Decadência da Boeing é espelho dos EUA

05 de maio 2025 - 12:51

Maior fabricante de aviões norte-americana vive há seis anos uma crise multifacetada. Crise de confiança dos viajantes na segurança das suas aeronaves; falta de confiança também na nave orbital Starliner, da Boeing, que deixou “presos” dois astronautas por seis meses; e crise bem explícita nos prejuízos que a empresa acumula desde 2019 e que somam 36 mil milhões de dólares.

porLuís Leiria

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Avião da Boeing
Avião da Boeing. Foto Chuck Taylor/Flickr

A crise que vive a Boeing, empresa que desde a sua fundação está indissociavelmente ligada à história da aviação mundial, parece não ter um fim à vista. Primeiro, foram os acidentes de dois aviões 737 MAX que se despenharam na Indonésia e na Etiópia (em 2018 e 2019), matando todas as 346 pessoas a bordo. Seguiu-se o incidente, em 2024, com um terceiro 737 MAX da empresa Alaska Airlines no estado de Oregon, EUA, que perdeu uma porta em pleno voo; finalmente, uma catadupa de problemas descobertos em aparelhos da série 787 Dreamliner e 777 vieram levantar suspeitas sobre a credibilidade dos critérios de segurança e do controlo de qualidade praticados pela empresa.

A crise já provocou uma inédita troca de CEO em poucos anos. Entre 2019 e 2025, nada menos que três estiveram à frente da empresa. Os trágicos acidentes e os últimos seis anos de prejuízos da Boeing, num valor total de 36 mil milhões de dólares, provocaram a queda sucessiva de dois CEO. Apesar de terem deixado a empresa numa situação difícil, todos levaram para casa indemnizações milionárias.

Os últimos CEO da Boeing e seus ganhos milionários.

Denis Muilenburg – Foi CEO da Boeing entre julho de 2015 e dezembro de 2019. Foi derrubado pelos dois despenhamentos de Boeings 737 MAX da Lion Air (Indonésia) e da Ethiopian Airlines. Saiu com uma indemnização de 62 milhões de dólares. “346 pessoas morreram. Mesmo assim, Dennis Muilenburg pressionou os reguladores e colocou os lucros à frente da segurança dos passageiros, pilotos e comissários de bordo. Ele vai-se embora com mais $62,2 milhões. Isto é corrupção, pura e simples”, acusou a senadora Elizabeth Warren nas redes sociais.

David Calhoun – Foi CEO de janeiro de 2020 a agosto de 2024. Teve a má sorte de assumir o posto nas vésperas da pandemia, que quase paralisou o transporte aéreo global. Calhoun dedicou-se a reconquistar a confiança das companhias aéreas e dos passageiros na segurança das aeronaves Boeing. Mas foi um esforço inglório. Em janeiro de 2024, uma porta/tampão de um 737 MAX da Alaska Airlines soltou-se, em pleno voo, deixando um buraco na fuselagem. Não houve vítimas fatais, mas a “porta voadora” acabou com o mandato do CEO. Apesar dos elevadíssimos prejuízos apresentados pela Boeing nos anos da sua gestão, Calhoun levou para casa 32,8 milhões de dólares.

Kelly Ortberg – É o atual CEO. Está a ganhar uma remuneração anual de 19,5 milhões de dólares, ou 183 vezes o salário médio pago na empresa. Tem pela frente a ingrata tarefa de fazer a Boeing regressar aos tempos em que os seus aviões eram seguros, de grande qualidade e confiáveis. Parece simples, numa empresa com mais de cem anos e o passado de liderança na aviação comercial. Mas não é.

Os tempos mudaram para aquela que já foi a maior fabricante de jatos comerciais do mundo. Em 2019, o consórcio europeu Airbus despojou-a deste título, vendendo mais aviões no ano. Desde então, beneficiando-se dos problemas da rival, a Airbus consolidou e ampliou a sua liderança, ao mesmo tempo que a Boeing, mergulhada na crise, reduzia drasticamente as suas entregas de novas aeronaves. Em 2024. a Boeing entregou aos clientes menos de metade das aeronaves entregues pela Airbus (348 – 766).

