias reprodutivas. Com o objetivo de perceber as convergências e particularidades dos discursos anti-género que marcam os populismos no espaço do Mediterrâneo, surgiu a oportunidade de reunir um grupo de estudiosos e ativistas para discutir estas problemáticas em países marcados por diferentes tradições religiosas: Catolicismo, Cristianismo Ortodoxo, Islão e Judaísmo. 1 As várias abordagens – particularmente as referentes à Croácia, Turquia, Bósnia-Herzegovina e Grécia – analisam as relações estreitas entre grupos religiosos (ultra)conservadores, discursos (etno-)nacionalistas e partidos políticos de (extrema-)direita, frequentemente com agendas neoliberais, xenófobas e homofóbicas.
Todavia, este debate não se limita a ser um estudo sobre os enredamentos entre religião e política através dos populismos de (extrema-)direita. Os casos estudados das ativistas feministas religiosas em Itália e das mulheres palestinianos em Israel revelam como as religiões podem ser também espaços de empoderamento e emancipação feminina contra a opressão patriarcal e o racismo. Os ativismos na Turquia também nos apontam sinais encorajadores: mostram-nos como, perante ataques e retrocessos nos direitos das mulheres e um deteriorar geral da qualidade da democracia, a tradicional clivagem entre feministas seculares e feministas muçulmanas se começa a esbater, à medida que se ensaiam formas de resistência e alianças em torno de determinadas causas, que, nalguns momentos, incluem também grupos LGBT+.
Quando convidámos algumas investigadoras com trabalho de referência sobre as mobilizações políticas contra a “ideologia de género” para um seminário sobre os desafios que temos pela frente para resistir aos populismos de extrema-direita, Andrea Pető, da Central European University - a universidade que em 2019 teve de ser deslocada de Budapeste para Viena devido às políticas de Viktor Orbán - destacou precisamente a importância das alianças com feministas religiosas.2 Pető lembrou que, quando a extrema-direita atacou os Estudos de Género na Hungria, as aliadas mais eficazes dos/as investigadores/as dos Estudos de Género foram as teólogas feministas. Foram elas que, de forma informada, denunciaram a instrumentalização da religião pela extrema-direita por saberem, melhor do que ninguém, desvendar as mentiras inerentes ao uso dos textos bíblicos para atacar a “ideologia de género”.
Casos como este sinalizam que não só é possível estabelecer alianças entre feministas seculares e feministas religiosas, como também que essas alianças são imprescindíveis se queremos avançar nas lutas difíceis da nossa época, nomeadamente naquelas em que a religião está a ser mobilizada para oprimir, como se verifica nas campanhas contra a “ideologia de género”. Tal como os grupos políticos, tal como os feminismos, as religiões são esferas complexas marcadas por uma enorme diversidade. Os textos bíblicos pautam-se pela complexidade, pela linguagem metafórica e devem ser lidos como produto de um contexto histórico preciso. A Igreja Católica é certamente um espaço de homofobia, mas é também a casa que muitas pessoas LGBT+ continuam a ver como sua e onde querem ter um lugar de dignidade. É essa diversidade e complexidade que nos permite encontrar espaços para diálogos e alianças transversais entre marxistas e cristãos. Tal não implica renunciar a princípios, nem um nivelamento em que assuntos incómodos são evitados, em que a dissidência e as críticas são abafadas – quando o fizermos, estaremos a perder aliados e aliadas, estamos a estilhaçar as lutas. Precisamos de concordar no essencial, tal como fizeram as teólogas feministas quando denunciaram as instrumentalizações da religião nos ataques aos Estudos de Género na Hungria.
Os exemplos de diálogos e alianças entre feministas seculares e feministas religiosas ensinam-nos muito sobre os termos em que os diálogos entre marxistas e cristãos podem operar: através da mobilização a favor de causas comuns em campos como o feminismo, mas também o racismo, as injustiças socioeconómicas e a degradação do ambiente. Esses diálogos terão inevitavelmente de saber ultrapassar ortodoxias e sobretudo ser capazes de olhar para as religiões como algo que existe para lá das instituições que as representam. Esses diálogos não podem ficar dependentes da sensibilidade de quem ocupa as esferas mais altas das hierarquias. São as pessoas que se reveem como religiosas, que encontram inspiração e apoio nas espiritualidades cristãs e doutras religiões que devem ser o foco desses diálogos. É preciso saber investir nas lutas pelas causas que nos unem, sabermos colaborar sem hierarquias e sem silenciarmos as vozes críticas.
1 Este texto resulta em grande parte da experiência coletiva da publicação do livro Religion, Gender and Populism in the Mediterrean (eds. Alberta Giorgi, Júlia Garraio e Teresa Toldy. Routledge, 2023).
2 O convite foi feito pelas coordenadoras do livro anteriormente referido. A conversa entre as investigadoras Mónica Cornejo-Valle, Andrea Pető e Paola Rivetti será publicada no número de novembro da revista científica Journal of Intercultural Studies.