Programa espacial, de desastre em desastre

Depois do mais recente e humilhante fracasso da Starliner, a nave da Boeing construída para levar e trazer astronautas à Estação Espacial Internacional, o futuro do mais importante programa espacial que a NASA contratou com a Boeing ficou em suspenso. Na primeira missão tripulada da Starliner, os astronautas Butch Wilmore e Sunni Williams viram-se “presos”, sem possibilidade de regresso na mesma nave que os levara. A NASA decidira que não havia condições de segurança para o regresso dos astronautas. Não quis arriscar vidas humanas e teve razão. Os dois astronautas viram-se forçados a passar nove meses não previstos em órbita, até serem resgatados, em março deste ano, por uma nave da rival Space X. A Starliner voltou à Terra vazia, mas verificou-se que na reentrada na atmosfera houve um superaquecimento não previsto que poderia ter vitimado os astronautas, se lá estivessem.

Em outubro de 2024, o Wall Street Journal informou que a Boeing estaria a estudar a possibilidade de vender a sua divisão espacial para se concentrar no seu desígnio central, isto é, fabricar aviões.

Starliner
Starliner. Foto NASA, Johnson Space Center - Public Domain.

A confirmar-se, este seria um enorme retrocesso para a empresa que sempre se orgulhou da sua participação na aventura espacial.

A única boa notícia chegou em março deste ano, quando o presidente Donald Trump anunciou a assinatura de um contrato com a Boeing para o desenvolvimento e construção de um caça de sexta geração, o F-47. Boeing e Lockheed Martin disputavam o contrato, cujos contornos não são conhecidos mas que andará à volta de 20 mil milhões de dólares, sendo que a aeronave terá de estar concluída ainda antes de 2030.

Pode parecer que se trata de uma medida do Governo para ajudar a empresa, mas os contratos com o Estado têm sido um pesadelo para a Boeing. No caso da Starliner, o contrato teve um orçamento de valor fixo, estabelecido no início. Caso a empresa contratada excedesse esse orçamento, teria de assumir o prejuízo – e foi isso que aconteceu. Se este modelo de contrato for do mesmo tipo para o caça F-47, dificilmente ajudará a Boeing a sair das dificuldades.

Resultados líquidos da Boeing

“Fazer mais com menos”

Como chegou neste ponto uma empresa-modelo como era a Boeing? Criada em 1917, sempre priorizando a aviação comercial civil, a empresa construiu pelo menos três aeronaves que deixaram uma marca de segurança, conforto e confiabilidade nos passageiros que as utilizam: o Boeing 707, o 747 (o Jumbo) e o 737. O crescimento da empresa e a tendência para o monopólio levaram, em 1997, à fusão da Boeing com a McDonnell Douglas, criando uma nova Boeing que já nasceu como a maior empresa fabricante de aviões do mundo.

Ora é esta fusão o bode expiatório usado para explicar a atual crise. A maioria dos especialistas em aviação culpam a McDonnell Douglas pelos problemas atuais. Os gestores desta empresa teriam levado para a nova Boeing as suas prioridades de gestão: privilegiar a área financeira para obter grandes lucros, garantindo generosas distribuições de dividendos aos acionistas e avultados prémios a eles mesmos, os gestores.

De tanto contada, esta história já virou lenda. Mas parece pouco sustentável. Nenhum avião da McDonnell Douglas caiu por irresponsabilidade dos seus diretores executivos em relação à segurança das suas aeronaves. O que aconteceu com a nova Boeing foi que os seus executivos a geriram como um carrossel financeiro, tomados pela febre dos lucros financeiros fáceis. Mas nisso não foram diferentes da maioria das grandes empresas capitalistas. A cartilha neoliberal não deixou de ser aplicada: aceleraram os ritmos de fabricação mesmo que isso implicasse num controlo de qualidade menos rigoroso, despediram trabalhadores, afirmando que assim ganhavam produtividade. Recorreram ao desmembramento de partes da empresa que passaram a funcionar em regime de outsourcing, com o objetivo de reduzir custos (o chamado spin-off). A principal empresa saída de um spin-off foi a Spirit Aerosystems, ex-filial da Boeing em Wichita, Kansas, que produz fuselagens dos 737 e 787 e os cockpits da maioria das aeronaves da Boeing.

“Fazer mais com menos” era o lema perseguido por Jim McNerney, CEO da Boeing entre 2005 e 2015, um lema muito diferente do que que a empresa usava antes, “Working Together” (Trabalhando Juntos).  O problema é que fazer aviões não é o mesmo que produzir tratores, ou até mesmo automóveis.

Os acidentes de automóvel vitimam muitíssimas mais pessoas que os de avião todos os anos. Os de avião, porém, têm um impacto muito maior na opinião pública.

Porque, pensando bem, os humanos não foram feitos para voar.

Muito dinheiro para a especulação, pouco para aviões

Na busca dos grandes lucros financeiros, os CEO da Boeing pós-1997 canalizaram fundos que teriam sido necessários para garantir a segurança e a qualidade dos produtos que vendiam, no caso, aviões.

Na última década, a Boeing gastou 573 milhões de dólares em pagamentos aos seus executivos, ao que se acrescenta 245 milhões pagos pela Spirit.

No mesmo período de tempo, a empresa gastou mais de 40 mil milhões  em recompra das suas  ações – que assim veem o seu valor aumentado artificialmente, a curto prazo – e distribuiu 22 mil milhões em dividendos aos seus acionistas. A Spirit também fez recompras no valor de 2,4 mil milhões e distribuiu dividendos de 169 milhões de dólares. A recompra de ações (buyback) já foi vista como “manipulação do mercado” e por isso esteve proibida nos EUA até 1982.

A historiadora Económica Marie Christine Duggan disse à Jacobin que, em 2017, “a Boeing gastou em recompra de ações 66% do seu orçamento total, ao mesmo tempo que apenas nove por cento dos gastos foram canalizados para compra de novos equipamentos e planos de manufatura.”

Esta absurda inversão de prioridades cedo ou tarde teria de trazer problemas, e não necessariamente na área financeira. Acontece que quando o core business da empresa é fabricar aviões, a segurança de cada uma das aeronaves é o mais importante de tudo. Qualquer ameaça à confiança que os passageiros depositam nos aviões onde viajam tem um potencial explosivo que pode arruinar a empresa que os fabrica. Ora os problemas na Boeing chegaram à luz do dia com a queda do 737 MAX da empresa indonésia Lion Air em 2018. Significativamente, no ano seguinte ao frenesim dos buybacks e dos ganhos financeiros, distribuídos generosamente em dividendos aos acionistas e em generosas remunerações, prémios e bónus aos executivos.

Correndo atrás do prejuízo

A história do voo da empresa indonésia Lion Air que se despenhou em 21 de outubro de 2018, no mar de Java, matando todos os 189 passageiros e tripulantes a bordo, é um lamentável exemplo de como a inversão das prioridades da Boeing criou situações potencialmente explosivas, em que um acidente fatal tem tudo para acontecer, mais tarde ou mais cedo, com resultados desastrosos, mesmo que ocorra num país distante da Ásia.

Tudo começou quase oito anos antes, em 1 de dezembro de 2010, quando a Airbus lançou o A320neo, um modelo baseado no A320 original mas equipado com duas novas turbinas mais eficientes e melhorias aerodinâmicas que tinham como resultado uma economia de gastos com combustível, uma ampliação do raio de ação e um aumento de número de passageiros transportados, que chega a 195.

Airbus da LATAM
 Airbus A320neo. Foto de Rafael Luiz Canossa - A320neo LATAM, CC BY-SA 2.0

A Boeing foi apanhada desprevenida. A empresa já tinha claro que precisava de um modelo mais moderno para substituir o 737, o seu maior sucesso de vendas de sempre. Tendia a fazer um projeto de raiz de uma nova aeronave, mas isso é algo que não se faz em menos de dez anos. Ora quando soube que a Airbus se adiantara, não teve mais dúvidas: iria fazer o mesmo que a concorrente. E assim nasceu o 737 MAX, anunciado em 30 de agosto de 2011 e que fez o primeiro voo em janeiro de 2016.

Mas o caminho escolhido fora uma má decisão. Em primeiro lugar, porque a base do MAX continuava a ser um avião de 1967. Depois desta primeira geração de 737, já houve uma segunda e uma terceira, a 737 NG (Next Generation). O Max foi a quarta geração do 737, o que significa que era a terceira vez que o mesmo modelo passava por uma remodelação. Já o Airbus A320 é um avião muito mais moderno, tendo o seu primeiro voo ocorrido em 1987, isto é, 20 anos depois do primeiro voo do Boeing 737. Foi o primeiro jato comercial do mundo a usar o sistema de controlo de voo fly-by-wire, bem como os side-sticks, que substituíram as manches. No fly-by-wire, os movimentos dos controlos são convertidos em sinais eletrónicos digitais e os computadores de bordo determinam como se moverão flaps, ailerons, profundores, etc.

Comparando os dois aviões, o neo é a segunda geração do A320, enquanto que o MAX foi a quarta remodelação do 737.

Em vez de insistir em remodelar um avião de 1967, parecia muito melhor que a Boeing apostasse no projeto de raiz, mesmo que se atrasasse em relação à aeronave remodelada da Airbus. A demora seria compensada por um modelo que incorporasse as melhores tecnologias para fabricar uma aeronave mais segura, mais eficaz, de consumo mais baixo e feita para cumprir os desejos dos seus clientes.

Ora em 2011 o mundo ainda se recuperava da crise financeira mundial de 2007-2008, e as companhias aéreas viam com bons olhos um avião mais eficiente e com menor consumo de combustível, mas não queriam ter despesas com a formação dos pilotos, sempre necessária quando há um novo modelo. Essa formação representa sempre muitas horas em simuladores de voo, horas em que, evidentemente, o piloto não está a pilotar o avião da companhia. O que as companhias aéreas queriam, na verdade, era um avião mais eficaz mas que voasse exatamente como o 737 NG, de tal forma que bastaria a formação do NG para pilotar o MAX.

Foi isso que exigiram. E a Boeing concordou. Eis aqui a origem do problema que, numa sucessão de imprevistos, chegou à queda de dois aviões e à morte de 346 pessoas. A questão de fundo partia da impossibilidade de conseguir que o MAX tivesse o mesmo comportamento que o NG.

Vejamos: diferente do Airbus A320, o Boeing 737 tem um trem de aterragem mais curto, deixando pouco espaço para as turbinas debaixo das asas. Ora a tendência das mais modernas e económicas turbinas é terem uma circunferência maior – Como as que foram escolhidas para equipar o MAX, tal como já tinha acontecido com o Airbus A320. Só que, no avião europeu, houve espaço suficiente para instalar as novas turbinas no mesmo ponto, debaixo das asas. Já no 737 MAX, os engenheiros da Boeing tiveram de contornar o problema. A solução encontrada foi puxar as turbinas para a frente da asa e para cima, além de aumentarem ligeiramente o tamanho do trem de aterragem.

Só que esse “desenrascanço” deu origem a um novo problema: as turbinas instaladas mais à frente alteraram a aerodinâmica do avião, que ganhou a tendência de elevar o nariz durante o voo. Desta forma, parecia impossível dar ao 737 MAX a mesma forma de voar que o seu antecessor.

Impossível? No mundo ultracompetitivo da aviação comercial, não pode haver impossíveis. E assim nasceu o MCAS  (Maneuvering Characteristics Augmentation System, Sistema de Aumento de Características de Manobra). Este software foi um novo “desenrascanço” encontrado para corrigir a tendência do 737 MAX a empinar o nariz, forçando-o para baixo quando fosse detetada uma inclinação perigosa para cima que pudesse pôr em perigo a sustentação aerodinâmica da aeronave.

A intenção da Boeing era simplesmente não mencionar a existência do novo software, apostando que o piloto, em circunstâncias normais, nem daria por ele. Por isso, na maior parte das cópias dos manuais do 737 MAX, que continuam a ser impressos em papel, não havia uma menção sequer ao MCAS, nem uma informação preciosa: como é que se fazia para desligá-lo. Um “pormenor” de enorme importância nos voos fatais da Lion Air e da Ethiopian Airlines.

O voo 610 da Lion Air e o voo 302 da Ethiopian Airlines

Os desastres relacionados com o software MCAS viriam a acontecer em duas empresas aéreas importantes, a Lion Air, da Indonésia, e a Ethiopian Airlines. A primeira é a maior companhia aérea da Indonésia, realiza mais de 630 voos por dia, e é capaz de bater recordes quanto a número de aviões encomendados. Em 2011, foram nada menos que 230 Boeing 737, de uma só vez, a maior encomenda recebida pela Boeing até à data.

Já a Ethiopian é a maior companhia aérea da África em termos de passageiros transportados, destinos que opera, tamanho da frota e rendimentos. É também a quarta maior empresa aérea do mundo quanto à quantidade de destinos postos à disposição do cliente.

Boeing Lion Air
Boeing da Lion Air: Foto de PK-REN de Jakarta, Indonésia - Lion Air Boeing 737-MAX8; @CGK 2018, CC BY-SA 2.0

Damos estes dados para situar bem o leitor e evitar a ideia de que se trata de empresas de segunda categoria. A verdade é que, apesar de a primeira tragédia, que ocorreu em 29 de outubro de 2018, ter tido grande repercussão, a tendência inicial foi de desvalorizar as companhias asiática e africana, facilitando a narrativa da culpa dos pilotos pelos acidentes, exatamente a conclusão favorecida pela Boeing.

Se a armadilha criada com os sucessivos “desenrascanços” na concepção do 737 MAX tivesse sido denunciada com firmeza desde o primeiro acidente, e a companhia aérea envolvida fosse norte-americana ou europeia, em vez de asiática, a segunda queda nunca teria ocorrido.

Só falta dizer que as aeronaves envolvidas nas duas tragédias eram novas em folha, com poucos meses de uso.

Quer isto dizer que a culpa dos dois despenhamentos foi exclusivamente do MCAS? Não. Mas raramente um acidente fatal desta dimensão tem uma única causa. Há sempre uma combinação infeliz de fatores, falhas de equipamentos, erros dos pilotos… Como foi o caso nestes dois acidentes. Mas sim, pode-se dizer que se o MCAS não existisse, as quedas não teriam ocorrido.

Um demónio a empurrar o nariz do avião para baixo

Tornaria este artigo longo demais (e provavelmente demasiado técnico) descrever minuciosamente o que ocorreu nos dois acidentes. Ambos tiveram como causa imediata o mau funcionamento de um sensor, o de “Ângulo de Ataque” (AoA), peça fundamental que mede, através do fluxo de ar na fuselagem, perto do cockpit, a inclinação, para cima ou para baixo, do aparelho. Num dos casos, era conhecida a avaria do sensor, que foi substituído antes do voo fatal. Só que, azar dos azares, a manutenção foi defeituosa e a peça veio mal calibrada, o que redundou no mesmo problema: uma leitura errada da inclinação do avião, que levou o MCAS a entrar em funções e erradamente empurrar para baixo o nariz da aeronave.

A única forma de impedir esta ação seria desligar todo o sistema de estabilização automática, que também desligaria o MCAS. A tripulação do avião da Lion Air até chegou a fazê-lo, mas para depois ligá-lo de novo. A reação dos pilotos, instintiva, era desligar a ação de “trimar” automática (regular a inclinação do avião) feita pelo MCAS, e puxar a manche para cima, contrariando a ação automática; o problema é que o MCAS fazia um reset e cinco segundos depois lá estava de novo a empurrar para baixo o nariz do avião.

Parecia haver um demónio à solta dentro do cockpit, decidido a fazer cair o avião, sobrepondo a sua ação à dos pilotos. Sem saber como pôr fim à ação daquele software maldito, restava ao piloto puxar a manche para cima, para impedir a todo custo a perda de altitude. Mas essa era também uma solução inviável, porque a força que o piloto tinha de fazer só para manter o nariz da aeronave acima do horizonte, neste caso, pode chegar a 90 quilos ou mais. O que não convida a rever ao mesmo tempo os manuais da aeronave nem a fazer outras manobras.

Exaustos, sem compreender porque raios o avião insistia em apontar o nariz para baixo uma, duas, três e quantas vezes fosse desligado o trim automático, os pilotos não conseguiram manter as aeronaves no ar, despenhando-se, a da Lion Air, no mar de Java, 13 minutos após a descolagem e o voo 302 da Ethiopian, em 10 de março de 2019, no solo, apenas seis minutos após o início do voo.

Boeing Ethiopian
Boeing Ethiopian: Foto de LLBG Spotter - Ethiopian Airlines ET-AVJ takeoff from TLV, CC BY-SA 2.0

Escondendo a existência do MCAS

Foram necessários dois acidentes brutais e a morte de 346 pessoas para a Boeing finalmente reconhecer que o software MCAS contribuíra para as quedas dos dois aparelhos. Entretanto, a Federação Aeronáutica Americana (FAA) ordenou a proibição de voo dos 737 MAX da série 8 e iniciou uma nova investigação. Entre março de 2019 e dezembro de 2020, nenhuma destas aeronaves (existiam 397, na altura) voou.

À medida que as investigações da FAA foram avançando, descobriam-se mais evidências de que a Boeing estava plenamente consciente dos riscos que o MCAS podia trazer para a segurança do voo. Apesar disso, a empresa pedira à FAA – e esta aceitou – que o nome e a identificação do MCAS não aparecessem no manual de voo. Foi toda uma operação de ocultação do software para evitar possíveis exigências de formação dos pilotos em simulador de voo do novo modelo, garantindo que o 737 MAX tinha a mesma forma de voar que o 737 NG.

Outra revelação chocante foi que o piloto-chefe da Ethiopian Airlines se dirigira à Boeing para saber que procedimentos de emergência deveriam ser tomados no caso de acontecer o mesmo problema que levara à queda do avião da Lion Air. A Boeing não respondera às perguntas concretas, limitando-se a indicar um documento público emitido pela empresa depois da queda do avião da Lion Air.

Nessa mesma semana, denunciou mais tarde o The New York Times, a Boeing promoveu um encontro com os pilotos da American Airlines para abordar exatamente os mesmos temas levantados pelo piloto-chefe etíope e onde foram discutidas estratégias de segurança a médio prazo. “O nosso encontro com a Boeing abordou as mesmas questões levantadas pelos pilotos etíopes”, relembrou Dennys Tager, porta-voz dos pilotos da American, ao diário novaiorquino. “Ficou claro que eles levantavam as mesmas questões que nós, mas não receberam as mesmas respostas que a Boeing nos deu.”

Calcula-se que os acidentes e o impedimento de voar durante tanto tempo dos 737 MAX custaram à Boeing 20 mil milhões de dólares em multas, compensações e custos legais.  A este valor ainda é preciso acrescentar os custos indiretos, nomeadamente perdas de 60 mil milhões de dólares devido ao cancelamento de 1.200 encomendas. O custo do desenvolvimento e concepção de uma aeronave de raiz teria custado 7 mil milhões de dólares.

Onde estão os parafusos?

Mas a via crucis da Boeing não tinha ainda chegado ao fim. No dia 5 de janeiro de 2024, os problemas voltaram a aparecer, e de uma forma espetacular, quando um tampão de porta de emergência se soltou em pleno voo. Mais uma vez o avião envolvido era um 737 MAX, só que da série 9, e não o modelo 8 que se despenhara no mar de Java e na Etiópia. Havia ainda uma outra diferença muito importante: a aeronave era de uma companhia aérea dos Estados Unidos, a Alaska Airlines.

O incidente ocorreu logo após a descolagem, quando o avião iniciara a subida e estava a 4.900 metros do solo. Felizmente, nenhum passageiro sentado próximo ao buraco que se abriu na fuselagem estava sem o cinto de segurança apertado, caso em que poderia ter sido sugado para fora da aeronave, devido à violenta despressurização ocorrida.

Boeing Alaska
Boeing da Alaska Airlines. Foto de Nick Dean - CC BY-SA 2.0 

O avião, que fazia o voo entre Portland, no estado do Oregon, EUA, e Ontário, na Califórnia, conseguiu regressar e pousar em segurança. Mais uma vez todos os 737 MAX, desta vez do modelo 9, foram forçados a ficar em terra. Todas as aeronaves deste modelo no mundo passaram por uma inspeção detalhada da porta, na verdade uma espécie de tampão que oculta e preenche o ponto de instalação da porta de emergência que, de acordo com o esquema de arrumação dos passageiros pode ou não ser instalada. Quando não é necessária, o buraco é preenchido por um tampão, ou Plug.

A NTSB, (National Transportation Safety Board, ou Conselho Nacional de Segurança nos Transportes), que investiga acidentes de transporte civil, incluindo aviação, anunciou depois que faltavam nada menos que quatro parafusos, obrigatórios para selar a porta, que simplesmente não foram encontrados. Inspeções em outros aparelhos dentro e fora dos EUA foram dando conta de uma grande quantidade de parafusos mal apertados, naquele mesmo lugar ou em outros.

Os 737-9 MAX começaram a voltar ao serviço a partir do dia 26 de janeiro. Mas a convicção de que havia muita coisa errada na Boeing ficou a pairar nas mentes dos profissionais da área e dos passageiros. Uma enorme desconfiança começou a rodear – e ainda rodeia – o maior fabricante de aviões dos EUA.

“Vi pessoas pulando nas partes do avião para conseguir alinhá-los”

Até aquele momento, as suspeitas atingiam apenas os aviões 737 MAX. Só que as revelações em relação a estes modelos foram ampliadas para outras aeronaves: o 787 Dreamliner, a estrela da Boeing, e o 777.

Encorajados pela vinda a público dos problemas surgidos no 737 MAX, funcionários e ex-funcionários da Boeing e da Spirit AeroSystems denunciaram graves problemas na montagem das fuselagens dos 777 e 787.

A maior parte dos problemas ocorria na Spirit. Os whistleblowers (informadores) denunciaram que as peças da fuselagem muitas vezes vinham com pequenas diferenças de inclinação e até de tamanho, que só encaixavam forçando-as. Os espaços entre as peças eram preenchidos, mas por vezes ficavam pequenas espaços nas junções que nem sempre eram devidamente preenchidos.

Um dos informadores, o engenheiro da Boeing Sam Salehpour, explicou que este processos colocaram stress excessivo nas principais juntas de aviões, nomeadamente na junção das asas com a fuselagem. “Eu literalmente vi pessoas pulando nas partes do avião para conseguir alinhá-las”, disse. Este stress pode não ter consequências durante anos, mas essas junções correm o risco de envelhecer mais cedo e causar falhas estruturais nas aeronaves em meia idade.

Outro informador, o ex-funcionário da Spirit Santiago Paredes, disse à BBC ter encontrado até 200 defeitos em fuselagens consideradas prontas para ser enviadas para a Boeing. Paredes foi funcionário da Spirit entre 2010 e 2022. “Encontrei muitos fixadores em falta, às vezes até peças que tinham ficado de fora”, recordou, denunciando ter sido submetido a pressões de chefias para ser menos rigoroso. “O que eles queriam era que o produto fosse enviado. Não queriam saber das consequências do envio de fuselagens problemáticas. Pretendiam era cumprir quotas, entregar nos prazos, seguir o orçamento… Desde que os números fossem bons, não importava o estado das fuselagens”.

Ao todo, 32 informadores denunciaram problemas nas aeronaves 787 e 777.

“Desenhada por palhaços, com a supervisão de macacos”

Como era inevitável, a FAA abriu uma nova auditoria à Boeing onde foram localizados outros problemas. O mais embaraçoso deles foi revelado por mais de mil páginas de e-mails e mensagens internas da empresa entregues a investigadores do Congresso e tornados públicos. A sua leitura demonstrava o mau ambiente reinante, a falta de confiança nas chefias, o desdém para com os administradores executivos e o CEO, e o mesmo sentimento para com os auditores da FAA.

O mail mais representativo deste mau ambiente, escrito por um funcionário anónimo, acabaria por ficar célebre. Referindo-se ao 737 MAX, o funcionário afirmava que a aeronave fora “desenhada por palhaços, que por sua vez tiveram a supervisão de macacos”.

Kelly Ortberg, o atual CEO da Boeing, recentemente interrogado por senadores numa audição sobre os problemas da Boeing foi taxativo: “É inaceitável que um avião tenha saído da fábrica sem que a porta/tampão estivesse corretamente instalada”, disse. “E deixem-me dizer de forma perfeitamente clara, que isso não pode, nunca, nunca mais, voltar a acontecer”.

Ortberg garantiu também que não há pressões para acelerar os ritmos de produção das aeronaves, e que a velocidade com que se chegará aos objetivos numéricos de entrega da aeronaves aos clientes dependerá única e exclusivamente de que todos os requisitos de segurança sejam postos em prática. O CEO da Boeing tem consciência de que vai demorar muito a reconquistar a confiança das pessoas na segurança dos aviões Boeing. Se vai ou não consegui-lo, isso ainda está para se ver.

Decadência da Boeing, decadência do império americano

A Boeing era a maior fabricante de aeronaves do mundo e ainda é a maior exportadora de manufaturados dos Estados Unidos. A sua crise só pode ser compreendida como parte da decadência que atravessa o império americano.

As empresas dos EUA, antes as líderes inquestionáveis em matéria de tecnologia, estão a ficar para trás, pelo menos em algumas áreas. Veja-se o caso da guerra comercial entre os Estados Unidos e a empresa tecnológica chinesa Huawei, que começou em 2019. Só tardiamente a Casa Branca percebeu que a Huawei liderava a tecnologia 5G móvel e que as empresas americanas tinham-se desinteressado da investigação nesta área. A solução de equipamento e de software 5G (a nova geração da Internet) da Huawei era muito superior às duas alternativas europeias: as da finlandesa Nokia e da sueca Ericsson.

O governo dos Estados Unidos lançou-se então numa campanha contra a Huawei, acusando-a de implantar “cavalos de tróia” nos seus equipamentos, abrindo portas para a espionagem chinesa. Com este argumento forçou os seus aliados a romperem com a empresa chinesa, nalguns casos a romper contratos que já estavam assinados. Mas a Casa Branca nunca apresentou provas da acusação de espionagem.

Atolados numa ilha de tecnologia desatualizada

Outra guerra tecnológica que os EUA estão a perder por “falta de comparência” é a dos carros elétricos. “Trump está a mandar para o lixo os veículos elétricos. A China está a fabricar os carros que o mundo quer”, titulava no último dia 25 de abril o diário The Washington Post. E prosseguia; “A China domina as vendas globais dos EV (veículos elétricos), enquanto os consumidores dos EUA arriscam-se a ficar atolados numa ilha de tecnologia desatualizada”.

Mas afinal não é o grande conselheiro de Trump, Elon Musk, o mais rico dos bilionários, fabricante de carros elétricos, os Tesla? Sim, e não se sabe como ele e Trump vão resolver essas contradições, mas o facto é que a Casa Branca congelou as verbas para a construção em todo o país das infraestruturas  necessárias ao abastecimento dos veículos elétricos e acabou com os postos de carregamento instalados em instituições governamentais. Também estão a ser cancelados subsídios para apoiar a fabricação de baterias, bem como os incentivos fiscais para a compra dos carros elétricos e plug-in.

Enquanto os EUA se afastam do elétrico, os chineses avançam a bandeiras desfraldadas. Dos mais de 17 milhões de carros elétricos vendidos, no ano passado, em todo o mundo, 76% foram feitos por empresas chinesas. E a maior fabricante de carros elétricos da China, a BYD, anunciou recentemente uma nova tecnologia que permitirá a carga da bateria em cinco minutos.

Fiel ao seu negacionismo das alterações climáticas, às quais gosta de chamar “boato marxista”, Trump não quer saber de energias renováveis. O objetivo dele é ampliar a extração de petróleo, nos EUA, através do fracking, uma técnica destruidora de solos e consumidora de água. A palavra de ordem de Trump é “Drill, drill, drill!” (perfura perfura, perfura!). Assim, a opção do império dominante é permanecer com os combustíveis fósseis e aumentar as emissões de gases com efeito estufa, ignorando os resultados desastrosos que todos sofreremos.

Os exemplos poderiam ser multiplicados. A “ilha de tecnologia desatualizada” será cada vez mais ampla com Trump.

A Boeing não está ainda na mesma ilha, mas aproxima-se perigosamente. Em termos de tecnologia, já está atrasada em relação à Airbus. E isso tem muito a ver com a filosofia que reinou, na empresa, nos tempos do lema “Fazer mais com menos”, que ditava a preferência por redesenhar aeronaves antigas em vez de produzir um modelo completamente novo. O último avião desenhado a partir do zero pela Boeing foi o 787 Dreamliner, cujo primeiro voo ocorreu em 2009, há 16 anos.

Atualmente, a prioridade da empresa é resolver os problemas que emergiram devido aos controlos de qualidade frouxos e à perda de uma cultura de segurança na empresa. Não é tarefa fácil e sobretudo será preciso muito tempo. Perder a confiança dos passageiros pode acontecer em instantes. Recuperá-la, depois de perdida, só se consegue com o tempo, garantias e transparência da gestão.

Luís Leiria
Sobre o/a autor(a)

Luís Leiria

Jornalista do Esquerda.net